18/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

A Nova Roda dos Expostos

Publicado em 12/08/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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Vamos deixar uma coisa clara: o movimento anti-aborto não é pró-vida. Considere a quantidade de cristãos favoráveis à pena de morte. Aos fervorosos eleitores de Wilson Witzel, o do "tiro de sniper na cabecinha". Considere o nosso presidente eleito, cuja única qualificação autodeclarada é "minha especialidade é matar". Nossos cristãos curtem tortura e execução sumária estatal tanto quanto CD pirata da Aline Barros.

Mas então, os que tentaram impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos, estuprada pelo tio desde os seis são pró o que? Depende. 

Os que se apresentaram para o serviço são trabalhadores braçais de um projeto que não compreendem. Sua tia crente que acha que aborto é matar anjinhos não chegou à esta conclusão pelos próprios meios. Foi orientada pelo líder da comunidade religiosa. Foi manipulada pelo senso de propósito e de pertencimento que é a força aglutinadora de igrejas, clubes sociais e gangues de rua. Ela jamais ponderou sobre o assunto porque nunca foi preparada ou estimulada para pensar critica e individualmente a questão. Apenas sente que é errado porque todo mundo na bolha pensa da mesma forma. O pastor diz que falou com Deus em línguas e informou ao rebanho que tinham que participar da causa. Não será sua tia crente que pagará o preço social da dissidência. Acha injusto o cancelamento da internet? Você não conhece o cancelamento religioso.

Então, quem decidiu usar sua tia crente para torturar uma criança de dez anos? E por que?

A noção do aborto como pecado é uma relíquia da igreja católica, nascida dos séculos de tradição no uso de crianças indesejadas como mão de obra, a ponto de adaptar a arquitetura de construções para facilitar o processo. As famosas "rodas dos expostos" possibilitavam que bebês recém-nascidos fossem "doados" anonimamente para instituições católicas. Mesmo no Brasil, as Santas Casas de Misericórdia da América Portuguesa no Rio e em Salvador contavam com suas "rodas" devidamente instaladas e ativas já em 1726.

Ou seja, para a Igreja Católica, aborto trazia dois problemas: poupava a mulher das dores (e eventual morte) durante o parto, que serviam de penitência pelo pecado da fornicação, e privava a instituição de novos missionários numa época de alta mortalidade no ofício. 

Mas o movimento anti-aborto contemporâneo, assim como o Napalm e o Marlboro, é uma invenção tóxica norte-americana. Antes dos anos 70, os protestantes gringos não davam a mínima para a questão. Mesmo quando a decisão da Suprema Corte Roe v. Wade legalizou o aborto no país, não deram muita bola. Sabe para o que davam muita bola? Racismo. Quero dizer, a preservação do racismo. O sul dos EUA é um inferno reacionário. Pense o Paraná com mais mosquitos. E líderes religiosos como Jerry Falwell criaram escolas "evangélicas" que só aceitavam alunos brancos. De acordo com a lei anti-segregação, racismo seria motivo para a perda da isenção de impostos. 

Logo, os evangélicos sulistas perceberam que precisariam mudar a lei. Para isso, seria necessário um maior engajamento do rebanho. O aumento no número de abortos entre jovens evangélicas parecia o pretexto ideal para levar os fiéis às urnas. Ideal porque era baseado em uma proibição de comportamental, não numa pauta de transformações sociais. Para um conservador, não há plataforma política mais tentadora do que a perseguição da liberdade alheia. 

Devidamente municiados com a nova causa, surge em 1979 o movimento evangélico-conservador Maioria Moral, apoiando o candidato à presidência Ronald Reagan. O resto é história e benchmarking. 

Não é atoa que Trump está fazendo mil promessas sobre leis anti-aborto. Não é atoa que nossos estelionatários de púlpito brazucas fazem o mesmo. Não é atoa que todo tipo de explorador se alie à esta causa. É política. 

A pauta anti-aborto carrega ainda um subtexto sedutor para o eleitorado masculino conservador. Antes da revolução cultural dos anos 60, gerar filhos era uma forma de celebrar contratos e fundir patrimônios. Pagava-se o dote, juntavam-se as fazendas, o primogênito do casal funcionava como um selo de união entre as famílias. Aí, a pílula anti-concepcional concedeu às mulheres a autonomia sobre o próprio corpo, o que foi péssimo para os negócios da patriarcada. Há quem diga que reside aí o próximo passo do movimento anti-aborto.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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