19/04/2024 - Edição 540

Ágora Digital

Benza Deus e a imprensa livre do meu País

Publicado em 19/08/2020 12:00 - Victor Barone

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O Supremo Tribunal Federal proibiu que o Ministério da Justiça elabore relatórios de inteligência contra opositores do Governo de Jair Bolsonaro. A decisão foi tomada pelo placar de 9 a 1. Na quinta-feira (20), a Corte concluiu um julgamento iniciado no dia anterior em que era questionada a produção de um dossiê contra 579 servidores e professores universitários apontados como membros de um grupo antifascista. Esta é a segunda vez neste mês que os ministros do STF trataram do tema inteligência e impuseram uma derrota à gestão Bolsonaro.

Na semana passada, também por 9 a 1, os ministros limitaram a atuação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que encabeça o Sistema Brasileira de Inteligência (Sisbin). Naquela ocasião, a Corte entendeu que a Abin precisa justificar os pedidos de compartilhamento de informação feito a outros órgãos. Definiu ainda que a atividade de inteligência não pode acessar a dados protegidos por sigilo, como chamadas telefônicas e informações financeiras. Para isto, necessitaria da expressa manifestação de um magistrado. Ficou delimitado também que os outros órgãos do Sisbin só podem repassar informações para a Abin desde que seja comprovado o interesse público da medida, afastando qualquer possibilidade desses dados atenderem a interesses pessoais.

Nos dois casos o autor da ação foi a Rede Sustentabilidade ―em um deles teve como coautor o Partido Socialista Brasileiro. A relatora foi a ministra Cármen Lúcia. E o único que divergiu dos colegas foi Marco Aurélio Mello. O decano Celso de Mello não participou dos dois julgamentos por razões de saúde. Preste a se aposentar, ele se licenciou nesta semana dos trabalhos para realizar uma intervenção cirúrgica.

No julgamento de quinta-feira, os ministros entenderam que houve “desvio de finalidade” no dossiê elaborado pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça que apresentou uma relação de policiais e outros servidores que se opunham ao Governo e se declaravam antifascistas. Rejeitaram, no entanto, a abertura de uma investigação contra o ministro da Justiça, André Mendonça.

Cármen Lúcia, relatora da ação, agradeceu a imprensa por ter revelado a formulação do documento. Segundo a ministra, o próprio André Mendonça afirmou que só soube do dossiê por meio de notícias jornalísticas. “O ministro da Justiça diz nos autos, afirma, escreveu, assinou e encaminhou: só teve conhecimento de sua possível existência pela imprensa. Benza Deus a imprensa livre do meu País. E benza Deus que temos um poder Judiciário que toma conhecimento disso e que dá a importância devida para garantia da democracia”.

Carmen Lúcia olhou o bicho e concluiu: se tem tromba de elefante, orelhas de abano de elefante, presa de elefante, altura, e caminha como um elefante, só pode ser um elefante. E assim condenou o uso do aparelho do Estado para espionar servidores públicos contrários ao governo.

“No Direito Constitucional, o uso ou abuso da máquina estatal para a colheita de informações de servidores com postura contrária ao governo caracteriza desvio de finalidade”, disse a ministra no seu voto. A sessão do tribunal foi interrompida e será retomada hoje com o voto dos demais ministros.

Em julgamento, a questão suscitada por um dossiê produzido pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça sobre 579 servidores públicos e três professores que se declararam antifascistas. Ser antifascista ou fascista não é crime. Por que então investigar os antifascistas e deixar os fascistas em paz?

Arapongagem é crime. É coisa da época da ditadura militar de 64 que criou o Serviço Nacional de Informações, extinto pelo presidente Fernando Collor em 1992. O atual Sistema Brasileiro de Inteligência conta com 42 órgãos de coleta de informações. O presidente Jair Bolsonaro quer usá-los ao seu gosto.

Na semana passada, ao julgar outra ação, o Supremo decidiu que isso não é possível. E estabeleceu limites para o acesso e a troca de informações entre os órgãos e a presidência da República. Bolsonaro queria centralizar as informações na Agência Brasileira de Informações comandada por um delegado amigo seu. Não pode.

O ministro André Mendonça, da Justiça, não rebateu a existência do dossiê nas explicações que ofereceu ao Supremo, disse apenas que tomou conhecimento dele pela imprensa. A ser verdade, admitiu desconhecer o que se passa no quintal do seu ministério. Talvez por isso tenha mandado embora o militar autor do dossiê. O episódio serve para mostrar que Mendonça se alinha com seu chefe no costume de atravessar a rua para pisar em casca de banana. Não só ele. Augusto Aras, mais advogado de Bolsonaro do que Procurador-Geral da República, chamou o dossiê sobre os antifascistas de relatório que “antecipa riscos”. Quais? A quem?

A propósito: como chamar um governo que, vira e mexe, afronta o Estado de Direito?

Por Ricardo Noblat

CRIMINOSOS

O caso da menina capixaba que foi vítima de estupro reforçou a sensação de que, no Brasil, a diferença entre a sensatez e a estupidez é que a sensatez tem limites. A garota que sofreu violência sexual cometida por um tio desde os seis anos de idade. Grávida aos dez, ela se submeteu a um aborto. Como se tudo isso fosse pouco, a criança teve a localização e o nome expostos nas redes sociais por uma militante bolsonarista. Passou a ser alvejada por insinuações infames. E virou personagem involuntária de um circo de horrores que vale por uma segunda violação.

Não gera nenhuma surpresa que o Ministério da Saúde tenha ficado de fora do processo que garantiu a interrupção da gravidez da criança estuprada pelo tio. A coluna Painel, da Folha, informa que o general Eduardo Pazuello não deu nenhum telefonema, a pasta não ofereceu qualquer tipo de ajuda para achar um hospital que realizasse o procedimento, e o trâmite foi feito apenas pelos governos estaduais. Não faltam ultraconservadores em cargos importantes da pasta. A secretaria de Atenção Primária, por exemplo, é chefiada por Raphael Parente, que não considera aborto como um problema de saúde pública. Nas redes sociais, o coordenador-geral de Gestão de Projetos de Saúde Digital da pasta, o médico e militar da reserva Allan Garcês, criticou que o direito da menina tenha sido respeitado. Para ele, o procedimento “pune o inocente, a verdadeira vítima.” E já falamos por aqui do secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Hélio Angotti Neto, que tem até um livro contra o aborto.

Sara Giromini, que acendeu o pavio para os ataques (nas telas e fora delas) sofridos pela criança, foi denunciada pelo Ministério Público do Espírito Santo, que pede indenização de R$ 1,32 milhão. O valor seria revertido para o Fundo Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente. Na ação, o MP diz que a divulgação dos dados pessoais contraria tanto o ECA e o Marco Civil da Internet como a própria Constituição, “que tem foco na dignidade da pessoa humana”. Depois de YouTube e Instagram removerem a conta de Giromini, ontem à noite foi a vez do Twitter.

E a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) vai pedir ao Conselho Federal de Medicina que investigue como a também deputada Soraya Manato (PSL-ES) teve acesso ao laudo médico da menina. Soraya afirmou, na Câmara, que viu o documento e divulgou dados que seriam do tempo de gestação e do peso do feto (e que foram usados pelo Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes para se negar a realizar o aborto). Sâmia questiona se Soraya tem alguma relação com os vazamentos. 

O caso todo chegou à ONU, que manifestou solidariedade à criança e apoio às “iniciativas das autoridades nacionais para apurar e processar, de acordo com o devido processo legal, este crime.”

Depois da exposição sofrida, dificilmente a menina vai poder seguir vivendo em São Mateus, no norte capixaba. A família se encaixa nos critérios para entrar em dois programas de proteção do Espírito Santo: o de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência e o voltado a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte. Pode escolher um deles. Mas, qualquer que seja a escolha, a proteção só vai durar, no máximo, quatro anos. Vale lembrar que o tio da criança ameaçava matar seu avô caso ela denunciasse os estupros.

Por Outra Saúde

CUSTE O QUE CUSTAR

O encontro da intolerância religiosa com a direita brasileira produziu um novo marco de violência: contra as crianças e adolescentes, mas também contra o Sistema Único de Saúde. O uso político do caso da menina de dez anos que engravidou começou no governo federal, se espalhou nas redes bolsonaristas até que, enfim, se converteu em palanque para deputados estaduais e vereadores. 

Tudo começou, como nota a reportagem do El País, com um vazamento – que, aliás, deveria ser investigado. No dia 8 de agosto, a criança deu entrada no Hospital Roberto Silvares, localizado na cidade onde mora, São Mateus (ES). Estuprada pelo marido de uma tia desde os seis anos, ela engravidou. Mesmo a ultrapassada legislação brasileira lhe assegurava duplamente o direito ao aborto, por ter sido vítima de violência sexual e pelos riscos físicos e psicológicos de uma gestação indesejada na sua idade. Ao invés de ter acesso ao que lhe era de direito, a criança foi exposta. Seu caso foi parar nas redes sociais da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Damares Alves começou uma campanha para pressionar a menina de dez anos a levar a gravidez forçada adiante. Prometeu ‘ajudá-la’. Não satisfeita, a ministra enviou na quinta-feira “emissários” à cidade capixaba. 

Por sua vez, a Prefeitura de São Mateus levou, sem necessidade, o caso à Justiça. Os procedimentos de interrupção decorrentes de estupro devem ser oferecidos pelos serviços de saúde, sem necessidade de a vítima apresentar boletim de ocorrência ou autorização judicial. 

No sábado (15), o Tribunal de Justiça do Espírito Santo autorizou o aborto. Mas a equipe do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual do Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes, em Vitória, se recusou a realizar o procedimento. Justificaram que a idade gestacional não estaria amparada pela legislação que permite o procedimento no país. A menina estava com 22 semanas e quatro dias de gestação. Os profissionais ignoraram o código penal e a norma técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, editada em 2005 pelo Ministério da Saúde – que, no entanto, foi lembrada pelo juiz Antônio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e da Juventude –, e prevê que gestações avançadas podem ser interrompidas. A menina foi referenciada para um serviço em outro estado. 

Mais uma vez, o bolsonarismo entrou em ação. Sara Giromini teve acesso ao processo, que deveria ser sigiloso, e publicou o nome da criança na internet. Nas redes sociais conservadoras, a viagem de avião a Recife foi divulgada. 

No Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros da Universidade de Pernambuco, uma aglomeração se formou a partir do meio dia de ontem. Grupos evangélicos e católicos que se dizem ‘a favor da vida’, tentaram invadir o hospital, impediram a entrada de profissionais de saúde – que tiveram que ser escoltados por policiais –, vandalizaram o local e, finalmente, chamaram a menina de dez anos de “assassina”. Tudo isso aconteceu com a liderança e apoio de vários parlamentares: os deputados estaduais Clarissa Tércio (PSC) e Joel da Harpa (PP) gravavam vídeos. Depois, se uniram a eles o deputado estadual e pastor da Assembleia de Deus Clayton Collins e a vereadora Michele Collins. O casal é do PP. 

Depois de um intenso processo de revitimização (que, aliás, não se sabe quando vai acabar), a criança conseguiu ter acesso ao seu direito reprodutivo, apesar de ter visto vários outros serem desrespeitados. Infelizmente, esse tipo tão particular de barbárie civilizatória que não poupa nada nem ninguém parece ter muitas chances de se multiplicar daqui pra frente, dado o contexto de escalada autoritária e conservadora no Brasil. 

EXPULSA

O Twitter suspendeu a nova conta da extremista Sara Giromini, que teve sua primeira página retirada do ar em julho como parte do inquérito das fake news. A rede social confirmou a suspensão da conta, mas não disse qual regra foi violada. Na última terça-feira (18), a extremista teve seu canal no YouTube excluído pela plataforma após expor a identidade e a localização de uma criança de 10 anos, que ficou grávida após ser vítima de estupro e fez a interrupção da gravidez garantida por lei.

NA PEQUENA CIDADE

Em Várzea da Palma, cidade mineira com menos de 40 mil habitantes, um homem passou 30 anos realizando atividades religiosas e culturais que envolviam um grupo muito específico: mais de cinco mil crianças e adolescentes de nove a 14 anos passaram pelas suas mãos. Dinamá Pereira de Resende era tão popular com suas rezas, danças, brincadeiras e palhaçadas, que ganhou o apelido de ‘Dinamá das Crianças’. Quando Ana Paula, que hoje tem 25 anos, decidiu denunciar o estupro que sofreu aos nove, outras mulheres se reconheceram na história e tomaram coragem para fazer o mesmo.

Uma longa reportagemdo El País traz detalhes do inquérito policial finalizado este ano e que deu origem a uma ação penal, atualmente correndo na Justiça. Há pelo menos 14 mulheres e meninas que relatam abuso sexual, além de 16 testemunhas – mas o número de crianças estupradas pode ser muito maior. Algumas das vítimas contam que abusos aconteciam durante reuniões do ‘terço das crianças’, na casa de outras famílias, enquanto os adultos assistiam TV. “Ele passava a mão por dentro da blusa, apertava os meus seios e colocava os dedos dentro da minha vagina. Eu sabia que aquilo não era certo. Tentava sair, mas ele dizia que ia contar pra todo mundo que a gente estava atrapalhando a reunião. Eu olhava pra minha amiga e via que ele estava fazendo o mesmo com ela. Não consegui contar nada para ninguém”, narra Camila, uma delas. Um dos relatos mais tristes é o de Silmara Soares, enteada de Dinamá, que viveu sob o mesmo teto que ele por oito anos (dos seis aos 14) sofrendo estupros e ameaças. “Ele dizia que, se eu chegasse a contar para minha mãe, ele estourava o botijão de gás lá em casa e mataria ela e minha irmã”. 

DEBAIXO DO TAPETE

A assessoria especial de controle interno do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos detectou irregularidades em convênios firmados pela Secretaria Nacional da Juventude que, juntos, somam R$ 21,3 milhões. Os problemas teriam começado no governo Michel Temer e envolveriam o pagamento de bolsistas que, em tese, trabalham na implantação do Sistema Nacional da Juventude. Eles teriam sido escolhidos em processos seletivos com pouca ou nenhuma publicidade e transparência, sem necessidade de apresentar experiência na área. Suspeita-se que tenham sido deslocados para tarefas sem ligação com a tarefa para a qual foram contratados.

A assessoria recomendou em abril que Damares Alves encomendasse à Controladoria-Geral da União (CGU) uma auditoria e suspendesse as contratações até o fim das investigações. Segundo apurou o Intercept Brasil, a ministra não cumpriu a segunda orientação. Até o dia 15 de junho, todos os pagamentos tinham sido mantidos. Em julho, 36 bolsas foram pagas, ao custo de R$ 127,2 mil.  Na semana passada, a chefe da Secretaria Nacional da Juventude, Jayana Nicaretta, foi exonerada – mas continua no governo. Segundo a própria, vai para o Ministério de Minas e Energia.

RACISMO EM ALTA

Levantamento da CGU mostra que as denúncias de racismo no governo federal cresceram 160% entre janeiro e 14 de agosto, na comparação com o mesmo período do ano passado. E o órgão com mais denúncias é… o Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos. 

DATAFOLHA

Saíram mais dados da pesquisa Datafolha. Para 52% dos entrevistados, Jair Bolsonaro deve ser responsabilizado pelas mais de cem mil mortes ocorridas na pandemia do novo coronavírus. Mas apenas 11% deles o veem como principal culpado. E um contingente nada desprezível, de 47%, declarou que o presidente não tem culpa nenhuma pelos óbitos.  

Entre quem se declara empresário, grupo no qual Bolsonaro é mais bem avaliado (com 58% de aprovação), 28% responderam que o presidente tem muita responsabilidade pela disseminação do Sars-CoV-2. O índice é quase o mesmo da carga atribuída a governadores (27%).

Ainda de acordo com a pesquisa, a reprovação ao Congresso Nacional subiu de maio para cá, de 32% para 37%. A avaliação dos ministros do Supremo oscilou negativamente, com a reprovação passando de 26% para 29%. Os resultados apontam para a reversão de uma tendência de melhora na avaliação dessas autoridades, iniciada com a pandemia. Em comparação com dezembro, antes de qualquer notícia sobre o coronavírus, os parlamentares tinham rejeição de 45% e os ministros do STF de 39%. 

E 89% dos entrevistados afirmaram que pretendem se vacinar contra o vírus. Apenas 9% afirmaram que não têm essa intenção. Em comparação, 69% dos canadenses e 61% dos estadunidenses pretendem se vacinar. Há um otimismo, espelhado nas falas e promessas de autoridades, diga-se de passagem, em relação à liberação da vacina: 25% acreditam que isso vá acontecer ainda este ano, 46% dão o 1º semestre de 2021 como prazo, e 22% esperam que o imunizante esteja disponível no fim de 2021. Apenas 5% disseram não saber e ninguém respondeu que não vai ter vacina.

E AÍ?

Seis meses depois da chegada do coronavírus ao país, após muita pressão e até mesmo de uma determinação do STF, o governo federal finalmente apresentou seu plano para evitar a transmissão nas aldeias. Só que ele deixa de fora nada menos que 70% das terras indígenas brasileiras. Segundo O Globo, que obteve o documento, apenas 163 das 537 terras indígenas (excluindo as que têm povos isolados) aparecem como beneficiadas pelas medidas. Além disso, o plano não traz nenhuma ação para conter os invasores – o que não surpreende nem um pouco. “Um plano extremamente deficitário, com objetivos e metas que não priorizam salvar vidas indígenas. Além de demostrar de forma clara que o governo não esta aberto ao diálogo intercultural, pois não acatou as contribuições oferecidas no âmbito do grupo de trabalho”, critica o advogado que representa a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) no Supremo, Eloy Terena. A Apib encaminhou uma petição ao ministro Luís Roberro Barroso pedindo que o Supremo determine a revisão do documento.

E há uma situação urgente para se resolver. Há cerca de uma semana, um grupo de dez a 20 índios isolados fez contato com a aldeia Terra Nova, na fronteira do Acre com o Peru. A Apib pediu ontem ao STF e ao Gabinete de Segurança Institucional que se decida o que fazer. O Ministério Público Federal deu 48 horas para Funai e a Sesai fornecerem dados epidemológicos dos povos localizados na região do rio Envira, onde foi feito o contato. Até onde se sabe, não há casos confirmados na região, mas relatos de moradores com sintomas. Adivinhem? No local, não havia nenhuma barreira sanitária instalada pelo governo federal.

VETOS CONTESTADOS

Os vetos de Jair Bolsonaro ao projeto que previa medidas de proteção aos povos indígenas , quilombolas e outras comunidades tradicionais na pandemia (para quem não lembra, o presidente barrou até o artigo que obrigava o governo federal a garantir água potável) foram contestados pela ONU. Em carta enviada à Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o organismo afirma que o Estado brasileiro deve adotar “medidas afirmativas concretas”. Um dos maiores problemas apontados é que, por meio de um dos vetos, o Executivo se recusa a assegurar um orçamento. Assim, o plano nunca poderia vingar, mesmo que os outros vetos fossem retirados. “É dever do Estado brasileiro garantir que as medidas listadas neste ato legislativo possam ser implementadas, a fim de proteger concretamente os povos indígenas, quilombolas e pescadores artesanais no Brasil em face dos efeitos da covid-19”, diz o documento, segundo o colunista do UOL Jamil Chade. 

AO CENTRÃO VERDE-OLIVA, TUDO

Se tudo der certo, no ano que vem o Brasil terá de preparar uma campanha de vacinação sem precedentes. Embora esteja claro que grupos de risco precisam ser priorizados, o país tem mais de 210 milhões de habitantes; e 89% dos brasileiros querem ser vacinados contra o novo coronavírus, segundo o Datafolha. Para efeito de comparação, a campanha de imunização contra outro vírus pandêmico, o H1N1, iniciada há dez anos, atingiu nesse período pouco mais de 89,5 milhões de pessoas. Além disso, o país experimentou uma das maiores quedas do mundo na cobertura vacinal durante a pandemia – e já vínhamos de um 2019 em que nenhuma das vacinas dadas a crianças de até um ano de idade havia alcançado a meta necessária para proteger as novas gerações de doenças como tétano, poliomielite e sarampo. Para não falar de toda a demanda represada por atendimentos e exames voltados a outros problemas de saúde, e na continuidade dos casos da covid.

É nesse contexto que o governo federal escolhe suas prioridades. Que, ao que tudo indica, estão em rota de colisão com as necessidades da população. De acordo com O Globo, Jair Bolsonaro deu aval para que o Ministério da Defesa receba R$ 2,2 bilhões a mais em 2021, num total que chega a R$ 110,1 bilhões. Já o Estadão revela que boa parte desse reforço orçamentário pode vir das verbas que seriam destinadas ao Censo Demográfico. A pesquisa do IBGE, fundamental para o planejamento das políticas públicas do país, já teve que ser adiada esse ano por causa da pandemia e, nos planos do bolsonarismo, poderia ser empurrada para 2022. Apuração do jornal confirma o empenho do presidente, que enviou ofícios ontem e segunda-feira determinando o aumento que daria não R$110 bi, mas R$ 111 bi à Defesa. 

Já destacamos por aqui que o Ministério da Educação deve perder 13% das verbas no ano que vem e ganhar R$ 102 bi, bem menos do que a pasta da Defesa, o que “não faz nenhum sentido”, conforme críticou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Mas a perplexidade não tem fim: hoje, O Globo revela que o próprio MEC quer abrir mão de verbas em favor da Defesa. Isso se daria no âmbito do programa das escolas cívico-militares, promessa de campanha de Bolsonaro que funciona como mais uma fonte de rendimentos para militares inativos que, sem experiência na área, são plantados em colégios públicos país afora com a tarefa de disciplinar estudantes e administrar as unidades. Como a Defesa paga esse pessoal, o MEC estaria disposto a destinar mais verbas à pasta, num incremento do programa que passaria a R$ 108 milhões em 2021, contra R$ 54 milhões destinados este ano.

Mas a inversão de prioridades não para por aí: a verba do Ministério da Saúde em 2021 também será menor, se depender de Bolsonaro. “É como se o governo achasse que a covid-19 vai simplesmente sumir no dia 31 de dezembro de 2020”, resumiu Luiza Pinheiro, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em entrevista ao Estadão. A ideia é cortar R$ 7 bilhões da pasta, se compararmos com o orçamento inicialmente previsto para 2020, ou R$ 47 bilhões, se levarmos em consideração o recurso extra autorizado para o enfrentamento da pandemia. O orçamento seria de R$ 127,7 bilhões – um valor que não daria nem para honrar o compromisso constitucional da União com o financiamento do SUS, conforme aponta o economista Francisco Funcia, do Conselho Nacional de Saúde, na mesma reportagem. De acordo com ele, faltariam R$ 10 bi, e a lacuna teria de ser preenchida com recursos destinados por emendas parlamentares. 

Outro que deve perder é o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Segundo O Globo, em 6 de agosto a pasta enviou um ofício à equipe econômica alertando que os R$ 6,5 bi previstos para 2021 seriam insuficientes para manter projetos de pesquisa em andamento, o que afetaria inclusive os estudos sobre a pandemia. Marcos Pontes pediu mais R$ 1,8 bi, mas Paulo Guedes concedeu apenas R$ 100 milhões… 

Além da Defesa, que é o tipo de escolha que não tem justificativa alguma a não ser agradar o centrão verde-oliva consorciado com o bolsonarismo, o governo seguiu o conselho do filho 01 do presidente e separou “um dinheirinho” para obras. O Ministério do Desenvolvimento Regional comandado por Rogério Marinho deve ganhar mais R$ 846 milhões em 2021 (total: R$ 8,2 bi).

Já a transferência de renda, que é o carro-chefe da renovada popularidade presidencial, não deve entrar na proposta orçamentária que precisa ser enviada pelo governo ao Congresso até o fim do mês. Segundo o Valor, o programa Renda Brasil será incluído durante a tramitação do PLOA. Rodrigo Maia, que hoje toma café da manhã com Bolsonaro, disse ontem que o Executivo precisará dizer quais despesas serão cortadas para viabilizar o programa, que, ao que tudo indica, deve dar uma sobrevida focalizada e mais barata ao auxílio emergencial concedido a trabalhadores informais, mas tem como objetivo principal enterrar a marca Bolsa Família. “O governo quer acabar com o seguro-defeso, o abono salarial, cortar os recursos do Sistema S. O governo tem base para fazer isso?”, questionou o presidente da Câmara. 

Já a Instituição Fiscal Independente do Senado propõe que o governo apresente um PLOA que estoure o teto de gastos, mas defende que os gatilhos da EC 95 comecem a valer. Isso aconteceria sem necessidade de aprovar nada no Congresso, bastando uma consulta ao Supremo e ao TCU para garantir “segurança jurídica”. Segundo a Instituição, os gatilhos abririam um espaço de R$ 40 bilhões no orçamento. Eles são muitos, e vão desde a proibição do reajuste salarial para funcionários públicos (inclusive militares) à exoneração de servidores que ainda não atingiram a estabilidade, passando pela redução temporária de jornada do funcionalismo, com cortes proporcionais nos vencimentos. Os senadores não topam, segundo o Estadão.

TAS PASSA VEXAME

Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o humorista Marcelo Adnet confessou que se considera uma pessoa de esquerda. O comentário desagradou o jornalista e apresentador Marcelo Tas, que disse não existir humoristas em Cuba ou China.

O humorista e escritor Gregório Duvivier foi às redes sociais para criticar Tas. “Ele acha que não é partidário, só por não se dizer de direita, ou de centro, ou sei lá o que acha que é. Se você não é transparente quanto às suas adesões, não deveria culpar o humorista que é”, disse. O humorista também aproveitou para divulgar o filme de comédia cubano, Juan de los Muertos, como forma de contra-argumentar sobre a acusação de que não teria humoristas.

“Se a pessoa fizesse o mínimo de pesquisa iria descobrir que Cuba tem humor pujante, e reconhecido mundialmente. Pra dar um exemplo só, Juan de Los Muertos, uma comédia de zumbis que ganhou o prêmio Goya. Difícil de achar? Tá inteirinho no YouTube”, disse.

Na réplica, Marcelo Tas tentou minimizar as críticas feitas dizendo que era “lacração. Tas ironizou um dos tuítes publicados pelo humorista que citava um dos diversos exemplos de humoristas cubanos – que o ex-CQC disse não existir. “Gregorio foi passar pano pra Cuba e só conseguiu mandar UM link com humor cubano. Mesmo assim, o link não abre. A lacração de Duvivier brochou mais uma vez”, escreveu Tas, que já fez humor em Cuba.

Mas acabou levando uma nova invertida.

O ativista e ex-deputado Jean Wyllys fez uma sequência de publicações no Twitter criticando a postura de Marcelo Tas. “A fala de Tas é uma manifestação de ignorância arrogante e um esforço de mistificação que me levam a crer que a direita brasileira so abriga desonestos intelectuais profundamente ressentidos com ditaduras e autocracias que não sejam as suas”, definiu Wylls.

O humorista Rafinha Bastos, ex-apresentador do programa CQC ao lado de Marcelo Tas, comentou sobre as críticas ao ex-colega. “Só agora vcs perceberam que o Tas é o véio da Havan?”, questionou Bastos no Twitter, em referência ao empresário bolsonarista Luciano Hang, dono das lojas Havan. “Talvez seja a hora de publicar o meu livro A VERDADEIRA HISTÓRIA DO CQC. No aguardo do contato de alguma editora interessada”, completou. O programa é apontado como uma das principais vitrines para o então deputado Jair Bolsonaro em rede nacional. Em vídeo publicado em maio, Bastos chegou a assumir que o programa teve sim responsabilidade na projeção de Bolsonaro nacionalmente.

Marcelo Tas já fez humor em Cuba. Em 1985, ele encarnou o repórter Ernesto Varela na ilha caribenha, fez piadas com a população e ainda registrou um chamado à revolução.

Marcelo Adnet abriu espaço no programa Sinta-se Em Casa na quarta-feira (19) para a polêmica gerada pelo jornalista Ma

EM CAMPANHA 

Viralizou ontem um vídeo gravado na viagem que Jair Bolsonaro fez a Aracaju para inaugurar uma usina termoelétrica. E ela é o avesso do protocolo presidencial: mostra o chefe do Executivo brasileiro colocando no colo um homem com nanismo.  

Toda essa campanha de Bolsonaro para capitalizar o auxílio emergencial e dirigida principalmente ao Nordeste tem como pano de fundo um cenário mais complexo, que é explorado em uma reportagem de João Pedro Pitombo. Na região, onde a aprovação do presidente subiu de 27% a 33% segundo o Datafolha, há visões conflitantes do presidente, principalmente por conta dos escândalos de corrupção que o cercam e sua resposta à pandemia. 

Aliás, ontem Bolsonaro proferiu a seguinte pérola: “No meu entender, não vi no mundo quem enfrentou melhor essa questão que o nosso governo“.

GENTE DE BEM 1

Os ataques de conservadores à menina de 10 anos que realizou aborto para interromper gravidez provocada por estupros – que ocorreram por 4 anos – chocaram as redes sociais após a extremista Sara Winter cometer crime ao divulgar nome e endereço de onde a criança realizaria o procedimento – autorizado judicialmente. Além das ações em frente ao hospital que recebeu a criança, diversos comentários feitos por fanáticos religiosos e seguidores do presidente Jair Bolsonaro chamaram atenção nas redes sociais. Um deles foi feito pela beata Sonely Almeida, que diz ser voluntária da Paróquia Santa Teresinha do Menino Jesus. Um exemplar de “cidadã de bem”.

“Quatro anos sendo estuprada até se engravidar e não falar nada com ninguém? Será que ela é tão inocente assim? Me perdoa! A maioria das mulheres de hoje estão pior que cachorras no cio. Na minha comunidade tem crianças de dez anos que já estão com dois filhos nos braços. Estamos vivendo num mundo cruel. Onde perderam completamente o temor de Deus. Mais uma inocente que vai pagar pelos erros dos pais. Se o pai e a mãe cuidasse dela como deveria, certamente isso não estava acontecendo com ela”, disse em comentário feito no Facebook.

Sonely tem diversas fotos com logomarcas do presidente Jair Bolsonaro, tanto das eleições de 2018, quanto do partido Aliança Pelo Brasil – que o ex-capitão pretende criar. Se coloca nas redes como uma fiel apoiadora do presidente, uma bolsonarista raiz, e compartilha selfies com passagens bíblicas.

Depois de publicação, Sonely Almeida escreveu que seu perfil foi hackeado e que o post era fake. A foto do perfil de Sonely foi mudada para uma imagem com flores. Ela tirou do Facebook sua descrição, mas ainda é possível encontrar várias publicações da paróquia Santa Terezinha do Menino Jesus de Goiânia (GO), que ela dizia frequentar, e muitas postagens apoiando o presidente Jair Bolsonaro. A mulher pede calma a quem passa por seu perfi, dizendo que não foi ela quem escreveu “aquilo”. Diz que foi hackeada e estava “assustada” com a repercussão.

GENTE DE BEM 2

A secretaria de Educação de São Paulo anunciou a demissão de uma professora que compartilhou um comentário nas redes sociais minimizando a violência que sofreu a menina de 10 anos que foi abusada sexualmente do tio por 4 anos. A criança fez um aborto, no domingo, após ser constatada gravidez. “Criança se defende chorando pra mão, está menina nunca chorou porque? Não foi nenhuma violência, ela já tinha vida sexual há quatro anos com esse homem. Deve ter sido bem paga”, afirmou a profissional de educação básica Eliana Nuci de Oliveira, de Guarulhos, em comentário no Facebook. A identidade da professora foi exposta pelo perfil Anonymous Brasil e compartilhada pela deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ). “O cidadão de bem nunca falha”, escreveu a parlamentar. O secretário Rossielli Soares da Silva informou à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, que a professora foi demitida “imediatamente para não estar próxima de nossas crianças e jovens”. “É um absurdo uma profissional que deve ser educadora e defensora da infância afirmar que não é uma violência. Repúdio total a qualquer um que defenda um absurdo”, disse o secretário.

FRASES DA SEMANA

“Seria triste se os ricos tivessem prioridade para a vacina contra Covid-19. Seria triste se a vacina se tornasse propriedade desta ou daquela nação, se não fosse universal e para todos. Precisamos sair melhor da pandemia”. (Papa Francisco)

“Tem algum médico aí? A eficácia dessa máscara é quase nula”. (Jair Bolsonaro, depois de ouvir de uma apoiadora, à entrada do Palácio da Alvorada, que ela só tiraria fotos com ele quando não precisasse mais do acessório. O mundo todo deve estar errado, só Bolsonaro certo)

“Há quatro anos o Conselho Nacional do Ministério Público adia o dever de julgar o pedido de abertura de processo contra Deltan Dallagnol. São 41 adiamentos. O caso vai prescrever e o Conselho sinaliza que todo abuso de autoridade é permitido”. (Gleisi Hoffmann, presidente do PT) 

“A classe alta procura o aborto com maior frequência do que a classe desfavorecida. O Brasil é o país da hipocrisia. A defesa da vida é uma falácia.” (Olímpio de Moraes Filho, diretor do hospital no Recife onde foi interrompida a gravidez da menina de 10 anos estuprada pelo tio)

“Aborto legal, seguro e gratuito para não morrer. Pela vida das meninas e das mulheres. Legaliza. O corpo é nosso, é nossa escolha”. (Jogral de mulheres que, no Recife, apoiaram decisão da Justiça que autorizou o aborto de uma menina de 10 anos, estuprada pelo tio desde os 6.) 

“Ouça um bom conselho que eu lhe dou de graça: inútil dormir que a dor não passa. Espere sentado ou você se cansa. Está provado, quem espera nunca alcança”. (Chico Buarque de Holanda, na música ‘Bom Conselho’)

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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