28/03/2024 - Edição 540

True Colors

Entre LGBTs, pessoas trans, negros e indígenas estão mais vulneráveis aos impactos da pandemia

Publicado em 12/08/2020 12:00 - Andréa Martinelli - Huffpost

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“Ter que ficar ‘enclausurada’ com algum familiar que não entende e/ou respeita a sua orientação sexual é, ao passar dos dias, sufocante. Até um corte de cabelo vira motivo para algum problema.”
 

“Impacta um pouco, por que o mercado de trabalho não abre oportunidade pra nós, as portas são mais fechadas. É a dificuldade das trans travesti, homem trans passando no mercado de trabalho.”
 

“A minha sensação de solidão foi maior durante a pandemia, e eu acho que isso tem a ver com meu gênero. Também a minha necessidade de não conseguir permanecer em isolamento social, sem renda fixa. Tive de me expor mais.”
 

Os relatos acima pertencem ao estudo LGBT+ na pandemia, realizado pelo coletivo Vote LGBT+, em parceria com pesquisadores da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e a BOX1824, agência de cultura e inovação.

A pesquisa, que explora os desafios dessa comunidade diante do contexto da pandemia do novo coronavírus, foi realizada entre os dias 28 de abril e 15 de maio, por meio de formulário online, e recebeu mais de 10 mil respostas das cinco regiões do País. O resultado aponta para o diagnóstico de que pessoas LGBT vivem uma situação de grave vulnerabilidade no atual momento.
Para chegar ao resultado, pesquisadores criaram o Índice Vulnerabilidade LGBT+ em relação à covid-19 (VLC), um medidor inédito aplicado para a população de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. O índice, que vai de 0 a 1, mede a vulnerabilidade desta população levando em conta renda e trabalho, saúde e exposição ao risco de contaminação. Quanto mais próximo a 1, maior a vulnerabilidade do grupo analisado ao novo coronavírus.

O resultado aponta que todo o grupo de pessoas LGBT que respondeu à pesquisa apresenta um nível alto de vulnerabilidade no atual momento. Porém, pesquisadores dizem que pessoas trans (0,52) são as mais vulneráveis entre este grupo social, seguidas por pessoas pretas, pardas e indígenas (0,519). Dentro desta análise, pessoas bissexuais ficam em terceiro lugar (0,509), seguidas por lésbicas (0,491) e gays (0,473).

“Aplicar este índice aos nossos dados fez com que fosse possível observar melhor algumas questões que já são conhecidas e verbalizadas pelos movimentos sociais, mas que não eram quantificadas: as pessoas trans apresentam um índice maior de vulnerabilidade, assim como as pessoas pretas, pardas e indígenas em todos os pontos”, aponta Samuel Silva, demógrafo e pesquisador da UFMG e membro do coletivo Vote LGBT+.

O índice foi criado a partir de dados coletados pela pesquisa e inspirado no que já é realizado em estudos realizados pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas). Para chegar a este dado, a pesquisa aplicou questões sobre o nível de isolamento social praticado, o número de pessoas conhecidas que já foram diagnosticadas com coronavírus, o acesso aos serviços de saúde e o diagnóstico prévio de comorbidades.

O estudo também aponta que, mesmo entre o grupo social denominado como “LGBT”, a diversidade de identidade de gênero, raça e cor e orientação sexual aprofundam a condição de vulnerabilidade. Pretos, pardos e indígenas, por exemplo, possuem 22% mais chance de indicar falta de dinheiro como a maior dificuldade da quarentena do que brancos e asiáticos.

Os 3 pontos que mais impactam a população LGBT na pandemia

Para além do índice, a pesquisa também concluiu que há três pontos que impactam de forma intensa a vida de pessoas LGBTs durante a pandemia: piora na saúde mental, afastamento da rede de apoio e falta de fonte de renda. 

Entre os entrevistados, 54% afirmaram precisar de apoio psicológico neste momento. Um em cada 2 LGBTs de 15 a 24 anos indicaram a saúde mental como o maior problema do isolamento. Nos grupos etários mais velhos, a indicação foi de 21% entre aqueles com 45 a 54 anos, e 12%, com 55 anos ou mais. 

“Este ponto pode estar diretamente relacionado à dependência financeira e necessidade de isolamento em um ambiente familiar que muitas vezes não compreende ou aceita um jovem LGBT+, podendo até se tornar violento”, aponta Silva. 

A população LGBT sofre com problemas de saúde mental mais que a média nacional. Enquanto 5,8% da população geral brasileira sofre de depressão e 9,3% sofre de ansiedade, segundo dados da Abrata (Associação Brasileira de Familiares e Amigos de Portadores de Transtornos Afetivos), 28% dos entrevistados pela pesquisa do Vote LGBT+ relatam já terem diagnóstico de depressão, mesmo antes da quarentena. Destes, 47% foram classificados no estudo com o risco de depressão no nível mais severo.

“O estigma e o preconceito colocam as pessoas LGBT em uma situação de estresse crônico que vai reduzindo os indicadores de saúde mental ao longo da vida”, aponta o pesquisador.

“E é importante falar ‘ao longo da vida’, porque essas questões aparecem de formas distintas, em fases diferentes. Vai desde a descoberta da sexualidade, a relação com a família, e o acesso aos estudos e ao mercado de trabalho”, diz. “Quando a gente pensa em LGBT, sempre pensamos em juventude. Mas é importante lembrar que eles também envelhecem como qualquer outro.”

Segundo a pesquisa, quando as novas regras de convívio impedem o acesso a redes de apoio e a casa da família de origem não aceita nem acolhe, a solidão se apresenta. Novas regras de convívio social de modo geral foram apontadas como maior problema para 16,6%. Pessoas acima dos 55 anos apresentaram 80% mais de chance de reportar solidão como o maior problema quando comparados com as pessoas de 15 a 24 anos.

A taxa de desemprego entre pessoas LGBT foi de 21,6%, quase o dobro (12,6%) do registrado pelo IBGE, no trimestre encerrado em abril, referente a toda a população brasileira. Quase metade (44,3%) das pessoas teve suas atividades totalmente paralisadas e 24% perderam emprego durante o isolamento social.

O estudo ainda revela que 4 em cada 10 pessoas LGBTs e mais da metade das pessoas trans (53%) disseram que não conseguem sobreviver sem renda por mais de 1 mês caso percam sua fonte de renda. De acordo com a pesquisa, 3 em cada 10 dos desempregados estão sem trabalho há 1 ano ou mais.

Como LGBTs avaliam atuação do presidente e dos governadores

A pesquisa também perguntou sobre como a população LGBT avalia a atuação do governo federal e estaduais. Para 98,7% dos entrevistados, o desempenho do presidente Jair Bolsonaro é ruim ou péssimo. Segundo a pesquisa, esta avaliação diz respeito não só ao gerenciamento da pandemia no País, mas também às ofensivas recentes em relação às demandas desta comunidade.

Só no primeiro ano do governo Bolsonaro, uma propaganda do Banco do Brasil com atores e atrizes diversos foi retirada do ar, e um edital da Ancine que tinha, entre outras categorias, a de diversidade sexual, foi também censurado pelo presidente. Também no último ano, Bolsonaro afirmou que a criminalização da LGBTfobia pelo STF (Supremo Tribunal Federal) “prejudicava homossexuais”. 

Ainda em 2019, o Conselho de Combate à Discriminação LGBT foi extinto, o Ministério da Educação cancelou vestibular voltado para pessoas transgêneras e intersexuais, o Itamaraty baniu o uso da palavra gênero e de menções a direitos LGBT de documentos e o incentivo ao turismo LGBT foi retirado do Plano Nacional de Turismo no País. Recentemente, foi revelado que, nos bastidores, Bolsonaro já afirmou que usar “máscara é coisa de viado”.

A gente vê que as pessoas estão percebendo essa ‘não política’, essa resposta ruim, que tanto o presidente quanto alguns governadores têm dado em relação à pandemia. Ao mesmo tempo é possível perceber que alguns governadores estão tentando responder de forma responsável, mesmo sem o apoio do governo federal”, pontua Silva.

Em contrapartida, 74,7% da população LGBT que respondeu à pesquisa aprova os governos estaduais. A melhor avaliação estadual foi no Ceará: 53,23% das pessoas indicaram que o governador Camilo Santana está tendo ótimo desempenho durante a pandemia. Na região Sudeste, apenas o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, teve uma avaliação péssima elevada: 34,3%.

Como ajudar?

Ao final, a pesquisa apresenta quatro possibilidades para apoiar a população LGBT neste momento. “A pandemia é como uma tempestade em alto mar, chegou e atinge a todos nós”, diz texto do estudo. “O maior impacto, no entanto, ocorre entre aqueles que estavam em jangadas que não proporcionam nenhuma estabilidade ou condição de sobrevivência”, conclui.

Entre elas, estão, apoio emocional, social, financeiro e político:

– Sempre mantenha contato com seus amigos LGBT+. Certifique-se que estejam seguros emocionalmente. Caso sinta que precisam mais do que apenas o seu ombro amigo, conecte-os com profissionais e instituições especializadas em saúde mental.

– Faça parte da rede de apoio de seus amigos LGBT+. Procure mantê-la viva mesmo na pandemia, através de canais seguros de comunicação. Certifique-se de que estejam seguros socialmente (nas suas casas e vizinhanças). Caso contrário, busque maneiras de levá-los para locais seguros. Sempre que necessário, converse com pessoas e esclareça sobre o movimento

– LGBT+. O compartilhamento de informações falsas sobre o grupo é muito comum; integre e fortaleça o debate público cotidiano com informações verdadeiras e de qualidade. 

– Ajude pessoas LGBT+ a acessarem fontes de renda durante e após a pandemia. Sempre que puder, escolha comprar de pessoas LGBT+. Priorize a contratação e indicação, para trabalhos fixos ou para freelas, de profissionais LGBT.

– A política é um território de disputa do movimento LGBT. Conhecer, apoiar e votar em representantes deste grupo é fortalecer a pauta nas esferas institucionais. Nas últimas eleições, a ONG #MeRepresenta organizou uma plataforma proporcionando um match com candidaturas pró-direitos humanos.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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