28/03/2024 - Edição 540

Especial

Sobrevivência e luto

Publicado em 27/07/2020 12:00 -

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EDIMERE, A FILHA DE DONA IRAILDES

NO MEIO DA TRAGÉDIA

O guarda-roupa está intocado e a vida, pelo avesso. Edimere Amaral ainda não consegue olhar os vestidos da mãe e só aos poucos vem aprendendo a caminhar em um mundo sem ela — dona Iraildes, “o centro de tudo”, como diz à Radis. Ia fazer 88 anos no final de maio. Era uma pessoa extremamente ativa. Cuidava caprichosamente da casa e de uma irmã que morava com ela. Os dois filhos, hoje adultos e casados, sempre puderam lhe pedir ajuda. Meio-dia em ponto, de segunda a sexta-feira, posicionava-se em frente ao portão até Clara chegar da escola — avó e neta passavam boa parte da tarde juntas. “Eu tenho 48 anos e ainda me balizava pelas orientações de minha mãe. Ela era o meu braço direito”, conta, emocionada, a filha Edimere, ou Mere, como é conhecida pelos amigos.

Entre o momento que dona Iraildes Amaral deu entrada no hospital com sintomas de covid-19 e a hora do óbito, passaram-se pouco mais de 24 horas. Tudo aconteceu entre 3 e 4 de maio, de repente. Ela tinha pressão alta devidamente medicada; diabetes controlada com alimentação. “Só ia a médicos para consultas de rotina”, destaca Mere, que durante a pandemia, exercendo o trabalho remoto, mudara-se de vez para a casa da mãe com quem pretendia cumprir a quarentena em São João de Meriti, região metropolitana do Rio de Janeiro. Dona Iraildes andou abatida naquela semana, mas diariamente a filha lhe aferia a pressão. Nada parecia alterado. Em um sábado à noite, a senhora forte que nunca se queixava de nada e “sempre detestou hospitais” reclamou de dores de cabeça e no estômago. Dormiu mal, com enjoos. Acordou tossindo. No hospital, antes mesmo do resultado da tomografia, o médico constatou estar diante de um caso de suspeita de covid que necessitava de internação imediata.

Mere é gerente administrativa e atua no Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz (Asfoc-SN). Há pelo menos 26 anos na Fiocruz, conhece de perto o be-a-bá da saúde pública. Desde que um vírus desconhecido pela ciência começou a causar grave infecção pulmonar matando milhares na cidade de Wuhan, na China, a partir de dezembro, alastrando-se rapidamente pelo globo e deixando países como Itália e França em polvorosa, ela temia pelo que poderia acontecer quando os primeiros casos fossem detectados no Brasil. “Isso estava em nossas pautas. Era uma preocupação diária. Me perguntava como nosso país responderia a uma pandemia como essa”.

Nem nos piores pesadelos, no entanto, imaginou que sua vida pudesse ser afetada tão diretamente. Vinham cumprindo rigorosamente o isolamento social, mas na roleta russa da covid-19, aconteceu com a sua família. “O Brasil e o mundo estão vivenciando uma catástrofe. E minha família foi atingida em cheio”. Ela perdeu ainda um meio-sobrinho — o filho da esposa de seu irmão tinha apenas 21 anos. Além disso o irmão de Mere e ela própria testaram positivo para o vírus. Mere chegou a ficar internada por cinco dias com cerca de 50% do pulmão comprometido.

No início de junho, autoridades sanitárias, pesquisadores e entidades ligadas à saúde criticaram abertamente o Ministério da Saúde pelo atraso na divulgação dos números e pela omissão nos dados oficiais do novo coronavírus no Brasil. O choque entre as informações do Ministério e aquelas divulgados pelas secretarias estaduais acabou gerando a criação de um consórcio de veículos de imprensa — iniciativa que veio se somar a outras que já fazem contagens independentes, a exemplo do Sistema de Informação para Monitoramento da Pandemia do Coronavírus (MonitoraCovid-19), da Fiocruz — cujo objetivo é informar de maneira mais transparente sobre a evolução da pandemia no país. Segundo o consórcio, o Brasil atingiu mais de um milhão e quatrocentos mil casos e mais de 60 mil mortos por covid-19 quando iniciou o mês seguinte (1º/7).

Dona Iraildes é mais do que um número. Nas lembranças da filha, aparece dançando ao som dos “Bandolins”, de Oswaldo Montenegro, ou assistindo a “O segredo da libélula”, que ela via quantas vezes o filme passasse na TV. Ainda agora, enquanto Mere atende à ligação de Radis, sentada na cama da mãe, ela se ressente daqueles que fazem pouco caso da pandemia. Quando escuta alguém minimizar a gravidade do que está acontecendo no Brasil, diz que isso lhe dói “como um punhal”. “Acho um desrespeito. Você não precisa passar por esse sofrimento para sentir a dor do outro”, reflete. “A gente não está vivendo uma situação natural. A minha mãe foi vítima de uma tragédia”.

Luto coletivo

“A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência”. A frase poética de Mia Couto foi citada por Maria Helena Franco, em entrevista à Radis (ver entrevista aqui). A psicóloga, uma das maiores referências em luto no país, recorre ao escritor moçambicano para tentar explicar o inexplicável: o que essas perdas repentinas e trágicas, que têm ocorrido durante a pandemia, podem nos dizer sobre vida e finitude? Na metáfora de Mia Couto, o luto pode ser essa cicatriz. “Ela está ali para lembrar que a gente viveu aquela dor, aquela ruptura”, diz a coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto (Lelu/PUC-SP). “Mas essa cicatriz não tem que doer para sempre”. Segundo a psicóloga, o luto pela perda de uma pessoa amada é a experiência mais universal e, ao mesmo tempo, mais particular, desorganizadora e assustadora que o ser humano pode viver. “Mas ele existe para nos lembrar que, ainda que a vida não seja mais como costumava ser, o vínculo com aqueles que perdemos permanece em um novo jeito de viver e em cada recomeço”.

Diante da massificação das perdas por covid-19, em que cada luto é acrescido de mais mortes e de mais casos de pessoas conhecidas, Maria Helena tem se indagado se está se desenhando uma nova forma de luto. “Porque tudo o que vem com esse tipo de morte compõe um jeito muito específico de viver a experiência do luto”. O distanciamento do doente, a falta de acompanhamento em seus últimos dias de hospital, as restrições a velórios e enterros, a ausência dos rituais de despedidas e o cumprimento a todas as medidas sanitárias necessárias ao momento acabam por alterar o processo de construção de sentidos em torno da compreensão da morte de um parente ou amigo próximo. Para a psicóloga, vai haver um período de luto coletivo denso. “Não sei medir isso. Mas posso dizer de um sofrimento que talvez vá durar mais que a pandemia, porque necessita de um tempo de elaboração maior”.

Às 11h30 da manhã do dia que sua mãe morreu, Mere telefonou para o hospital em busca de notícias. Não obteve qualquer informação — o horário para isso era às 16h — mas insistiu tanto ao telefone que conseguiu que levassem o aparelho até o leito da mãe. “Ela gemia de dor e só queria saber quando eu falaria com o médico para lhe tirar dali”. Mere respondeu com um “Eu te amo, mãe”. Às 16h30, foi informada do óbito. “Fico me perguntando se poderia ter feito algo diferente”. Enquanto se refaz e para ajudar uma tia, Mere continua na casa da mãe. Nos primeiros dias, a fim de se sentir menos sozinha, ligava a câmera do whatsApp até adormecer sob a companhia do marido noutro ponto da cidade. “Foi como um susto. Nossa mãe foi ceifada de nossas vidas de forma inesperada. Nem ela nem qualquer pessoa merecia isso”, constata, enquanto se fortalece com o apoio de amigos — que neste momento ainda não podem estar perto fisicamente — e se prepara para o que chama de “segunda fase” de sua vida.

ABDULBASET, O FILHO DE KHADOUJ

FAMÍLIA PARTIDA

No segundo domingo de maio, o sírio Abdulbaset Jarour, 30 anos, foi para a frente do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, onde sua mãe estava internada. Em um cartaz colado ao próprio corpo, escreveu em português: “É hora de ter paz e união para combater a covid-19. Voltem para casa. Peço, por favor, oração pela minha mãe”. Três dias depois do Dia das Mães, recebeu uma ligação, informando que Khadouj Makhzoum, 55 anos, estava muito mal. “Por favor, deixem que ela volte para sua terra”, clamou sem resposta. Às 5h30min daquela quarta-feira, o último chamado. A mãe de Abdo, como é conhecido, não havia resistido.

Refugiado no Brasil e vivendo em São Paulo desde 2014 (conheça a história de sua chegada ao país), ele ainda está impactado com a dor da despedida. Desde que chegou ao Brasil, o sonho do sírio era trazer a mãe Khadouj e a irmã Sedra ao país que o recebeu. Elas vieram em dezembro de 2018, depois de Abdo ter solicitado visto para as duas na embaixada brasileira no Líbano. O reencontro dos três, no aeroporto de São Paulo, foi emocionado. “Em nove anos, a guerra acabou com a vida de um milhão de pessoas e espalhou 10 milhões de sírios pelo mundo”, lamenta ao telefone, enquanto conta do seu sofrimento recente.

Apesar do esforço de Abdo, a adaptação das duas não seguiu como esperava. Começaram a se sentir deslocadas. Não conseguiram aprender o português. Sentiam falta das tradições religiosas árabes. Passaram a apresentar sintomas de ansiedade e depressão. No início de 2020, os três decidiram que seria melhor que elas fossem viver com parentes no Líbano. Sedra partiu em fevereiro e Khadouj aguardava que o filho providenciasse a documentação para a viagem, quando adoeceu. Ele agora se sente responsável por ter demorado a dar entrada no passaporte da mãe. “Eu chorei e me senti muito culpado. Enrolei com os documentos para que ela ficasse mais tempo comigo”, ressente-se, repetindo uma frase muito destacada nas entrevistas que concedeu após o que aconteceu: “Eu salvei minha mãe da guerra e não consegui salvá-la de um vírus”.

Para aqueles que ficam, a dor é tão particular quanto imensurável. Nesse momento, não são poucas as iniciativas que vêm se formando para lidar com os sofrimentos psíquicos provocados pela pandemia. Uma delas começou, modestamente, com uma linha telefônica gratuita no Rio de Janeiro, a partir do Instituto Entrelaços, e se expandiu para outras regiões do Brasil. Intitulada SOS Apoio Emocional, chegou a contar com 160 voluntários em um único dia. Eles trabalham em esquema de plantão com escala e prestam atendimento emergencial aos que se sentem impactados emocionalmente pela pandemia.

De São Paulo, a psicóloga Maria Helena coordena um grupo de 20 profissionais que oferece escuta para enlutados pela covid. “A demanda é imensa”, diz, ressaltando que o luto pela doença tem sido permeado de perguntas, todas feitas ao mesmo tempo. Àquelas que costumamos escutar diante de mortes trágicas e repentinas — Por que comigo? Por que em nossa família? — têm se somado a outras muito específicas desta pandemia: Será que não higienizei direito as frutas? Será que não fiz o isolamento e acabei contagiando outra pessoa? Por que ela morreu e eu não? Como não pude evitar? O grupo de psicólogos — também voluntários — vem auxiliando quem procura por meio de um canal de atendimento online de escuta e apoio para luto. O primeiro contato é feito via email . “O luto não é um obstáculo a ser superado. O luto é para ser vivido”, diz a psicóloga.

Tradução: cuidado

Abdo viu Khadjou viva, pela última vez, dia 22 de abril, pouco antes de ser transferida para a Unidade de Terapia Intensiva do HC. Comoveu-se quando, mesmo fraca, ela perguntou pelas filhas e recomendou que ele continuasse a ajudar as pessoas em situação de rua. Sua mãe também quis saber o que tinha, lembra. Ao que Abdo tentou explicar. “Você vai ficar bem”, disse a ela. Naquele momento, os médicos pediram sua ajuda na comunicação com a paciente. Ele escreveu alguns cartazes, em árabe — ela não entendia português. Em letras grandes, redigiu comandos do tipo: “Deite de bruços” e “Vire para o lado”. A falta de comunicação era algo que o deixava tenso. “Eu tinha muito medo que ela se sentisse sufocada e não soubesse pedir ajuda”, relata.

É na religião que Abdo busca conforto para a perda. “Ela morreu no mês sagrado [nono mês no calendário lunar islâmico, conhecido como Ramadã]. Era uma mulher muito guerreira e respeitadora, me ensinou muitos valores e a respeitar a simplicidade da vida”, recorda. Mesmo ainda abalado ao descrever a despedida — quando não pode ver mais nada além do rosto da mãe, pelo vidro na parte superior do caixão — ele faz questão de registrar que continua respeitando as orientações sanitárias, com o intuito de proteger sua saúde e evitar a disseminação do vírus; diz não se conformar com a atitude de quem propõe o contrário.

“Eu perdi uma mãe, mas tenho amigos que nem acreditam que o vírus existe e que, portanto, não levam em consideração o que dizem os médicos”, lamenta. “Como refugiado no Brasil, eu fiz campanha contra o vírus, mesmo antes de minha mãe ser contaminada, mas muitas vezes me senti perdido sobre que orientação seguir”. Abdo acredita que algumas declarações dadas por políticos brasileiros ajudaram a acabar com mais vidas e lamenta aqueles que demonstram maior preocupação com a economia do que com vidas humanas. “Como se sentiriam se perdessem seus filhos ou esposas?”.

Ao mesmo tempo, o sírio faz questão de enfatizar a qualidade do cuidado e da assistência recebidos pela mãe, e lamenta a falta de valorização do trabalho feito no Sistema Único de Saúde. “É um trabalho humanizado, merece apoio da população e do governo”. Com hipertensão e diabetes, a mãe de Abdo já era acompanhada pelo sistema antes de a pandemia chegar ao país e recebia regularmente a visita de uma equipe de saúde, lembra o filho: “Uma equipe vinha à nossa casa, trazia remédios para os problemas crônicos dela, nos dava apoio social”.

Para ele, as desigualdades sociais e a desvalorização dos sistemas públicos de educação e saúde são responsáveis pelo grande número de vítimas da covid-19 no país. “Muitas pessoas estão morrendo em silêncio”, expressa. Decidido a continuar no país, Abdo declara sua solidariedade com a dor das vítimas, talvez inspirado na própria trajetória. “Conheço o sofrimento na pele”, diz. Ele pretende retomar a rotina de palestras e projetos sociais que conduz por meio da ONG África do Coração, que fundou “com um amigo de luta”. “A condição de refugiado me fez ativista”.

KEILA, A FILHA DE MARIA JOSÉ

VIDAS INTERROMPIDAS

Chovia. Era madrugada. O edredom que cobria o corpo da mãe havia sido levado pela filha para o hospital 10 dias antes — quando a senhora de 66 anos fora internada com sintomas agudos de covid-19. Graças a esse edredom marrom com estampa floral, Keila Tamara Santos da Silva, de 44, conseguiu identificar aquela que passava coberta dos pés à cabeça, já sem vida, carregada pelos maqueiros na saída da UTI do Hospital Pronto Socorro 28 de Agosto, em Manaus. Era dona Maria José Santos da Silva, viúva, seis filhos, quatro netas — sua mãe.

A entrevista por telefone com Radis estava prevista para 16 horas do dia 8 de junho. Pouco antes, decidimos remarcar. A data coincidia com o trigésimo dia de morte da mãe e, apesar de estarem cumprindo todas as regras do isolamento social, Keila e os irmãos haviam combinado um momento juntos. Precisavam se fortalecer. Quando finalmente conversou com a reportagem, ela parecia serena. “Falar sobre isso vai ser como um desabafo”, disse.

Foram 13 dias em casa. Antes de ser internada, além do paracetamol, do chá de jambu e de outras receitas caseiras, a mãe de Keila foi medicada com azitromicina, que a família conseguiu comprar em farmácia manipulada, e hidroxicloroquina, a droga controversa cuja eficácia para casos de covid-19 carece de evidências científicas. “Mas suspendemos esse medicamento depois de dois dias. Ela reclamava de dores no estômago e tinha alucinações. Dizia que aquele remédio estava lhe matando”, recorda Keila. Tentavam controlar o quadro de dona Maria José, mas à medida que o tempo passava ficava mais evidente a necessidade de hospital.

A família pagou por uma consulta em um hospital da rede privada. Como dona Maria José estava com sinais vitais muito baixos, foram informados de que seria necessária a internação urgente. “O médico me disse que o valor de uma diária era 53 mil reais. Não tínhamos convênio nem condições de pagar”. Ela seria internada no 28 de Agosto, hospital de referência da rede pública, onde fez todos os exames impossíveis de fazer no particular. A tomografia do tórax e do crânio, o ultrassom do abdômen e o hemograma completo não deixaram dúvidas. Estava com o vírus ativo da covid-19 no pulmão. “Ficamos em desespero”. Começava ali a batalha por um leito de UTI.

Na tentativa de chegar mais perto da mãe, já que os boletins médicos disparados uma vez por dia não bastavam, Keila tentou de tudo. Em meio à aflição, contou com a solidariedade de um enfermeiro que lhe gravou um vídeo da mãe. “Isso nem é permitido, mas ele viu o meu desespero. Eu achava que minha mãe estava indo embora”. Foi um vídeo curtinho, alguns segundos que lhe trouxeram um pouco de paz. “Ela tirou a máscara e me disse: ‘Estou sendo cuidada, minha filha’”. O quadro de saúde parecia evoluir para uma melhora, mas ao final do terceiro dia de internação, o pulmão de dona Maria José não reagia e os batimentos cardíacos estavam baixos. Era preciso autorizar a intubação. Como seria encaminhada para uma sala de urgência, dona Maria José passaria pela família no corredor. “Por um momento, eu pude vê-la. Foi a nossa despedida”.

Sem rituais

Dona Maria José morreu em 8 de maio. Naquele dia, foi quase impossível seguir as orientações sanitárias que determinam a familiares e amigos de vítimas do novo coronavírus que evitem o contato e esperem os corpos serem liberados para enterro ou cremação por profissionais devidamente paramentados. Em tempos de pandemia, a recomendação é que os velórios sejam voltados apenas para os mais próximos da família, com caixão lacrado e sem procedimento de tanatopraxia [limpeza, tratamento e maquiagem do corpo para o velório]. Além disso, uma portaria publicada pelo Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Saúde permite o sepultamento e cremação de pessoas sem atestado de óbito prévio.

Ali, ao lado do marido, da filha e dos irmãos, Keila via chegar ao fim um pesadelo que já durava 23 dias. Mas tinha início uma nova via-crúcis: a agonia do luto sem rituais, a tristeza da despedida sem despedida. “Consegui uma funerária que permitiu que a gente tivesse duas horinhas com ela na manhã seguinte”. Os seis irmãos, genros e noras, uma das netas, além da família da mãe e um casal de amigos de Keila, todos usando máscaras e afastados entre si, reuniram-se para o adeus. Não houve abraço. O caixão ficou fechado. Uma fotografia impressa de dona Maria José foi o mais perto que conseguiram de um ritual.

Para Keila, também era inadmissível ver a mãe “jogada em uma cova com sete ou oito pessoas”, como vinha acontecendo em Manaus — diante do elevado número de mortos, a prefeitura começou a utilizar covas coletivas para sepultar vítimas ou casos suspeitos da doença. Mas dona Maria José foi enterrada ao lado do esposo. “Pudemos dar a ela o mínimo de dignidade. Minha mãe não foi jogada de qualquer jeito. Isso é desumano e injusto com qualquer pessoa”.

Os rituais de passagem entre a vida e a morte e mesmo o processo de luto variam de uma sociedade para outra e de acordo com as diferenças culturais e religiosas, bem como a partir das circunstâncias em que a morte acontece. Assim resume uma cartilha preparada pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes) da Fiocruz, voltada especialmente para o contexto da covid-19. Seja como for, os rituais fúnebres, que envolvem desde cerimônias de despedidas, homenagens, até modos diversos de tratamento dos corpos, como enterro ou cremação, são extremamente importantes. “O ritual permite que você honre a vida do morto”, diz Maria Helena Franco. Sem isso, a psicóloga acrescenta, você tira do enlutado uma possibilidade muito importante de se reorganizar.

Nesta pandemia, algumas formas de rituais fúnebres alternativos vêm sendo propostos como estratégias remotas de despedida. Mediados pela tecnologia, por meio de chamadas de vídeo, familiares e amigos próximos conseguem se reunir para uma última homenagem. Também como forma de expressar o luto, há cultos e missa virtuais e homenagens em forma de música e fotografia, que podem auxiliar no processo de ressignificação da perda. [Na cartilha elaborada pelo Cepedes/Fiocruz, você encontra outros modelos de suporte e apoio emocional para esse momento]. Mas os pesquisadores fazem a ressalva: cada pessoa fica enlutada à sua maneira, não existindo, portanto, maneiras melhores ou piores, nem a imposição de uma sequência rígida, que normatiza o processo. “O luto é uma experiência pessoal e única para cada pessoa e assim precisa ser respeitado”.

A família de Keila segue se refazendo. A mais velha dos seis irmãos tenta ser firme. “A gente se culpa, fica pensando se poderia ter feito algo diferente. Mas estou começando a processar de outra forma”. Busca consolo nas lembranças e nos ensinamentos de dona Maria José, valoriza as fotos, escreve sobre a mãe. E se pudesse dizer algo mais àqueles que estão vivendo experiência parecida com a sua, diria: “Nunca achamos que vai acontecer com a gente. O distanciamento social é uma coisa séria. Se você puder cumprir com o isolamento, fique em casa. Faça isso por você e pelas pessoas que você ama, antes que aconteça”.

Enquanto a covid não passa

Caroline viu a família adoecer depois de um aniversário, ainda no início da pandemia. Aline assistiu à irmã ir parar numa UTI após uma ida ao mercado. Mas não adianta refazer a trajetória em busca de uma explicação. A vida ficou em suspenso. Devagar, elas vêm retomando o cotidiano, um passo por vez, olhando para a frente. Dos “dias de terror” vividos há bem pouco tempo, guardam ainda todo o sofrimento, mas também a torcida dos amigos e verdadeiras correntes de solidariedade que se formaram no espaço virtual e lhes ajudaram a passar pela tormenta. Ao lado da peregrinação por notícias, o distanciamento total é uma das maiores queixas de familiares que se veem enredados no pesadelo de ter um parente internado com o novo coronavírus. As medidas de segurança restritivas se justificam pelo alto contágio da doença — qualquer membro da família sabe. Mas é difícil controlar a ansiedade, a insegurança e o medo da perda — isso, os boletins médicos escassos estão longe de conseguir acalmar.

Ainda não acabou

Em março, Caroline Couto e o companheiro Zeh Gustavo deixaram Cuiabá, onde moram desde 2018, em direção ao Rio de Janeiro. Queriam aproveitar o final das férias. O que não imaginavam é que a viagem iria ter como consequência a contaminação do casal, do pai dela, Rogério Couto, e de sua madrasta, Ângela Esteves. Três meses depois, a família ainda sofre os impactos da decisão, tomada quando ainda não se recomendava isolamento social: Zeh Gustavo e Ângela se recuperaram em casa, mas pai e filha precisaram de tratamento hospitalar.

Aos 74 anos, Rogério foi o primeiro do grupo a apresentar sintomas. No Rio, passou por uma maratona de médicos, exames, dois hospitais, dois meses em um Centro de Terapia Intensiva (CTI), muitos antibióticos, uso de cloroquina, diálise. Enquanto isso, de volta a Cuiabá, Caroline era internada com “uma pneumonia típica da covid-19” e submetida a sessões de fisioterapia respiratória. Só pensava em voltar ao Rio, estar perto da família. Mas, mesmo depois de liberada do hospital, precisou respeitar o período mínimo de isolamento de duas semanas.

Quando Radis conversou com Caroline, três meses depois, a família convivia com as muitas mudanças. Recuperada, a professora da rede estadual de ensino do Mato Grosso voltou para o Rio a fim de ajudar na recuperação do pai, que está em casa mas sofre severas consequências: além das escaras [lesões na pele muito comuns em períodos longos de internação], vem sendo submetido a oxigenoterapia hiperbárica [modalidade terapêutica na qual o paciente respira oxigênio puro, numa câmara], tem que fazer sessões diárias de fisioterapia e necessita de ajuda para tarefas simples, como ir ao banheiro.

“Não poder me comunicar com meu pai gerou uma angústia muito grande”, descreve Caroline. Enquanto ela esteve em Cuiabá, Rogério era acompanhado pela outra filha, Daniele, fisioterapeuta. As irmãs se falavam diariamente. Mas nada disso foi fácil. Do Rio, Daniele repassava o que recebia dos médicos, também pelo telefone. Segundo Caroline, os comunicados feitos pelo hospital não tinham regularidade e as informações eram imprecisas. “Parecia um telefone sem fio”.

Em alguns momentos, quando ligavam para o hospital em busca de notícias, recebiam apenas o que estava registrado no prontuário de Rogério. “Há muita mudança de equipe no hospital. Quem recebe uma ligação, não vai ao quarto do paciente, informa apenas o que está escrito no papel”. Em razão disso, muitas vezes as duas irmãs tomaram sustos desnecessários. “Conseguimos passar por tudo isso, mas ainda não acabou”, ressalta Caroline. Agora, ela, Zeh Gustavo e Ângela dividem os cuidados com Rogério. Estar ao lado do pai, no momento de sua recuperação, por mais que seja estressante, também vem sendo visto como uma oportunidade de crescimento. “Eu me sinto bem por poder ajudar”, reflete.

Perto de um final feliz

Para a família da cearense Aline Bezerra, 51 anos, foram dias de angústia. Sentiam-se impotentes, “à deriva”, como ela diz, tentando lidar com informações sobre saturação de oxigênio, marcadores inflamatórios, índices de hemoglobina e leucócitos, que todos precisaram aprender a ler.

Ana Maria Bezerra de Queiroz, sua irmã de 55 anos, casada, dois filhos, começou a apresentar sintomas leves de covid-19. Chegou a ir ao hospital, mas com menos de 10% do pulmão comprometido, não ficou internada e passou a cumprir os protocolos e receber medicação em casa.

À medida que os dias avançavam, a febre constante, um forte cansaço e a falta de ar eram vistos como sinais alarmantes. Da cabeça dela, não saía uma informação que havia lido na porta do mercado, onde fizera as últimas compras, uma semana atrás: “Estamos fechados”. Soube pela vizinhança que dois funcionários e o casal de proprietários haviam sido contaminados. Era um domingo, 2 de maio, quando voltou ao hospital. Dessa vez para uma internação que iria durar 34 dias. O nível de comprometimento de um dos pulmões já estava em 25%. Dali a duas semanas, quando ocupou um dos 10 leitos na UTI lotada, seria de 75%.

Na agonia por notícia, a família apelou para médicos, enfermeiros, plantonistas conhecidos, qualquer pessoa que pudesse ajudar com informações sobre o quadro clínico de Ana Maria. Enquanto ainda estava à espera de um leito, a família tomou uma decisão que lhes trouxe um certo alívio: contratou um infectologista para uma consulta de 40 minutos. Do lado de fora, começou a se formar uma corrente pela recuperação da paciente. “A mãe está fazendo uso de antibiótico, corticoide e do anticoagulante e não teve febre. Houve diminuição dos marcadores inflamatórios, mas ainda necessita ficar na UTI por conta de ter um maior aparato. Continuemos rezando para que se recupere logo!”, escreveu o filho Artur, em uma das mensagens que Aline rapidamente fazia chegar a uma enorme quantidade de pessoas.

Disparadas por meio de redes sociais pela manhã e no final da tarde, a despeito do boletim oficial liberado pelo hospital apenas uma vez por dia, as notícias chegaram a um número cada vez maior de pessoas. “Foi se formando em torno de nós uma grande corrente de boas energias vindas de todos os lugares. Era uma forma de a gente se fortalecer. No meio desse desamparo, de algum modo, nos sentíamos protegidos”. No dia que a irmã deixou o hospital, Aline planejou ir até o local, esperar do outro lado da calçada. Queria acenar para Ana Maria, dar as boas-vindas no recomeço. Mas desistiu, em nome da segurança.

Em vez disso, usou novamente as redes e, pelo WhatsApp, disparou uma última mensagem a todos que ao longo daqueles dias também se tornaram família. A esses, queria deixar registrado: “Minha eterna gratidão por ser uma parte superimportante na recuperação da saúde e cura de minha irmã. Sigamos com as nossas preces para que todos que ainda encontram-se lutando por saúde e cura, possam comemorar positivamente como estamos hoje”. O canal no Youtube em que Ana Maria conta histórias para crianças e adultos continua sem novidades desde que a pandemia alterou o curso de sua vida de forma inesperada. Enquanto ela se recupera totalmente da covid-19, os cerca de 900 seguidores de “Maria Flor de Capim” aguardam a próxima história.

Querido paciente

“Querida mãe, aqui é sua filha Bia. Queria dizer que estou com muita saudade da senhora e que logo, logo nos veremos. Aqui em casa, sentimos muito a sua falta. O pai ficou doidinho sem a senhora, limpou até o azulejo da cozinha, a casa está impecável”. Na carta afetuosa, a filha cheia de saudades aproveita para dar notícias à mãe, internada com covid-19 na UTI do Hospital de Clínicas da Unicamp. “Vamos, mãe, a senhora vai sair dessa. Seja guerreira mais do que está sendo”, diz, antes do ponto final. Há fé e esperança nas linhas que a equipe de enfermagem lê, pausadamente, ao pé do leito da paciente.

Desde que recebeu a notícia de que iriam cuidar dos pacientes com covid, a equipe de enfermeiros ficou apreensiva. “Quando eles chegaram, o que mais nos chamou a atenção foi a quebra do vínculo com a família. Era muito chocante vê-los ali dentro da UTI, isolados de tudo e de todos”, conta Bruna Dias, uma das idealizadoras do projeto das cartas que hoje encoraja a todos no HC, em Campinas (SP). No início, ela e a colega Márcia de Souza tentaram a liberação dos celulares junto à supervisora — mas os aparelhos eram proibidos antes mesmo da pandemia. “Por questões de exposição da equipe e dos próprios pacientes, ela nos disse que seria inviável, mas que poderíamos pensar em alguma outra alternativa”.

Assim foi feito. Do lado de fora, Márcia passou a realizar o acolhimento das famílias durante a espera pelo boletim médico. Ali, as enfermeiras reservaram um espaço onde fica uma caixa com papel e lápis, “o cantinho do abraço”. Dentro da UTI Covid, toda a equipe de enfermeiras, além de médicos e fisioterapeutas, começaram a ler as cartinhas, até mesmo para pacientes intubados. “A aceitação foi tão grande que várias pessoas da família passaram a escrever, amigos, colegas de trabalho”, continua Bruna. “Pensamos nas cartas como forma de comunicação e no ‘cantinho do abraço virtual’, para que tanto os pacientes quanto as famílias se sentissem abraçados”.

A carta de Bia foi a primeira que lhe chegou nas mãos e Bruna estava tão emocionada que não conseguiu ler. A mãe, destinatária, também se comoveu. “O tubo na garganta, que a ajudava a respirar, impedia que ela pudesse falar alguma coisa. Mas ela apertou a mão, como sinal de que estava ouvindo, e lágrimas escorreram pelos olhos”. Bruna diz que os pacientes que estão acordados e conscientes ficam extremamente felizes, sorriem, contam sobre a família. “São todas muito emocionantes. Por um momento, imaginamos um de nossos familiares ali, na nossa frente”, conta. Uma colega lhe confessou que, ao ler cada carta, sente como se fosse alguém da família do paciente: uma filha, uma esposa, uma amiga, uma mãe.

Radis pediu que Bruna fizesse o caminho inverso e assumisse o papel de remetente. Se a enfermeira fosse escrever uma carta para os familiares, o que lhes diria? “Não percam a fé, entreguem na mão de Deus e acalmem os vossos corações. Nada nessa vida é para sempre, então, as coisas ruins também vão passar. Mandem energias positivas que estamos cuidando com todo o carinho do amor da vida de vocês. Vibramos com cada batalha vencida aqui dentro da UTI e a nossa maior recompensa será quando seus entes queridos estiverem com vocês. Lutem aí fora, que estamos lutando aqui dentro”.


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