28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Condenados

Publicado em 13/08/2020 12:00 -

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Ela imaginou que o último lugar no mundo em que as pessoas teriam contato com o novo coronavírus seria um presídio. Achava que, confinado na prisão, o marido estaria naturalmente em isolamento social. Só soube que ele havia testado positivo para covid-19, quando o companheiro já se encontrava intubado, em estado grave, numa Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Maria — vamos chamá-la assim — precisou entrar na justiça para ter acesso ao boletim médico diário e agora passa o tempo à espera das notícias que lhe chegam por meio de telefonemas. Se a assistente social demora a ligar, entra em desespero. O episódio foi narrado durante o Sala de Convidados (25/6), programa exibido pelo canal Saúde, da Fiocruz. “Eu estou com medo, em frangalhos”, disse a mulher que não quis se identificar.

Ao contrário do que suspeitou Maria, dadas a superlotação e as condições insalubres, é provável que não exista um local onde se tenha maior probabilidade de contágio de covid-19 do que as unidades prisionais do Brasil. Como denuncia um documento enviado à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA), no final de junho (23/6): “O modelo das prisões brasileiras é constituído por diversas inconstitucionalidades que sustentam uma engenharia de produção de doenças e morte”. No relatório, 200 entidades fazem um “apelo urgente” para a situação das mais de 750 mil pessoas privadas de liberdade no país — número que corresponde à terceira maior população carcerária do planeta. “Não há assistência médica, ventilação adequada, acesso à água para a realização da limpeza pessoal e dos espaços, distribuição de itens básicos de higiene, suporte de medicamentos e alimentação nutricional”, assinalam, chamando a atenção para a possibilidade de “colapso” diante da pandemia.

No momento de envio do documento, segundo o painel de monitoramento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen/Ministério da Justiça), tinham sido testados apenas 11.015 presos. Entre esses, havia 960 casos suspeitos e 3.735 infectados (2.086 recuperados), além do registro de 59 óbitos. Mesmo desconsiderando a subnotificação, um balanço divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em junho, apontava para um aumento de 800% nos casos de infecção pelo novo coronavírus em relação ao mês anterior. No início de julho (1/7), apenas o sistema prisional do Distrito Federal contabilizava mais de 1,6 mil infectados. Dados sistematizados pela plataforma “Covid nas Prisões” — uma parceria do Instituto de Estudos da Religião (Iser) juntamente com órgãos do sistema de justiça e sociedade civil — alertam para o fato de que o novo coronavírus vem se alastrando como um rastilho de pólvora nos presídios.

“Se a gente estima que, na população em geral, cada infectado transmite para duas ou três pessoas, no caso das prisões, o contágio é muito maior”, disse Alexandra Sánchez, pesquisadora da Fiocruz, durante um debate onli-ne (25/5) promovido pelo Centro de Estudos Miguel Murat de Vasconcellos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ceensp). Em celas superlotadas, cada infectado pode transmitir para até 20 pessoas. Ao usar uma situação hipotética para demonstrar a necessidade de ações para bloquear a propagação do vírus, Alexandra exemplificou: numa cela com 150 presos, o que não é raro em prisões do Rio de Janeiro, em apenas 21 dias, uma pessoa pode contaminar a totalidade do ambiente.

À Radis, a pesquisadora explica que, além dos riscos relacionados à covid-19, a chegada do novo coronavírus tornou ainda mais evidentes as fraquezas da saúde prisional e da assistência voltadas a essa população. Segundo Alexandra, a pandemia direcionou para seu enfrentamento grande parte das atividades de saúde e recursos humanos, já escassos em tempos normais, o que contribui para o agravamento de doenças preexistentes como a tuberculose — cuja incidência é 30 vezes maior dentro das prisões — e o tratamento de doenças crônicas também negligenciado com interrupção das consultas em especialidades. “Estamos muito preocupados com a situação da saúde após a pandemia”, reforça. [Leia entrevista completa aqui]

Mas para Alexandra, integrante do grupo de pesquisa Saúde nas Prisões, da Ensp/Fiocruz, há outras implicações da covid-19 na vida das pessoas privadas de liberdade que são tão nocivas quanto os riscos sanitários. Numa medida extrema, a Justiça proibiu as visitas de familiares aos presídios, assim como de defensores públicos e órgãos de inspeção e fiscalização — contrariando recomendação da OMS que determina que a pandemia nas prisões não deve ser acompanhada da redução de direitos fundamentais. A pesquisadora lembra que, dessa maneira, as únicas informações disponíveis são fornecidas pela administração penitenciária, o que gera uma série de imprecisões. Vide o exemplo do Rio, que negou a existência de casos suspeitos até meados de abril, quando ocorreram seis mortes em uma unidade prisional para idosos. Na sua opinião, o fechamento das prisões sob o argumento de proteção é um dos efeitos mais deletérios da pandemia. “Devem ser ressaltadas as fortes implicações emocionais para os presos e seus familiares, diante da falta de comunicação e de informações”.

Em um debate (22/5) sobre o tema transmitido pela TV 247, no YouTube, a advogada Luciana Boiteux, recordou o drama das mães que não conseguem visitar os filhos nos presídios. Para a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o que está ocorrendo é desumano. Luciana usou dados do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) — órgão independente ligado ao Ministério de Direitos Humanos — para ressaltar que são necessárias providências urgentes de contenção da pandemia no cárcere. “Da forma que está hoje, não há como traçar medidas de prevenção”, insistiu. “Estão trancando os presos e jogando a chave fora”.

Proibido visita: vamos à luta

A carioca Rute Sales é uma aguerrida militante do movimento de mães cujos filhos foram assassinados pelo Estado ou entraram no sistema carcerário. Quando fala da atual situação das famílias de pessoas em privação de liberdade, faz questão de demonstrar por que a chegada da pandemia no cárcere é um genocídio. “Se fora dos muros nós não estamos encontrando um hospital para nos internar, se não temos acesso a respiradores, se a maioria de nós está morrendo, você imagina dentro do sistema prisional”, alerta. Em tempos de covid-19, ela diz, parece que as políticas públicas todas “desapareceram”. “A única coisa que a gente ouviu do governo, e com ressalvas, foi o pedido de quarentena. Mas não teve nenhum plano que assegurasse proteção e garantia de direitos fundamentais”.

Uma das fundadoras da ONG Movimento Moleque, a própria Rute conhece de perto a realidade do sistema penal brasileiro. Quando seu filho se envolveu em um delito por conta de uma briga de rua motivada por uma camisa do Flamengo, ela viveu os piores dias de sua vida. Aos 14 anos, o garoto foi parar em uma unidade socioeducativa. “A primeira coisa que acontece a um jovem, preto, de favela, quando chega em lugar como aquele, é a perda da identidade. Ele vira um número”. Sem poder fazer muita coisa, viu o filho quase morrer depois de apanhar de cassetete durante uma rebelião. “Nós, as mães, ficamos muito sozinhas com a nossa dor. E ainda somos taxadas de culpadas”. Da experiência terrível, conseguiu juntar forças para reunir mães em torno de uma causa comum: a defesa dos direitos de adolescentes presos em unidades socioeducativas e de seus familiares. “Nosso sistema carcerário, lotado com uma massa de gente preta, é perverso e racista”.

A entrevista que Rute concedeu à Radis aconteceu menos de um mês depois dos assassinatos de dois jovens no Rio de Janeiro: João Pedro, de 14 anos, baleado pela polícia dentro da casa dos pais, no Complexo do Salgueiro (18/5), e João Vitor, 18, atingido por um tiro enquanto realizava a distribuição de cestas básicas na favela Cidade de Deus (20/5). “Quando você mata um filho, mata também uma mãe. É como se acontecesse com cada uma de nós”, afirma. Naquela semana, ela estava a mil, dividindo-se entre as articulações para garantir às famílias o direito de visita aos presídios e as atividades para denunciar operações policiais que continuam acontecendo nas favelas do Rio, a despeito de uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) proibir que ocorram nesse período.

“A única política pública que chega para as periferias é o braço armado do Estado. Invadem nossas casas, matam nossos filhos, entram sem responsabilidade nas comunidades e atingem pessoas que estão tentando se proteger de um vírus”, resume. “Estamos vivendo uma pandemia da violência”. Para Rute, é inadmissível que seja negado às famílias o direito à visita e a informações sobre o estado de saúde dos parentes presos. “Em épocas normais, somos nós, os familiares, que levamos do sabonete à comida para os presídios. Como eles estão sobrevivendo agora?”, indaga, antes de partir para a organização de mais uma campanha solidária. [Leia entrevista completa aqui].

Sem informação, sem saída

Desde o início da pandemia, pesquisadores, organizações da sociedade civil e defensores de direitos humanos vêm questionando as falas oficiais que insistem em afirmar que a situação nos presídios está sob controle, como declarou mais de uma vez o então ministro da Justiça Sergio Moro (13/4). “Além de desinformar, estão atravancando o debate público. É uma verdadeira babel. Nada comunica com nada”, disse Felipe Freitas, membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), ao criticar o discurso negacionista durante o “Papo de Janela” (6/5), programa de entrevistas exibido no YouTube. Ele integra o projeto “Infovírus: Prisões e Pandemia”, criado exatamente para monitorar o avanço da pandemia no sistema prisional, cruzar dados e verificar contradições.

De acordo com o Infovírus, somente no Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal, mais de 900 pessoas se infectaram em um período de 15 dias (entre 22 de maio e 7 de junho), enquanto no Rio Grande do Sul, em menos de uma semana, os casos saltaram de 21 para 135 (entre 26 de junho e 1o de julho). Com atualizações sistemáticas e resumos semanais, em 7 de julho, o projeto denunciava que mais de 223 presos no Paraná testaram positivo para covid-19 sem que isso tivesse sido calculado no painel do Depen. No Acre, até aquela data, 26 policiais penais e 13 servidores administrativos do sistema carcerário já haviam sido diagnosticados com o vírus. “O quadro é assustador”, declarou Felipe, listando o tamanho do dano: “Perdemos as primeiras fases de prevenção; perdemos a fase em que os agentes deveriam ter sido isolados; perdemos a fase da testagem em massa dos presos; e perdemos a fase de tentar soltar o maior número de pessoas para que tivéssemos algum distanciamento social”.

Em meados de março (17/3), houve uma tentativa por parte do CNJ de conter a pandemia nos presídios, ao aprovar a Recomendação 62 — que prevê prisão domiciliar ou reavaliação de pena para presos pertencentes a grupos de risco e que não tenham cometido crimes violentos. Apesar de caracterizada pelas Nações Unidas como exemplo de boa prática, a orientação não vem sendo cumprida por muitos juízes. “Há um intenso debate com base em uma falsa dicotomia”, diz Alexandra Sánchez. “De um lado, uma concepção de segurança pública que vê grande risco para a sociedade na libertação de presos e, do outro lado, a percepção do risco de infecção e de morte por covid-19 imposto às pessoas encarceradas”.

Mas segundo a pesquisadora da Fiocruz, medidas de desencarceramento como essa são urgentes e indispensáveis para reduzir a superlotação que, em algumas unidades prisionais, chega a alcançar a absurda taxa de 300% de ocupação. Para Felipe, quando se recusam a seguir a Recomendação 62, os juízes não estão apenas negando liberdade a um preso. “Uma pessoa de 70 anos que tem comorbidade ou algum problema respiratório e está em uma sala superlotada, sem nenhum tipo de ventilação, sem água potável, sem banho, com alimentação estragada e agora também sem visita da família, essa pessoa vai morrer”, ele diz. “Um juiz que sabe disso e mantém a prisão dessa pessoa, está condenando essa pessoa à morte”.

Em vez de estratégias de desencarceramento, o governo vem trilhando caminhos que, na opinião dos pesquisadores, têm deixado as populações prisionais ainda mais suscetíveis à covid-19. É o caso da proposta de construção de contêineres que deveriam abrigar detentos com suspeita de contaminação e presos recém-chegados às unidades. Segundo o Ministério da Justiça, esses espaços teriam estrutura semelhante às de hospitais de campanha. Mas uma nota de repúdio assinada por oito entidades de advocacia considerou a proposta violadora de direitos humanos “não só por não solucionar o problema, mas justamente por consistir numa promessa de agravamento das mesmíssimas condições degradantes que fizeram das prisões lugares tão vulneráveis ao novo coronavírus”. Em 15 de maio, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária derrubou a proposta. Outra medida anunciada e que mereceu severas críticas, inclusive da imprensa, foi a que destinava crédito extraordinário para a compra de armas não letais — entre elas, granadas, munições e sprays — a serem usadas dentro das unidades prisionais no combate a possíveis rebeliões nesse período. O projeto Infovírus alertou para o perigo da medida do Depen — que, em documentos de comunicação interna, reconhecia o aumento da tensão em razão da suspensão de visitas e da manutenção de pessoas de grupos de risco nos presídios. “Na prática, isso era mais uma ameaça aos presos e seus familiares”, alertou Felipe. Recentemente (6/7), uma nova decisão deixa a população privada de liberdade ainda mais exposta aos riscos da doença: entre os vetos do presidente Jair Bolsonaro à legislação sobre uso de máscaras, está aquele que acaba com a obrigatoriedade de utilização do equipamento nas prisões.

A falta de transparência em relação à realidade no cárcere e a pouca adesão às medidas de desencarceramento nesta pandemia dificultam os procedimentos para contenção e tratamento da doença intramuros. De acordo com Alexandra Sánchez, que assina uma Nota Técnica da Fiocruz sobre enfrentamento da covid-19 nas prisões do estado do Rio de Janeiro, o primeiro grande desafio que se coloca é a efetiva inclusão da população privada de liberdade nas políticas públicas e no SUS. “Isso permitiria acesso a insumos como Equipamento de Proteção Individual (EPI) e teste para diagnóstico, acesso a rede de saúde extramuros com definição de fluxo de pacientes para hospitais públicos em caso de agravamento e, principalmente, o planejamento, com embasamento científico, juntamente com as secretarias de saúde, de medidas efetivas de prevenção da transmissão e de vigilância epidemiológica adequadas”, avalia.

Outro aspecto importante, segundo a pesquisadora, é a necessidade de rápida identificação, entre ingressos e na população já encarcerada, das pessoas com suspeita clínica de covid-19 e disponibilização de local adequado para seu isolamento e testagem para confirmação laboratorial. Entretanto, ela sinaliza que essas medidas esbarram em uma série de dificuldades. “Com exceção do Distrito Federal, que destinou unidade prisional especificamente para alocação de casos suspeitos com oferta de teste diagnóstico e equipe de saúde, não se tem notícia deste movimento em nenhum outro estado”, pondera. Talvez tudo isso reforce o argumento final de Felipe Freitas, no Papo de Janela. Diante de iniciativas que caminham na contramão do desencarceramento e da fragilidade das medidas sanitárias adotadas até aqui, ele sustenta: “O Estado brasileiro está em guerra. Uma guerra sistemática contra pessoas negras. Estamos matando”.


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