28/03/2024 - Edição 540

Brasil

OEA condena violência policial racista no Brasil

Publicado em 06/08/2020 12:00 -

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A Comissão Interamericana de Direitos Humanos lançou uma nota expressando “profunda preocupação” com os “recordes históricos de ações policiais violentas” registradas durante o primeiro semestre de 2020 no Brasil, principalmente pelo perfil de discriminação racial.

A Comissão, que integra a OEA (Organização dos Estados Americanos), recomendou que o Estado brasileiro adote uma política de segurança pública que combata e erradique a discriminação racial histórica, que resulta em níveis desproporcionais de violência policial contra a a população negra e periférica.

Gabriel Sampaio, advogado coordenador do programa de Enfrentamento de Violência Institucional da ONG Conectas Direitos Humanos, explica que, apesar de não ter força para punir as autoridades brasileiras, a condenação da CIDH serve de “instrumento de constrangimento para que as autoridades priorizem esta agenda, para que as autoridades públicas reconheçam a atual situação de desproporcionalidade da violência institucional, da forma aguda que ela afeta as pessoas negras e pobres no nosso país”.

A nota da CIDH traz dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que apontam que, de janeiro a abril de 2020, houve um aumento de 31% na letalidade policial no estado de São Paulo em comparação com o mesmo período de 2019, registrando 381 mortes decorrentes da ação de agentes de segurança neste período de 2020.

Dados do estado do Rio de Janeiro, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, também são citados na nota: no período de janeiro a abril de 2020, com um aumento de aproximadamente 9% na taxa de mortalidade por ação policial, com 612 ocorrências de mortes por ação policial.

Em âmbito nacional, a CIDH cita levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, para destacar que quase 8 em cada 10 vítimas mortas pela polícia brasileira são negras. “Embora a população afrodescendente represente 55% de brasileiros, os negros são 75,4% dos mortos pela polícia”.

A agressão sofrida por uma mulher negra, dona de um bar em Parelheiros, na zona sul da cidade de São Paulo, que teve a perna quebrada e o pescoço pisado por um policial militar, foi citada pela CIDH. Assim como o caso de Jefferson André da Silva, motoboy negro que também foi enforcado pela PM paulista. A morte de João Pedro Mattos Pinto, morto aos 14 anos, dentro de casa pela PM do Rio de Janeiro, no Morro do Salgueiro, também foi mencionada.

O comunicado, explica Sampaio, contribui para que outras medidas possam ser tomadas. “Isso fortalece a pressão da sociedade civil às autoridades brasileiras e, no caso específico da ADPF das Favelas, dá força para a constatação, feita por pesquisadores e pela sociedade civil que participa da ação, de controlar das ações policiais”, explica o advogado.

Em visita realizada ao Brasil, em novembro de 2018, a CIDH constatou que, em um contexto de discriminação estrutural, as forças policiais realizam operações focadas em comunidades pobres e com alta concentração de pessoas negras, “sem a observância das normas internacionais e interamericanas de direitos humanos e sem a existência de mandados judiciais”.

Entre as recomendações feitas ao Estado brasileiro, a Comissão aponta para as obrigações relativas à proteção do direito à vida, à integridade de todas as pessoas, bem como seu dever de promover a igualdade e a não discriminação em todas as esferas de ação.

Para a CIDH, “o racismo policial se insere em um contexto de impunidade histórica e insuficiente responsabilização das práticas de abuso policial, tanto pelo sistema de justiça criminal quanto pelas próprias instituições policiais”. Com a chegada de um presidente como Jair Bolsonaro, que tem um discurso de ataque aos direitos fundamentais e de estímulo à violência, no poder, o cenário se agravou.

Além disso, o órgão internacional chama o Brasil a “adotar políticas abrangentes de segurança pública cidadã que combatam as práticas de discriminação social e racial nas ações policiais, bem como medidas efetivas para investigar e punir tais atos de violência com a devida diligência e imparcialidade”.

‘Não faltam crimes cometidos por Bolsonaro’

Também motivado pelo genocídio da população negra e pobre, a Coalizão Negra Por Direitos, articulação que reúne 150 organizações e coletivos do movimento negro, decidiu propor o pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) “pelos crimes de responsabilidade por ele praticados e de como estes agravam a política de genocídio contra a população negra”.

Para a Coalizão, Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade que atentam diretamente contra a população negra e pobre, especialmente durante a pandemia da Covid-19, por conta da “insuficiência das medidas emergenciais que deveriam estar cautelosamente voltadas às famílias negras, empregadas domésticas, trabalhadoras/es informais negros/as, comunidades quilombolas, populações rurais negras, populações negras de nossas favelas, periferias e bairros”.

Para o jornalista Pedro Borges, co-fundador do Alma Preta e integrante da Coalizão Negra por Direitos, o processo de impeachment no Brasil é muito mais político do que jurídico. Por isso, aponta, é importante que os movimentos negros se unam às organizações progressistas a favor da saída de Bolsonaro do governo.

“Como vimos com a Dilma Rousseff [ex-presidenta], se teve uma dificuldade muito grande para se encontrar um problema jurídico, um crime cometido por ela, e se construir uma narrativa política que a derrubasse, tanto que ela não perdeu os direitos políticos”, aponta. “Mas, quando a gente pensa no Bolsonaro, temos um cenário contrário: não faltam crimes cometidos por ele, dos mais básicos aos mais graves”.

Entre os crimes cometidos por Bolsonaro, explica Borges, está a forma com que o presidente lida com a pandemia. “Ele anda sem máscara, se utiliza de frases e colocações que incentiva as pessoas a saírem para a rua, ele incentiva a utilização de medicamentos que não têm comprovação médica e científica”.

Para ele, esses crimes também são refletidos na forma com que Bolsonaro trata a população negra e pobre, que historicamente é marginalizada. “Dentro desse contexto, a gente entende que Bolsonaro tem sido um agente violento para a população negra, que desproporcionalmente sente o peso da política de segurança pública no país”.

“Percebemos um presidente que também tem se utilizado desse momento para nada fazer em relação a esse aumento da letalidade policial, aumento da violência contra a comunidade negra nas periferias e nos grandes centros urbanos”, completa.

Negros são 80% dos suspeitos levados a audiências de custódia no RJ

Estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro constatou racismo nas prisões feitas no estado. A cada dez pessoas presas em flagrante, oito delas são negras. O mesmo percentual equivale para a raça das pessoas que relataram algum tipo de violência no momento da prisão: 80% das vítimas são negras (pretas ou pardas).

A pesquisa tem como base entrevistas feitas com pessoas presas antes de elas passarem pelas audiências de custódia, entre setembro de 2017 e setembro de 2019. Prevista pelo Conselho Nacional de Justiça, esse tipo de audiência exige que uma pessoa seja apresentada ao juiz em até 24 horas após sua prisão. A Defensoria ouviu 23.497 pessoas que foram presas no período estudado.

Do total, 16.364 presos se identificaram como negros (79%), enquanto 4.698 se classificaram como brancos (22%). O perfil é predominantemente de homens cisgênero (93,6%), com 20.029 entrevistados, enquanto há 1.283 mulheres cis, 38 mulheres transexuais e 54 de homens trans.

Uma das funções exercidas pelas audiências de custódia é o juiz identificar se houve tortura no momento da prisão das pessoas. Das 23.497 entrevistadas, 8.490 relataram terem sido agredidas, com 80,7% delas sendo de pele negra ou parda.

Sobre as agressões, 60,5% dos que conseguiram identificar os autores apontaram a PMERJ (Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro) como seus algozes. Foram 3.380 casos de agressões dos PMs. Já 30% dos relatos, ou 1.679 das agressões ou tentativas de agressões, partiram de populares, pessoas comuns, e a Polícia Civil apareceu em 4,9% das agressões, 272 vezes.

Mais do que maioria entre os presos em flagrante e entre os agredidos, os negros também têm menos chance de receber liberdade nas audiências. Entre os brancos, 30,8% dos entrevistados responderam aos processos em liberdade, enquanto entre os negros, 27,5%.

Segundo Caroline Tassara, Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro e responsável por coordenar o Núcleo de Audiências de Custódia, o estudo evidencia um “racismo estrutural, institucionalizado”

“Se oito em cada dez presos são pretos ou pardos, isso choca. A população que se declara preta ou parda no RJ é de 54%, isso mostra a desproporção muito grande na porta de entrada do sistema prisional”, afirma a especialista.

A defensora considera haver um histórico desde a “fundação do Estado brasileiro” em criminalizar corpos negros. Um dos modos de se visualizar essa situação envolve o trabalho das polícias.

“O racismo institucional cria um imaginário, estereótipo do criminoso, concretizado no momento das prisões em flagrante”, afirma, citando a maior quantidade de agressões contra negros. “O que é admitido sobre o corpo preto é diferente do que é admitido com o corpo branco e precisamos denunciar isso”, critica.

Nesta semana, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro retomou as audiências de custódia feitas presencialmente, atividade interrompida durante a pandemia do coronavírus.

O Conselho Nacional de Justiça votou à possibilidade de o serviço ocorrer de forma online, o que é rechaçado pela Defensoria Pública. Em votação, os conselheiros negaram as audiências por vídeo.

“É um exemplo para o Brasil de que é possível retornar com segurança, não sendo necessário usar da videoconferência, que seria o esvaziamento da estrutura da custódia”, avalia Tassara.

O posicionamento é corroborado por Paulo Abrão, secretário Executivo da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da Organização dos Estados Americanos. Em sua fala, o representante da entidade internacional criticou o aprisionamento como base da política criminal.

“A audiência de custódia é uma medida efetiva e relevante para reduzir a prisão preventiva, feita sem critérios, ou para a superlotação. Temos que reforçar, apoiar”, afirma, ressaltando a defesa “enfática de que os estados têm obrigação de evitar detenções sem necessidade”.

Abrão descreveu que as prisões brasileiras e o problema da superlotação, agravado na pandemia, têm sido objeto de preocupação e monitoramento da CIDH. “A Comissão tem observado o aumento da população carcerária e entendemos que decorre de uma política criminal que tenta solucionar o problema de segurança pública priorizando a privação de liberdade”, afirma.


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