18/04/2024 - Edição 540

Brasil

‘Dia do Fogo’ completa 1 ano sem presos nem indiciados

Publicado em 13/08/2020 12:00 -

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Inquérito da Polícia Civil conclui que fogo foi alastrado pelo vento; já investigação da Polícia Federal, que apreendeu documentos e celulares de empresários e fazendeiros de Novo Progresso (PA) não avançou – racha entre policiais e vínculo de suspeitos com políticos podem ter atrapalhado investigações

Ninguém foi preso ou sequer indiciado um ano depois do ‘Dia do Fogo’, ataque organizado por produtores rurais e empresários de Novo Progresso, que triplicou os focos de incêndio no sudoeste do Pará nos dias 10 e 11 de agosto de 2019. As investigações realizadas pela Polícia Civil e pela Polícia Federal ainda não apontaram os culpados pelo episódio, que foi organizado em um grupo de WhatsApp e contou com uma ‘vaquinha’ para comprar combustível e contratar motoqueiros para espalharem as chamas, conforme detalhou a Repórter Brasil em outubro do ano passado. 

A devastação da Amazônia, que no ano passado atingiu níveis recordes da última década, despertou comoção mundial, mobilizando chefes de Estado a se posicionarem pela defesa da floresta. Neste ano, o período das queimadas na maior floresta tropical do mundo está só começando, mas os dados dos satélites já revelam aumento em relação ao ano passado. 

Um dos combustíveis para aumentos sucessivos na destruição da floresta é a falta de punição, avalia a diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Ane Alencar. “A impunidade é o câncer que alastra o desmatamento e o fogo na Amazônia”. 

A hipótese inicialmente investigada tanto pela Polícia Civil quanto pela Federal é a de que o “Dia do Fogo” foi organizado por empresários e fazendeiros de Novo Progresso, que chegaram a ser interrogados e tiveram documentos, celulares e computadores apreendidos na operação Pacto de Fogo, realizada pela Polícia Federal. 

Entre os investigados, está o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais, Agamenon Menezes. Os pecuaristas pressionam áreas de reserva, como a Floresta Nacional do Jamanxim, para criação de pastagens. Somente em Novo Progresso, uma cidade de 25 mil habitantes, o rebanho é de 618 mil bois.  

No entanto, o inquérito concluído pela delegacia de Polícia Civil de Novo Progresso afirma que o fogo naquele final de semana de agosto foi alastrado pelo tempo seco. Além disso, a Polícia Civil entendeu que as queimadas acontecem todos os anos. Apesar de tramitar sob sigilo, a Repórter Brasil apurou com policiais que o inquérito não aponta suspeitos nem responsáveis. 

A Polícia Federal, por sua vez, não concluiu a perícia nos equipamentos apreendidos na operação ‘Pacto de Fogo’. Também não finalizou o inquérito.“Estamos dependendo de análises dos conteúdos das mídias apreendidas. Infelizmente, com a pandemia tudo atrasou”, explica o delegado responsável pela investigação, Sérgio Pimenta.

Desde o ano passado, informações referentes ao inquérito da Polícia Federal não são encaminhadas para o Ministério Público Federal. O procedimento padrão é que as informações sejam compartilhadas com o MPF de três em três meses. O sentimento entre servidores da procuradoria é de desalento, apurou a Repórter Brasil. “Se esse inquérito ficar tanto tempo parado sem diligências vai ficar claro que não foi priorizado”, afirma uma das fontes entrevistadas pela reportagem, que pediu anonimato. 

Já o inquérito da Polícia Civil foi encaminhado para a Justiça e para o Ministério Público — sem apontar responsáveis. A promotoria afirmou, em nota, que pediu a devolução dos autos para delegacia para: “cumprimento de diligências pendentes e necessárias para melhor análise do feito”. Não detalhou, contudo, quais são as diligências, alegando que o processo é sigiloso. 

Um fator que atrapalhou as investigações, segundo relatos de policiais ouvidos de forma reservada pela Repórter Brasil, é que os  fazendeiros e empresários da região são bem relacionados com deputados e senadores do Pará, principalmente os que integram a bancada ruralista, além de terem interlocução com o alto escalão do governo federal. Outro fator que também contribuiu para o atraso nas investigações é um racha entre os policiais civis e federais no Pará.

Disputa entre policiais e jogo de interesses

A briga começou quando três policiais federais foram presos por policiais civis e militares em Novo Progresso – e chegaram a passar uma noite na delegacia até serem devidamente identificados –, em novembro de 2018. A prisão provocou o afastamento de um delegado da Polícia Civil de Novo Progresso. 

A disputa foi acirrada quando o delegado da Polícia Civil, Vicente Gomes, chefe da Superintendência da Polícia Civil do Tapajós, determinou que a delegacia de Novo Progresso não repassasse à Polícia Federal os depoimentos que haviam sido tomados na investigação do ‘Dia do Fogo’.

Gomes e outras autoridades da região fazem parte de um dos grupos de WhatsApp em que o ‘Dia do Fogo’ teria sido previamente combinado, chamado “Jornal A Voz da Verdade”, com 256 pessoas. Os detalhes do ataque incendiário, contudo, foram costurados em um grupo menor, chamado “Sertão”, com 70 integrantes, sem a presença do policial, conforme revelou a Repórter Brasil. À época da publicação da reportagem, Gomes afirmou que não iria comentar.

As investigações referentes ao “Dia do Fogo” também revelaram um descompasso entre as delegacias da Polícia Civil de Novo Progresso e de Castelo dos Sonhos (distrito de Altamira próximo a Novo Progresso). Enquanto os investigadores da delegacia de Novo Progresso tomaram depoimentos de fazendeiros e empresários influentes da região, o delegado de Castelo dos Sonhos prendeu três trabalhadores rurais sem-terra com a alegação de que eles eram suspeitos de serem os responsáveis pelo ataque incendiário e sincronizado na floresta. 

Os três sem-terra ficaram 50 dias presos e foram soltos por determinação judicial após a reportagem questionar os motivos da detenção. Uma das presas denunciava a presença de madeireiros clandestinos no assentamento em que viviam. “Quando os policiais chegaram na minha casa, pensei que eles vieram para prender os madeireiros, mas me prenderam”, contou para Repórter Brasil, em reportagem publicada em outubro de 2019.

Discurso pró-destruição 

A região afetada pelo “Dia do Fogo” envolveu territórios das cidades de Novo Progresso, Altamira, São Félix do Xingu e Itaituba. Naquele final de semana, os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) detectaram 431 focos de incêndio nas áreas das quatro cidades, o que representou 39% dos 3.026 focos de incêndio registrados em todo o Brasil no final de semana. As áreas mais atingidas foram a Floresta Nacional do Jamanxim e a Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo. 

O acordo entre fazendeiros e madeireiros que resultou no ‘Dia do Fogo’ foi revelado em 5 de agosto de 2019 pelo jornalista Adécio Piran, do site paraense Folha do Progresso. Após a publicação, Piran ficou fora da cidade por dois meses por conta das ameaças de morte que recebeu. Desde maio, Piran é o Secretário de Meio Ambiente da prefeitura de Novo Progresso.

Nas últimas décadas o país havia conseguido reduzir a área desmatada durante o período seco para cerca de 5 mil quilômetros quadrados na Amazônia. No último ciclo (entre agosto de 2018 e julho de 2019) a área destruída foi de 10 mil quilômetros quadrados. A previsão, segundo a diretora de Ciência do Ipam, Ane Alencar, é que entre agosto de 2019 e julho deste ano, a área destruída chegue a 15 mil quilômetros quadrados, de acordo com dados do Ipam. “É um reflexo da sensação de impunidade que estamos vivendo nesse governo”, afirma. 

Para ela, além da impunidade, outro fator que explica os sucessivos aumentos na destruição da Amazônia é que os criminosos que queimam e desmatam a Amazônia passaram a ser estimulados por discurso e atos que incentivam a destruição — fortalecidos desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). 

Mentira…

Na última terça (11), o presidente chegou a dizer, em videoconferência com líderes de países da região amazônica, por ocasião da 2ª Cúpula Presidencial do Pacto de Letícia, que “esta história de que a Amazônia arde em fogo é uma mentira”. Bolsonaro disse também que considera “injustas” as críticas sobre a preservação da Amazônia.

“Eu tenho convidado os embaixadores que têm interesse na Amazônia, por exemplo, na época do ano que eles bem entenderem a sobrevoar comigo entre as regiões de Boa Vista e Manaus. Em aproximadamente 600km, eles não acharão nenhum foco de incêndio, nem um quarto de hectare desmatado”, disse Bolsonaro.

“Por ser floresta úmida, como é em grande parte a dos senhores, não pega fogo. Esta história de que a Amazônia arde em fogo é uma mentira, e nós devemos combater isso com números verdadeiros, é o que estamos fazendo aqui no Brasil”, acrescentou o presidente.

Bolsonaro disse também haver “enorme” empenho de seu governo no combate a ilegalidades. Ele exaltou a diminuição de 28% em queimadas e desmatamento na Amazônia no mês de julho, mas omitiu em sua fala o aumento de 33% no acumulado em 12 meses.

“Mesmo assim, somos criticados, afinal de contas o Brasil é uma potência no agronegócio, ameaças existem sobre nós o tempo todo”, reclamou.

“Nós sabemos da importância dessa região para todos, bem como os interesses de muitos países outros nessa região. Também sabemos o quanto somos criticados de forma injusta por muitos países do mundo. Nós, com perseverança e verdade, devemos resistir. Esta região é muito rica, é praticamente o que restou no mundo no tocante a riqueza ambiental e mineral”, defendeu.

No país do presidente capitão a Amazônia está intacta            

As edições de quarta-feira (12) dos principais jornais do país ofereceram espaço tão generoso ao discurso de Bolsonaro durante a 2ª Cúpula Presidencial do Pacto de Letícia pela Amazônia que só pude imaginar uma coisa: ficaram tão chocados quanto eu fiquei, e irão refutá-lo ponto por ponto. Isso não aconteceu.

Sem tirar nem pôr, o discurso foi uma defesa apaixonada da mentira. Bolsonaro disse que “não há nenhum foco de incêndio, nem um quarto de hectare desmatado” na floresta. “É uma mentira essa história de que a Amazônia arde em fogo”. Segundo ele, a floresta amazônica permanece “intacta”.

Afirmou que em julho último, o Brasil apresentou redução de 28% no desmatamento em relação a 2019, mas não mencionou que os números totais indicam avanço de 34% no desmate. Os dados são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), alvo de críticas do presidente no passado.

Repetiu a conversa de que convidou embaixadores e representantes de outros países que defendem a proteção da Amazônia a sobrevoarem região entre Manaus e Boa Vista para confirmar que está tudo bem. E reforçou que, por ser uma floresta úmida, a Amazônia “não pega fogo”. Sim, “não pega fogo”.

Como se não bastasse, referiu-se ao seu como um governo que não tolera e muito menos incentiva a prática de crimes ambientais. Assegurou: “Nossa política é de tolerância zero, não somente para o crime comum, mas também para a questão ambiental. Combater os ilícitos é essencial para a preservação da nossa Amazônia”.

O desmatamento na Amazônia que será divulgado em novembro próximo será muito maior que o de 2019. As projeções indicam que a taxa deverá ficar entre 12 mil km2 e 16 mil km2, uma escalada de aumento de destruição da maior floresta tropical do planeta só comparável aos piores momentos de sua história.

Dados dos satélites do Inpe mostram que, até 9 de agosto, 23.749 focos de calor foram detectados na Amazônia. Um aumento de 1% em relação ao mesmo período do ano passado, que teve 23.420 focos. E a temporada de queimadas está só começando: historicamente, o pico de registros acontece no mês de setembro.

Um levantamento do Fakebook.eco, iniciativa do Observatório do Clima e uma rede de organizações da sociedade civil para combater a desinformação ambiental, revelou que, até 31 de julho, o Ibama gastou apenas 20,6% dos R$ 66 milhões autorizados para ações de fiscalização. É a execução mais baixa dos últimos anos.

A aplicação de multas também caiu: foram 3.421 autos de infração de janeiro a julho, uma queda de 52,1% em comparação com o mesmo período do ano anterior. Em 2019, primeiro ano em do governo Bolsonaro e do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, observou-se uma redução de 17% das multas ambientais.


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