29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Para compreender a fundo o ‘bolsonarismo popular’

Publicado em 27/07/2020 12:00 -

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A população que compõe mais da metade do eleitorado brasileiro, os trabalhadores das classes C e D que atuam no setor de serviços e na indústria, diverge na avaliação do governo Bolsonaro, mas compartilha um desejo comum: “querem um país com mais oportunidades econômicas, serviços públicos mais eficientes e com menos corrupção na política”, diz a pesquisadora Camila Rocha, autora da pesquisa “Bolsonarismo em crise?”, realizada em conjunto com Esther Solano. “Para o eleitorado popular de Bolsonaro, o maior problema do Brasil é a desigualdade social, e, nesse sentido, atenuar essa desigualdade com certeza é algo que se espera no futuro”, resume. 

Além de trazer luz para que se possa compreender melhor quem é o eleitorado que elegeu Bolsonaro, a pesquisa também expõe a frustração das classes C e D, emergentes nos governos petistas, com a política. Nesta entrevista, Camila Rocha ressalta que a renovação depende de lançar lideranças “que estejam presentes nos territórios e conectadas com o cotidiano das pessoas, mas também por oferecer soluções para os problemas do país que sejam factíveis e façam sentido”. Nesse contexto, adverte, “é preciso compreender que o pacto de 88 se esgotou”, mas as pessoas continuam demandando “desesperadamente uma proteção social melhor e mais ampla, que leve em consideração essas mudanças no mercado de trabalho e que vise uma expansão dos direitos”. 

Diante deste quadro, os desafios para os partidos de esquerda e direita perpassam por atender de forma concreta às demandas da população. Para a pesquisadora, a direita que “surfou no bolsonarismo” encontra dificuldades de se desvincular de Bolsonaro, mas tem uma “janela de oportunidade” para se apresentar no debate público distanciando-se do autoritarismo. Já no campo da esquerda, pontua, ainda “é muito comum a arrogância e o preconceito em relação a esses eleitores. Boa parte da esquerda ainda bate na tecla de que Bolsonaro ganhou por causa de “fake news” ou porque sua campanha foi financiada por fora, ou seja, porque as pessoas seriam estúpidas e teriam sido totalmente manipuladas. (…) Enquanto a esquerda não compreender que Bolsonaro ganhou de fato, que existem razões legítimas para que mais da metade da população tenha optado por ele e para que um terço ainda o apoie, vai continuar perdida e com apelo restrito a determinados grupos”, conclui.

Camila Rocha é graduada em Ciências Sociais, mestra e doutora em Ciência Política pela pela Universidade de São Paulo – USP. Recebeu o prêmio de melhor tese da Associação Brasileira de Ciência Política, com sua tese de doutorado intitulada “Menos Marx mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). É pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap.

 

A sua pesquisa sobre os eleitores de Bolsonaro foi feita a partir de entrevistas com grupos de poucas pessoas. Quais são as vantagens desse tipo de abordagem? Que argumentos pode evidenciar a partir das entrevistas? 

As entrevistas são feitas em grupos de três pessoas que se conhecem previamente, ou seja, são amigos, colegas de trabalho, vizinhos, do mesmo sexo e faixa etária. Isso cria uma atmosfera mais intimista que permite que as pessoas possam conversar mais livremente sobre os assuntos porque se sentem mais à vontade para expressar o que realmente pensam e sentem. Como a dinâmica tem uma duração longa, geralmente em torno de duas horas, mas às vezes ultrapassando três horas, as pessoas podem desenvolver seus argumentos em maior profundidade, inclusive respondendo a críticas e ponderações de seus conhecidos e, nesse sentido, é possível também ter acesso a uma gama maior de emoções expressas pelos entrevistados, o que faz com que esse tipo de abordagem seja muito adequada para investigar linhas de argumentação e sentimentos em toda a sua complexidade na medida em que permite explorar nuances, sutilezas e tons de cinza.

Segundo a sua pesquisa, os eleitores de Bolsonaro são divididos em três grupos: fiéis, apoiadores críticos e arrependidos. Como eles justificam suas posições? 

De forma resumida, os fiéis são aqueles que continuam a acreditar no potencial de mudança radical que enxergam na figura de Bolsonaro, e que são mais alinhados a seu discurso no que tange à retórica antissistema e aos valores que professa, de modo que, ainda que possam ter críticas específicas ao governo, justificam sua posição considerando que Bolsonaro é um político coerente, autêntico, patriota, que de fato quer enfrentar interesses da classe política tradicional e de corporações midiáticas, percebidos como escusos, e que por isso o militar merece seu apoio enfático.

Já os apoiadores críticos continuam a acreditar em Bolsonaro porém dizem que “não botam a mão no fogo por ele”, e nesse sentido são muito mais críticos ao que interpretam como uma incoerência do presidente ao negociar com o Centrão, a excessos no que é percebido como “falta de decoro”, à sua postura em relação às investigações concernentes ao senador Flávio Bolsonaro, ou seja, seu apoio ao presidente é mais condicional e menos entusiasmado.

Por fim, os arrependidos são aqueles que deixaram de acreditar em Bolsonaro e querem que ele deixe o poder por considerarem que, por uma série de razões, não estaria fazendo jus ao cargo que ocupa, e nesse sentido, a postura do presidente frente à pandemia foi um ponto de inflexão importante. 

Socialmente, como categoriza a parcela da população que está dividida nesses três grupos, ou seja, elas são de quais estratos sociais? 

Esta e outras pesquisas que realizamos (eu e a professora Esther Solano) nos últimos anos foram feitas com o que chamamos de “bolsonarismo popular”, ou seja, são pessoas das classes populares, das classes trabalhadoras, que correspondem às faixas C e D de renda, e que são compostas principalmente por trabalhadores do setor de serviços, mas também da indústria. Entre as profissões declaradas estão manicure, vigilante, auxiliar de escritório, garçom, cuidadora de idosos, caminhoneiro, professora, operário, motoristas e entregadores de aplicativo, entre outras. Essa população é a que compõe mais da metade do eleitorado brasileiro atualmente. 

A partir dos depoimentos dos eleitores, foi possível perceber uma unidade de pensamento em termos políticos e sociais, ou seja, eles compartilham de uma agenda política e social do que esperam para o Brasil no futuro? 

Sim, querem um país com mais oportunidades econômicas, serviços públicos mais eficientes e com menos corrupção na política. É importante destacar que, para essas pessoas, serviços públicos como educação e saúde devem continuar gratuitos e melhorar a qualidade do atendimento e a eficiência.

Uma das entrevistadas, apoiadora fiel de Bolsonaro, disse que “o SUS é uma conquista da população brasileira”, por exemplo, ideia que também foi expressa pelos demais. A maioria das pessoas acredita que, em geral, o Estado deve ter uma postura ativa na economia, o que fica ressaltado agora durante a pandemia: espera-se que o Estado aja diante de crises para preservar empregos e proteger trabalhadores informais, assim como micro, pequenas e médias empresas. Para o eleitorado popular de Bolsonaro, o maior problema do Brasil é a desigualdade social, e, nesse sentido, atenuar essa desigualdade com certeza é algo que se espera no futuro.

As análises da última eleição demonstraram que uma parcela significativa dos eleitores de Bolsonaro também elegeu o ex-presidente Lula e a ex-presidente Dilma no passado. Você explorou essa questão com os eleitores? Eles comentaram algo nesse sentido? 

Sim, o sentimento que prevalece entre essas pessoas é o de decepção profunda com o partido e suas principais lideranças. Em sua visão, o PT teria traído as classes trabalhadoras ao ter participado de esquemas de corrupção. Para eles, seria “normal” esperar que os demais políticos fossem corruptos, mas aqueles que representam os trabalhadores, não, daí a ideia de traição e o sentimento de decepção profunda que se segue.

Além disso, vários falavam que o PT não estaria mais protegendo os trabalhadores e que faltam lideranças novas no partido, mas no sentido simbólico, eram comuns falas como: “eu voltaria a votar no PT caso ele voltasse às origens, às raízes”, alguns afirmavam que querem a volta do PT dos anos 1980, quando o partido representava “de verdade” os trabalhadores. Um dos entrevistados chegou a dizer que o entusiasmo que sentiu na eleição de Bolsonaro foi o mesmo que sentiu quando Lula foi eleito em 2002.

A partir das suas pesquisas, o que diria que as classes populares e trabalhadoras esperam da política e como eles veem a política brasileira hoje? 

A maior parte das classes populares experimenta hoje um sentimento de frustração profunda com a política brasileira. Para certas pessoas, o Congresso, por exemplo, seria completamente corrompido e teria deixado de representar o povo, por isso, várias acham que não seria antidemocrático ou autoritário que o Congresso fosse fechado para que pudesse ser renovado. Todos concordam que a política precisa de uma renovação muito profunda; “recomeçar do zero” é uma ideia muito frequente. Alguns continuam a enxergar em Bolsonaro uma possibilidade de mudança profunda, a “nova política”, porém outros, decepcionados com o presidente, afirmam que votariam nele nas próximas eleições por falta de opções.

As pessoas sentem que existe um vazio, um esgotamento no que tange às lideranças políticas e saídas programáticas para os problemas do país, sobretudo considerando as múltiplas crises que perpassam o país atualmente.

Uma parcela dos eleitores de Bolsonaro é evangélica e, como a sua pesquisa demonstra, essas pessoas se ressentem do fato de serem tratadas como ignorantes por conta da sua filiação religiosa. Quais são os desafios postos para os partidos nesse sentido? Como podem dialogar com essa parcela da população? 

Em primeiro lugar, deixar de considerar essa população como um bloco homogêneo: “os evangélicos”. Os evangélicos são um grupo plural e complexo, como bem apontam os estudiosos das religiões no Brasil. Em segundo lugar, as pessoas não são ontologicamente conservadoras em relação a costumes, a opinião pública pode mudar com o tempo a depender de como certos temas são discutidos na sociedade civil. Em terceiro lugar, é preciso saber reconhecer que a religiosidade e espiritualidade são dimensões fundamentais na vida da maioria das pessoas para poder, eventualmente, ressignificar isso em outras direções. E, finalmente, essa ideia de tratar as pessoas como ignorantes, sejam elas evangélicas ou não, eleitoras de Bolsonaro ou não, só demonstra um tipo de arrogância elitista que elimina qualquer possibilidade de diálogo. O diálogo é possível justamente quando é possível reconhecer a humanidade e a complexidade no outro; o fanatismo e o fundamentalismo são fenômenos restritos a setores pequenos da população. É preciso escutar de verdade as pessoas, sem rotulá-las a priori.

Com a decepção de parte da sociedade com os governos do PT e com o governo Bolsonaro, que desafios são postos para a política em geral e para os políticos que irão disputar o próximo pleito? 

O desafio é a renovação da política. Isso passa não apenas por lançar novas lideranças que estejam presentes nos territórios e conectadas com o cotidiano das pessoas, mas também por oferecer soluções para os problemas do país que sejam factíveis e façam sentido para as pessoas. É preciso compreender que o pacto de 88 se esgotou, a direita sabe disso e propõe como saída seu desmonte e um horizonte privatista e tradicionalista para o país. A esquerda precisa propor um novo pacto social, que aprofunde as mudanças iniciadas em 88, mas que vá além. Para isso é preciso considerar as mudanças recentes no mundo do trabalho e as possibilidades tecnológicas existentes hoje em dia.

Demanda por proteção social ampla

As pessoas demandam desesperadamente uma proteção social melhor e mais ampla, que leve em consideração essas mudanças no mercado de trabalho e que vise uma expansão dos direitos das mulheres, negros, indígenas, quilombolas, LGBTs, pessoas com deficiência, entre outros grupos, articulada com a questão da desigualdade de renda abissal que vigora no país e que, segundo todas as dezenas de pessoas que entrevistamos até hoje, continua a ser o grande problema do Brasil. Além disso, a questão da violência no país precisa ser abordada de frente, e isso passa necessariamente por uma valorização e qualificação dos trabalhadores de segurança pública e pelo enfrentamento urgente do genocídio da população negra e pobre nas periferias. Finalmente, a questão da corrupção também continua a afligir as pessoas, de modo que é preciso dar respostas concretas nesse sentido, isso é algo muito importante para as pessoas.

Quais são os desafios postos, especificamente, à esquerda e à direita para conquistar o grupo dos eleitores críticos e dos arrependidos? Que aspectos os partidos precisam compreender para dialogar e até mesmo conquistar essa parcela do eleitorado? 

O maior desafio é lidar com o vácuo de poder que havia sido preenchido por Bolsonaro, mas que passa a se tornar novamente presente à medida que sua imagem se desgasta. Nesse sentido, é preciso saber trabalhar com os valores que Bolsonaro representa ou representava para essas pessoas: a honestidade, a autenticidade, a coerência e o patriotismo. São valores que as pessoas esperam das grandes lideranças políticas e que justamente sentem que estão em falta, daí o apelo que a figura de Bolsonaro possuía, ou ainda possui, para segmentos importantes da população. Além disso, as pessoas esperam uma mudança profunda e radical na política, que era algo que também enxergavam que Bolsonaro seria capaz de fazer. Esse sentimento persiste a despeito da eventual decepção com o presidente, de modo que para conquistar essa parcela do eleitorado é preciso pensar de forma ousada e propor saídas radicais e de impacto para as crises que nos assolam que possam ser amplamente discutidas e construídas junto à sociedade civil como um todo.

Como os efeitos da pandemia influenciam as opiniões dos entrevistados sobre a atuação do presidente? O que cada grupo comentou sobre isso? 

A postura do presidente frente à pandemia foi um divisor de águas no que tange ao desgaste de sua imagem e à decepção de parte de seu eleitorado. A grande maioria daqueles que elegeram Bolsonaro não concorda com a ideia de que “seria apenas uma gripezinha” e gostaria de fazer o isolamento social, porém não consegue ficar em casa pois precisa trabalhar para pagar as contas, e, desse modo, acaba sendo empurrada, na prática, para uma espécie de “isolamento vertical”. As mulheres são especialmente críticas da postura adotada por Bolsonaro, a qual é caracterizada como desumana frente aos doentes e mortos pelo vírus; já alguns poucos homens acreditam que enfrentar a pandemia de frente indo trabalhar normalmente seria algo “viril”, e, nesse sentido, apoiam a postura do presidente em fazer o mesmo.

Como, de modo geral, a esquerda e a direita, em sentido amplo, reagem aos eleitores de Bolsonaro? Percebe matizes na postura da esquerda e da direita em relação a essa parcela da população ou a postura é mais homogênea? 

No segundo turno das eleições de 2018, praticamente toda a direita surfou no bolsonarismo de forma mais ou menos pragmática, e agora encontra dificuldades em se afastar de Bolsonaro, com medo de causar reações negativas entre seus eleitores e ser tida como hipócrita ou traidora. Porém, acredito que o momento atual possa justamente ser uma janela de oportunidade para que direitas democráticas se apresentem no debate público e ofereçam opções políticas que se distanciem do autoritarismo.

Já no que diz respeito à esquerda, ainda é muito comum haver arrogância e o preconceito em relação a esses eleitores. Boa parte da esquerda ainda bate na tecla de que Bolsonaro ganhou por causa de “fake news” ou porque sua campanha foi financiada por fora, ou seja, porque as pessoas seriam estúpidas e teriam sido totalmente manipuladas. Ainda que tais práticas possam ter existido durante a campanha em maior ou menor grau, Bolsonaro não ganhou por causa disso; isso precisa ficar claro. Enquanto a esquerda não compreender que Bolsonaro ganhou de fato, que existem razões legítimas para que mais da metade da população tenha optado por ele e para que um terço ainda o apoie, vai continuar perdida e com apelo restrito a determinados grupos. 

A escritora Lya Luft recebeu inúmeras críticas por ter declarado seu arrependimento de ter votado em Bolsonaro. A partir da sua pesquisa, como avalia a declaração da escritora e como vê, de outro lado, as reações da esquerda e da direita à declaração dela e as generalizações feitas, relacionando sua postura a um comportamento de classe média? 

Eu desconhecia a declaração da escritora e o impacto que provocou, mas me parece ser bastante corajosa, dado que é alguém da elite intelectual do país, que costuma estar mais associada ao progressismo. Parte significativa da classe média teve suas razões para ter optado por Bolsonaro, e não deve ser encarada como um todo como fascista, autoritária, ou algo do gênero. Como disse anteriormente, fascismo, radicalismo, autoritarismo e fundamentalismo estão restritos a grupos pequenos da sociedade, ainda que exista, claro, a possibilidade de que, em determinados momentos históricos, isso extravase para setores mais amplos. É preciso compreender as razões do voto das classes médias em Bolsonaro de forma mais aprofundada e evitar estereótipos, sobretudo no atual momento, em que muitas pessoas desse estrato começam, como a escritora, a se dizer arrependidas. É preciso ouvir o que essas pessoas têm a dizer, isso é fundamental.


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