19/04/2024 - Edição 540

Ágora Digital

Que comam brioches

Publicado em 09/09/2020 12:00 - Victor Barone

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Nenhuma pauta mobilizou tanto a população esta semana como a alta no preço de alimentos. Depois do flagra de pacotes de cinco quilos de arroz custando R$ 40, o presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), João Sanzovo Neto, ofereceu uma solução simples: “Vamos promover o consumo de massa, macarrão, que é o substituto do arroz”, disse, logo após se reunir com Jair Bolsonaro para discutir a questão. O arroz já acumula alta de 19% este ano; segundo o Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), faz um mês que o cereal acumula recordes diários no preço, e a indústria diz que não deve haver quedas

O presidente Bolsonaro tem tentado enviar mensagens aos eleitores e ao mercado. Depois de pedir ‘patriotismo’ dos supermercados para que reduzam seus lucros, ontem ele confirmou que autorizou a notificação feita pelo Ministério da Justiça pedindo a produtores e supermercados explicações sobre os aumento – o que contrariou o baleado ministro Paulo Guedes. Mas ele nega que vá tabelar preços ou intervir neles. “O que tem que valer é lei da oferta e da procura“, cravou ontem.

Não é como se não houvesse arroz disponível no Brasil, mas, com o dólar alto, o agronegócio prefere exportá-lo. Este ano, entre janeiro e agosto, o país mandou para fora1,15 milhão de toneladas desse grão, rendendo US$ 407,2 milhões. Desde o começo da pandemia, foi um aumento de 300% nas vendas ao exterior. Mesmo assim, o país poderia produzir mais, é verdade. E produzia: os repórteres d‘O Joio e o Trigo contam que as áreas plantadas de arroz e feijão diminuem a cada ano, ao mesmo tempo em que cai o seu consumo pelas famílias. No caso do arroz, a área cultivada caiu 41% em dez anos.

Embora o arroz tenha se tornado um símbolo, a disparada nos preços vai muito além dele. A inflação oficial do país avançou 2,44% no ano até agora, mas, no grupo da alimentação em domicílio, foram 11,4%. O preço do óleo de soja subiu 18,6%; do leite, 15,3%; do feijão mulatinho, 32,6%. No início do mês, o Dieese verificou aumento da cesta básica em 13 das 17 capitais pesquisadas. A mais cara, em São Paulo, custava R$ 539,95. A  mais barata, a de Aracaju, ficou em R$ 398,47. Desnecessário dizer que a inflação nos alimentos pesa mais para quem ganha menos. Com a redução do auxílio-emergencial para R$ 300, mesmo a cesta básica mais em conta vai consumir todo o benefício e mais um pouco. 

Voltando à matéria d’O Joio e o Trigo, o texto lembra que o governo tem uma forma simples e barata de forçar os preços para baixo, mesmo sem macular a “oferta e a procura”: mantendo estoques de alimentos, que podem ser liberados estrategicamente (aumentando a oferta… e baixando os preços) em momentos como esse. Acontece que o governo Bolsonaro desestruturou os estoques públicos.

Por Outra Saúde

CIDADÃOS DIFERENCIADOS

Enquanto o cidadão comum faz milagre para comprar o arroz e o feijão, que estão sumidos ou pela hora da morte, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defende que o seu chefe, o presidente da República, deveria receber "muito mais do que recebe hoje". Jair Bolsonaro tem um salário de quase R$ 31 mil mensais, além de palácio, comida, roupa lavada, emas para brincar, helicóptero para dar carona no casamento do filho e um cartão corporativo que não discrimina os gastos ao público. Sabe como é, questão de "segurança nacional".

"A Presidência da República, o Supremo, evidente que eles têm que receber muito mais do que recebem hoje. Pela responsabilidade do cargo, pelo peso das atribuições, pelo mérito em si para poder chegar a uma posição dessas", disse Guedes. Ele defendia a existência de uma diferença salarial entre o ingresso e o topo da carreira, afirmando que, no Brasil, essa dispersão é quase "socialista". E que era necessário fomentar a meritocracia.

Bem, o mérito de Bolsonaro foi ter sido votado. Por que, em quase três década de parlamento, ele não mostrou muita produtividade que justificasse uma promoção. "Tem que haver uma enorme diferença de salários sim. Quantos chegam ao STF ou ao TCU?" Sem demérito para os ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União, alguns deles competentes juristas, mas a indicação para os postos nessas cortes, apesar de demandar conhecimento jurídico, é política.

O salário de R$ 39,2 mil dos ministros da Suprema Corte são, em tese, o teto do funcionalismo público. Em tese, por que é mais fácil o tal camelo passar pelo tal buraco da tal agulha do que chegar o dia em que magistrados, das mais diversas instâncias e esferas, recebam o limite a eles estabelecido. O ministro acredita que os salários do topo de carreira devam ser bem maiores para atrair bons profissionais para o funcionalismo. Considerando a realidade brasileira, não é possível dizer que rendimentos da ordem de R$ 31 mil ou R$ 39 mil, com benefícios e estabilidade, é pouco. Isso sem contar que a iniciativa privada está aí exatamente para quem quiser ganhar mais cascalho. A participação na administração pública tem outra natureza. Não é para pagar salário de CEO de multinacional ou de diretor de fundo de investimento.

Pouco é o salário mínimo de R$ 1.045. Mas, no dia 1º de setembro, Guedes criticou, mais uma vez, a defesa do aumento real do salário mínimo. "Você vai condenar as pessoas ao desemprego", avisou. Vale lembrar que a política de valorização do SM, implodida pelo governo Jair Bolsonaro, foi um dos mais importantes instrumentos de redução da pornográfica desigualdade no Brasil, um dos países que mais concentra renda em todo o mundo.

Servidores públicos não têm todos o mesmo perfil. Entre os que ganham estão os de carreiras de Estado (como magistrados, procuradores, diplomatas e auditores fiscais), que foram protegidos na Reforma Administrativa de Paulo Guedes. O outro grupo não tem a mesma proteção, muito menos recebe o mesmo respeito. Dele fazem parte, por exemplo, os professores – chamados pelo então ministro da Educação Abraham Weintraub de "zebras gordas". 

Vale lembrar que o próprio Guedes chamou funcionários públicos de "parasitas" do orçamento nacional, no dia 7 de fevereiro. "O hospedeiro [governo] está morrendo, o cara virou um parasita", afirmou Guedes, criticando a política de aumentos salariais de servidores. Diante da repercussão negativa, disse que sua fala foi descontextualizada e que reconhece a qualidade do serviço desses trabalhadores. Ahã.

Desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, que a polícia e a política protegem os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições – o que explica muito de tudo que tá aí, talkey? Traduzindo: hoje, em meio à carestia, em muitos lugares, um salário mínimo compra 26 sacos de cinco quilos de arroz, enquanto o salário de um ministro do Supremo compra 980.

Por Leonardo Sakamoto

NO SENTIMENTO ANTIVACINA, SINTOMA DA CRISE CIVILIZATÓRIA

Um trabalho publicado ontem no periódico The Lancet avaliou a confiança nas vacinas em geral em 149 países com base em entrevistas com 284 mil pessoas – em alguns casos, os dados permitem ver como isso evoluiu de 2015 até 2019. 

O Brasil está no grupo dos países onde mais de metade da população acredita fortemente na segurança, na eficácia e na importância dos imunizantes. Mas isso piorou no período estudado: houve queda de 73% para 63% na parcela que acredita que as vacinas são seguras; de 75% para 56% nos que acreditam em sua eficácia; e de 92,8% para 88% nos que acreditam que elas são importantes para crianças. “A América Latina, e o Brasil inclusive, foi vista por muito tempo como tendo uma blindagem à desconfiança em vacinas. Mas sabemos que a confiança em vacinas é algo muito volátil, e esse perfil vem mudando. Se os responsáveis não prestarem atenção, isso pode se reverter em queda na cobertura vacinal”, diz uma das autoras, Clarissa Simas, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.

Outros países aparecem com quedas muito mais acentuadas – e de certa forma, mais justificadas também. As Filipinas estavam entre os dez onde havia maior confiança em 2015, e em 2019 aparece em 70º lugar. Acontece que, lá, a farmacêutica Sanofi distribuiu largamente sua vacina contra dengue para, depois, reconhecer que o produto poderia na verdade piorar a doença em crianças que nunca haviam sido infectadas. Dez crianças morreram.

No geral, os autores observaram que extremismo religioso, movimentos antivacina, instabilidade política e multiplicação de notícias falsas impactam a confiança. Eles dizem, por exemplo, que a queda acentuada na Indonésia foi provocada em parte por alguns líderes muçulmanos que começaram a questionar a segurança das vacinas de sarampo, caxumba e rubéola e instituíram um decreto religioso proibindo a vacinação.

Por Outra Saúde

VERNIZ CIENTÍFICO

O presidente Jair Bolsonaro decidiu fingir ser guiado pelas mãos da ciência em sua transmissão ao vivo ontem à noite. Contracenando mais uma vez com uma youtuber mirim, tentou claramente induzir declarações receosas por parte da menina: “Você gosta de tomar vacina?”, e “Você tomaria qualquer vacina, sem comprovação científica?”, perguntou ele. Como a criança só respondia de maneira afirmativa, ele reforçou que as vacinas contra covid-19 em desenvolvimento “ainda não têm uma comprovação científica“. Como se alguém estivesse dizendo o contrário… E como se ele se importasse com esse tipo de comprovação.

Por Outra Saúde

O NOVO NORMAL

Na narrativa de Jair Bolsonaro, democracia e ditadura são ideias muito semelhantes. No pronunciamento do 7 de setembro, o presidente afirmou que “os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas” levaram ao regime civil-militar que durou 21 anos no Brasil. Ele, que no primeiro semestre participou reiteradas vezes de manifestações antidemocráticas que pediam o fechamento do Supremo e do Congresso, disse que tem “compromisso com a Constituição” e “com a preservação da democracia”.  O Brasil bolsonarista, que bebe de um ufanismo cada vez mais questionado, é um país com “senso de tolerância”, onde a identidade nacional foi forjada após um processo de miscigenação no qual “os diferentes tornavam-se iguais”.  Poucas horas antes dessas declarações, o violoncelista Luiz Carlos Justino, que nunca teve passagem pela polícia, era solto após cinco dias de prisão arbitrária. Ele é negro.

Para variar, durante seu discurso em cadeia nacional de rádio e TV, o presidente não mencionou nenhuma vez as vítimas fatais do coronavírus. O discurso de Bolsonaro foi alvo de panelaços em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Brasília. O tradicional Grito dos Excluídos, com manifestações em pelo menos 15 estados, teve como tema a “vida em primeiro lugar”. Na capital federal, os movimentos sociais organizaram um ato performático na Esplanada dos Ministérios. Respeitaram as regras de distanciamento social. Já no desfile da Independência, o presidente e a primeira-dama estavam sem máscaras, acompanhados de crianças, também sem o equipamento de proteção. O evento aglomerou mais de mil pessoas, nas contas da Secom.  

No sábado passado, o presidente voltou a atacar prefeitos e governadores que adotaram medidas de isolamento. Nas suas palavras, são “projetos de ditadores nanicos”. Na sexta, ele causou engarrafamento de cinco quilômetros na rodovia Régis Bittencourt, em SP, porque resolveu ficar acenando para caminhoneiros por mais de uma hora. Nesse mesmo dia, a defesa do senador Flávio Bolsonaro conseguiu uma decisão favorável da juíza Cristina Serra Feijó, da 33ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio. A magistrada proibiu a TV Globo de exibir documentos das investigações sobre o esquema das rachadinhas. Um dos argumentos dela? As notícias poderiam prejudicar a imagem do filho 01. Prestes a deixar a presidência do STF, Dias Toffoli não só participou do desfile do Dia da Independência como foi ao almoço oferecido pelo militar Flávio Rocha (secretário especial de Assuntos Estratégicos). O ministro disse na semana passada que nunca viu da parte de Bolsonaro “nenhuma atitude contra a democracia”.

“Estamos entregues a um governo que não dá valor a vida e banaliza a morte. Um governo insensível, irresponsável e incompetente que desrespeitou normas da Organização Mundial da Saúde e converteu o coronavírus em uma arma de destruição em massa”, disse o ex-presidente Lula em vídeo publicado nas redes sociais. Ele também condenou a nomeação de “centenas de militares” para cargos estratégicos, como o comando do Ministério da Saúde, e avaliou que o país vive uma “escalada autoritária” que lembra “os tempos sombrios da ditadura”. 

Janio de Freitas fez o seguinte diagnóstico: “O autoritarismo que ataca no varejo, aqui e ali, até formar a massa de truculência que é um Poder incontrastável, já avançou muito mais do que notamos. Os atos vistos como abusivos ou extravagantes, e logo deslocados em nosso espanto por outros semelhantes, já configuram uma situação de anormalidade em que nenhuma instituição é o que deveria ser.”

Por Outra saúde

MÁRIO NUMA FRIA

Depois de meses no cargo sem dizer a que veio, o secretário nacional de Cultura, Mário Frias, resolveu roubar o protagonismo do feriado de Sete de Setembro. Além da performance para lá de canastrona no vídeo louvatório da Secom da Presidência a respeito dos heróis nacionais, depois ironizado de forma brilhante por Marcelo Adnet, e de ofender o humorista com a ajuda da conta oficial da Secom, Frias resolveu encarnar outro personagem: o presidente Jair Bolsonaro em pessoa.

Enquanto ainda era notícia nas redes sociais por conta do episódio do vídeo, eis que Frias posta no Twitter o vídeo de Bolsonaro sendo esfaqueado em Juiz de Fora, há exatos dois anos, agradecendo a Deus e aos médicos pela “sua” vida.

Diante do evidente ato falho, o tuíte foi apagado, mas o print, como sempre lembram as redes, é eterno. Em seguida, por uma dessas coincidências do destino, o mesmo vídeo e o mesmíssimo texto na sintaxe particular de Carlos Bolsonaro apareceu na conta do presidente.

Afinal, quem comanda a conta do secretário de Cultura nas redes sociais? Bolsonaro? Carlos? O secretário da Secom, Fábio Wajngarten? Ou seria Adnet? Certamente não, pois se fosse a sátira seria mais bem feita e inteligente, e não esse humor tosco é involuntário.

Para completar o número de comédia, o próprio (será?) Mário Frias repostou o tuíte de Bolsonaro, com o mesmo teor do que havia apagado, acrescentando um “amém” ao agradecimento do chefe pela própria (do presidente, no caso) vida. Muita conta para administrar, não é fácil não.

Por Vera Magalhães

DESCONFIANÇA BRASILEIRA

Uma pesquisa da ONG Avaaz feita pelo Ibope mostrou que cerca de um quarto dos brasileiros resiste à ideia de tomar uma vacina contra o SARS-CoV-2 quando ela for registrada: de mil pessoas entrevistadas, 75% disseram que tomarão a vacina com certeza, 20% afirmaram que talvez tomem e 5% disseram que não vão tomar de jeito nenhum. São números muito mais procupantes do que os da pesquisa Datafolha divulgada no mês passado, segundo a qual 89% dos brasileiros querem se vacinar logo que haja um imunizante disponível.

A nova pesquisa perguntou o principal motivo para a desconfiança e, para 53% das pessoas, há dúvidas quanto à segurança – a preocupação mais razoável. Mas outros fatores bizarros foram mencionados por percentuais muito altos dos entrevistados: para 20% deles, Bill Gates afirmou que a vacina pode matar 700 mil pessoas; para 19% a vacina pode ter chips para controle da população; 14% acreditam que ela pode alterar nosso DNA. Não sabemos como a pesquisa foi conduzida – se os motivos foram relatados espontaneamente ou se havia uma lista prévia para que as pessoas marcassem suas opções. Nesse segundo caso, a lista pode ter induzido as respostas.

Por Outra Saúde

DEBOCHE GERAL

Circula na internet um trecho da reunião ministerial de terça-feira, da qual a youtuber mirim Esther Castilho participou. A menina pergunta: “Está pegando fogo no Pantanal?”. Recebe como resposta uma risada coletiva, inclusive de Jair Bolsonaro, sentado ao seu lado. Na sequência, alguém diz que o presidente enviou “dez aviões lá para ajudar a apagar”. A área queimada já passa de 2,3 milhões de hectares, ou dez vezes o tamanho das cidades de São Paulo e Rio juntas, como calculou o G1

O deboche do governo com o meio ambiente não parou por aí. Ontem, Ricardo Salles resolveu espalhar que não existem queimadas na Amazônica publicando um vídeo da Mata Atlântica. E Paulo Guedes ironizou a preocupação de nações estrangeiras com a Amazônia, já que, na opinião do ministro, “em Paris, não se preserva nem uma catedral, quanto mais uma floresta”. 

Em meio a ironias, risadas e desinformação, quatro terras indígenas entraram no mapa do desmatamento do Imazon. Desde que as imagens começaram a ser capturadas por satélite, há dez anos, não se via sinais de devastação na região, que é uma das mais bem preservadas da Amazônica. Os pesquisadores ligam o problema à repavimentação da BR 319 promovida pelo governo, já que os territórios ficam no entorno da rodovia.

Por Outra Saúde

REVELAÇÃO TARDIA

No início da pandemia, Donald Trump acusou a OMS de falta de transparência, criticou a conduta dos governos europeus, afirmou que tudo estava “sob controle” nos Estados Unidos, disse que o coronavírus iria desaparecer “como um milagre”, que não estava “nem um pouco preocupado” e pressionou para que as quarentenas decretadas pelos estados fossem encerradas antes da Páscoa.

Nesta semana, ficou comprovado que o presidente dos EUA mentia. Numa entrevista ao jornalista Bob Woodward concedida em 7 de fevereiro, Trump revelou: “Você apenas respira o ar e é assim que passa. (…) E isso é muito complicado. Isso é muito delicado. Também é mais mortal do que uma gripe forte… Isso é mortal”. 

Dez dias antes dessa conversa telefônica, o presidente havia recebido de conselheiros o aviso de que o novo coronavírus seria a maior ameaça à segurança nacional que enfrentaria no governo. O vice-conselheiro Matthew Pottinger chegou a dizer que a emergência sanitária seria parecida com a pandemia de gripe espanhola, que matou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo.

Apesar disso, como sabemos, Trump não agiu de acordo. Questionado sobre isso por Woodward, explicou em 19 de março: “Eu queria sempre minimizar. (…) Ainda gosto de minimizar, porque não quero criar pânico.” Esse áudio foi divulgado ontem pela CNN, e faz parte do acervo de entrevistas que o jornalista conduziu com o presidente entre dezembro do ano passado e julho deste ano para seu novo livro, ‘Rage’, que será lançado na semana que vem.  

O fato de Trump saber de tudo em um momento em que os Estados Unidos tinham menos de 50 mortes (hoje são 190 mil) é um escândalo político. O fato do premiado Woodward guardar essa informação para si durante meses que foram dramáticos está sendo encarado como um escândalo ético.

“Sejamos claros. Ambos sabiam antes de qualquer outra pessoa que o presidente estava mentindo em público sobre a mais séria crise de saúde pública em um século. Ambos sabiam o quão séria era aquela ameaça e o quão mortal a doença poderia ser. Ambos sabiam que um desastre potencial não era apenas possível, mas cada vez mais provável. AMBOS SABIAM! O presidente sabia e mentiu porque queria ser reeleito. Woodward sabia e guardou para si mesmo porque tinha um livro para vender. Quem é pior?”, critica Charles Pierce, na Esquire.

É verdade que, em abril, o New York Times e o site Axios revelaram que Trump estava a par da ameaça. Conforme destacamos na época, esses veículos obtiveram memorandos internos que avisavam o presidente, ainda em janeiro, sobre os estragos que a crise poderia fazer no país. Mas nenhum documento supera a confirmação, gravada pelo jornalista com autorização de Trump. 

A questão é: se o público soubesse disso, o comportamento do presidente teria mudado? Por aqui, podemos nos perguntar o mesmo, visto que Jair Bolsonaro é um satélite de Trump. Aquela famosa viagem presidencial aos EUA, na qual a comitiva brasileira voltou praticamente toda infectada, aconteceu uma semana antes da conversa em que Trump confessou a Woodward sua opção por minimizar a pandemia.

No dia 10 de março, na Flórida, Bolsonaro seguia a mesma toada, dizendo que “a questão do coronavírus” não era “isso tudo que a mídia propaga”. Na época, não tínhamos nenhuma morte; hoje temos 128 mil. A respeito de outra declaração do mesmo quilate dada em abril, Bruno Boghossian lembra: “Àquela altura, o Ministério da Saúde já havia enviado ao Planalto uma projeção que estimava em cem mil o número de mortes na pandemia, segundo relato feito à Folha pelo epidemiologista Wanderson Oliveira, ex-secretário da pasta”. 

De acordo com a CNN, o livro de Woodward também vai revelar outros bastidores importantes (como já tinha sido feito no anterior sobre Trump, ‘Medo’). Anthony Fauci, principal especialista em doenças infecciosas do governo, é citado. Teria caracterizado a liderança de Trump como “sem rumo” e sua capacidade de atenção “como um número negativo”. “Seu único objetivo é ser reeleito”, teria afirmado Fauci a um fonte ouvida por Woodward. O epidemiologista nega.

Já Trump não negou (até porque a sua confissão está gravada). Questionado ontem, respondeu que se estava claro que seu objetivo era reduzir o pânico, a revelação “talvez seja verdade”. “O fato é que sou uma líder de torcida por este país. Eu amo nosso país. E não quero que as pessoas tenham medo. Não quero criar pânico, e certamente não vou levar este país ou o mundo ao frenesi”. Já levou. 

Por Outra Saúde

ACOMODAÇÃO

O ministro Luiz Fux assumiu ontem (10) a presidência do Supremo Tribunal Federal. Fica no cargo pelos próximos dois anos, tendo Rosa Weber como vice. Anunciou que um de seus primeiros atos como presidente do STF será conversar com Jair Bolsonaro. Promete intervir pouco nas “escolhas feitas pelo governo”.  

Passada a crise com os poderes, o cenário é um tanto insólito. Ontem, na solenidade de despedida de Dias Toffoli no plenário do Supremo, o presidente se disse “emocionado em ocupar lugar de destaque à direita do presidente do STF”. Afirmou ainda que o “recinto” que fica em um prédio atacado com fogos de artifício por bolsonaristas meses atrás, e objeto de maquinações que envolvem um cabo e um soldado por parte de seu filho, Eduardo Bolsonaro, “é um verdadeiro santuário para a Justiça brasileira”. 

Enquanto isso… O ministro Marco Aurélio Mello pediu que a Procuradoria-Geral da República prorrogue por mais 30 dias o prazo para que a Polícia Federal investigue a interferência de Bolsonaro na autonomia da corporação. Uma das coisas que falta é tomar o depoimento do presidente. 

Por Outra Saúde

FRASES DA SEMANA

“Não admitiremos qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem de dinheiro e da corrupção. Aqueles que apostam na desonestidade como meio de vida não encontrarão em mim qualquer condescendência”. (Luiz Fux, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal)

“Ele gostou muito dela nas outras entrevistas, se familiarizou com ela. Os dois têm o intuito de ajudar o Brasil. Ela não faz pegadinha, sacanagem. E ele gosta do jeito dela trabalhar”. (Rodrigo Castilho, ex-PM paulista, pai e empresário da youtuber-mirim amiga de Bolsonaro) 

“A gente está fazendo os contratos com quem fabrica a vacina, e a previsão é de que essa vacina chegue para nós a partir de janeiro. Em janeiro do ano que vem, a gente começa a vacinar todo mundo”. (Eduardo Pazuello, general e ministro interino da Saúde)

“O essencial é vencer a pandemia, defender a vida e a saúde do povo. É pôr fim a esse desgoverno e acabar com o teto de gastos que deixa o Estado de joelhos diante do capital financeiro. Nessa empreitada árdua, mas essencial, eu me coloco à disposição do povo brasileiro”. (Lula)

“A Amazônia, bem governada, é nossa embaixadora junto à comunidade mundial. Maltratada, nosso calcanhar de Aquiles. O Brasil, de forma mais dramática na gestão de Jair Bolsonaro, ignora historicamente a importância estratégica da Amazônia”. (Arthur Virgílio, prefeito de Manaus) 

“Sempre tivemos esta visão pragmática na relação com o governo federal. Somos um partido de resultados”. (Ciro Nogueira, senador, presidente do Partido Progressista e um dos líderes do Centrão que apoia Bolsonaro depois de ter apoiado Lula, Dilma e Temer) 

“Cabe aqui um ’mea culpa’. Permiti, e por fim aceitei o instituto da reeleição. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade”. (Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República) 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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