29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Pobre não sonha

Publicado em 29/07/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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Para combater os efeitos da pandemia e do isolamento social nos trabalhadores que perderam o emprego, o governo brasileiro sugeriu três cheques de duzentos reais. Depois de muita briga no congresso, o valor chegou a R$600. 

Nos Estados Unidos, uma discussão semelhante se deu, com um resultado semelhante: 600 dólares de auxílio emergencial. 

Na época em que estas decisões foram tomadas, tudo era novidade e ninguém sabia quanto tempo a crise duraria. Havia a esperança que seria algo passageiro. Em três meses, tudo voltaria ao normal e os empregos seriam reestabelecidos aos níveis pré-pandemia. 

Hoje, mesmo para os praticantes da mais competitiva desonestidade intelectual, já está claro que o buraco é mais embaixo e nem a pandemia nem a economia dão sinais de reversão de curso. 

O natural seria que os auxílios fossem prorrogados pelo tempo necessário. Mas tanto a direita liberal quanto a conservadora são contra o Estado garantir que pais de família tenham mínimas condições de alimentar seus filhos. Por que?

Há, basicamente, dois argumentos: o primeiro é financeiro. O Estado não pode arcar com essa despesa. Sim, o mesmo Estado que oferece o sistema previdencial mais nababesco do mundo para seus vetustos militares. Sabemos que dinheiro há. O que não há é a intenção de realocar recursos destinados a "grupos de interesse" para a população, que só voltará a ser interessante em dois anos: na hora do voto.

O segundo argumento é ainda mais tétrico: As lideranças da direita acreditam que o auxílio emergencial para cidadãos é prejudicial para a economia. O raciocínio é o seguinte: Se fulano recebe 600 reais por mês para ficar em casa, não vai querer trabalhar por 500 reais. É sobre esse argumento que gostaria de me debruçar um instantinho.

O político de direita parece presumir que o único incentivo que mantém as classes sociais de base no mercado de trabalho é a sobrevivência. Se não for pelo medo de passar fome, nenhum pobre trabalharia. 

Obviamente ninguém ousa aplicar esse raciocínio ao topo da pirâmide. Ninguém imagina que o Véio da Havan, Roberto Justus ou o Luciano Huck vão ficar em casa vendo TV (infelizmente) já que não correm mais risco de inanição. O rico não trabalha pra sobreviver. Tem aspirações. Quer poder, quer influência política e mudar o mundo. O filho do rico pode escolher faculdade e "encontrar a vocação". O filho do pobre só se interessa em encontrar o próximo PF. Parece caricato, mas de que outra maneira se justifica uma visão tão distorcida da psique de outro ser humano? Enquanto a sociedade abastada discute síndrome de burnout e trabalho no século XXI, boa parte dos nossos representantes acham que a maioria dos representados não tem aspiração, não quer contribuir para um futuro melhor. A direita acha que pobre não sonha. Pior. Acham que pobre não pode sonhar.

O medo é que, uma vez estabelecida uma renda mínima universal definitiva, a mão de obra se torne inflacionada. Num país que ainda resiste à ideia de salário mínimo como os EUA, pagar 8 centavos por hora para um chapeiro de Fast Food pode se tornar inviável. Garantir que todos tenham o mínimo para não passar necessidade física significa, para a direita, comprometer uma fatia das margens de lucro. 

Isso apesar de todos os estudos sérios sobre o assunto indicarem o impacto positivo de programas de renda básica na comunidade. O Bolsa Família salvou cidades inteiras promovendo o consumo, criando empregos em negócios locais, gerando renda e impostos.

Segundo o Ipea, cada real investido no Bolsa Família vira 1,78 no PIB. Durma com um barulho desses, Paulo Guedes, mas dar dinheiro para pobre dá mais retorno do que as isenções de empresas "geradoras de empregos" que acabam em fundos de investimentos e paraísos fiscais. Se tem algo que dá errado é o tal "Trickle Down Economics". O que comprovadamente funciona é o "Trickle Up Economics". 

É por coisas assim que insisto que o princípio definidor da direita é a ausência de empatia pelo diverso.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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