19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Brasil chega a 55 mil libertados com covid pressionando trabalho escravo

Publicado em 23/07/2020 12:00 -

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O Ministério da Economia, que incorporou a área de fiscalização do extinto Ministério do Trabalho, anunciou que o Brasil atingiu oficialmente a marca de 55 mil trabalhadores resgatados da escravidão contemporânea. Os números, que estão no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, referem-se ao período entre maio de 1995, quando o país criou seu sistema de combate a esse crime, e o final do primeiro semestre de 2020.

No total, R$ 108 milhões foram quitados por empregadores como salários atrasados e verbas rescisórias, sem contar indenizações.

Também informou que 231 pessoas foram libertadas do trabalho escravo no primeiro semestre deste ano, em 45 ações realizadas tanto pelos grupos de fiscalização móvel, que respondem diretamente a Brasília, quanto pelas estruturas da fiscalização do trabalho nos Estados. A pandemia reduziu um pouco a quantidade de operações em relação ao mesmo período no ano passado – 52, que resgataram 232 pessoas.

"Desde que o primeiro caso de covid no Brasil foi registrado, no dia 26 de fevereiro, 201 trabalhadores foram resgatados em 22 operações", explica Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae). Não é possível saber exatamente quando o coronavírus aportou por aqui.

Inicialmente, as operações haviam sido interrompidas para evitar que os grupos, formados por auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho, procuradores da República, policiais e defensores públicos fossem vetores de contaminação e eles próprios se contaminassem.

Pandemia deve elevar casos de trabalho escravo

O relator especial das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão, Tomoya Obokata, cobrou de governos que melhorem a proteção dos mais vulneráveis, que estão em situação ainda mais precária por conta do aumento do desemprego relacionado ao fechamento de empresas em meio ao coronavírus. Ele afirma que a pandemia deve aumentar o número de escravizados no mundo.

"Durante a atual emergência sanitária, exorto os Estados a identificar as pessoas que enfrentam o maior risco de cair em trabalhos exploradores e aumentar sua proteção por meio de políticas de salvaguarda", diz Obokata. "Se nenhuma ação for tomada nesse sentido, existe o risco de que significativamente mais pessoas sejam empurradas para a escravidão agora e no longo prazo."

Para ele, embora bilhões de trabalhadores tenham sido afetados pela covid-19, o impacto é muito mais forte para quem está na economia informal, além de diaristas e temporários, muitos dos quais mulheres e migrantes. E ressalta que devido à falta de apoio adequado por parte de governos, crianças enfrentam um risco maior de exposição às piores formas de trabalho infantil. A Organização Internacional do Trabalho estima a existência de mais de 40 milhões de escravizados no planeta.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Trabalhadores têm sido resgatados em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na construção civil, em oficinas de costura, em bordeis, entre outras atividades.

Poucos fiscais para vigiar condição de trabalho

O governo federal conta com 3.644 cargos de auditores responsáveis pela fiscalização do trabalho no Brasil, mas apenas 2.050 deles estão ocupados, representando 56% do total, com um déficit de mais de 1,5 mil. A capacidade do poder público de garantir proteção à saúde e segurança dos trabalhadores em um momento de pandemia tem preocupado instituições que atuam na defesa desses direitos. Da contaminação em série de operários em unidades de frigoríficos até a falta de proteção a motoristas e cobradores de ônibus, a lista dos que tiveram que trabalhar durante a pandemia e precisam da atuação dos fiscais é grande.

Às vezes, trabalhar contra sua própria vontade. A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), que reúne entidades da sociedade civil e órgãos do poder público para monitorar o cumprimento da política nessa área, divulgou nota manifestando preocupação quanto à ausência de concursos.

Da mesma forma que o déficit no número de fiscais do Ibama e do ICMBio reduz a capacidade do poder público de coibir danos ambientais, o número insuficiente de auditores do trabalho diminui a capacidade de acompanhamento da proteção da saúde e segurança dos trabalhadores, da prevenção de acidentes, da obediência a cotas para pessoas com deficiência, do combate à informalidade, bem como da erradicação do trabalho infantil e da escravidão contemporânea.

"O número deficitário desses profissionais cria cenário propício para o aumento da escravidão contemporânea no país, pois a fiscalização do trabalho é a base da política de combate ao trabalho escravo e os auditores fiscais do trabalho são de grande importância para a constatação dessa violação e indispensáveis para a responsabilização administrativa dos exploradores e a lavratura dos autos de resgate das vítimas escravizadas", afirma o documento.

Para o relator especial das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão, Tomoya Obokata, a pandemia de covid-19 deve aumentar o flagelo da escravidão ao redor do mundo. Por isso, exortou os Estados a "identificar as pessoas que enfrentam o maior risco de cair em trabalhos exploradores e aumentar sua proteção por meio de políticas de salvaguarda". O que inclui a fiscalização.

"O déficit compromete o combate ao trabalho escravo. São os auditores fiscais que lavram os autos de infração nos resgates, liberam o seguro-desemprego aos trabalhadores, impõem as multas administrativas e coordenam as fiscalizações", avalia o procurador Italvar Medina, vice-coordenador de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho.

Desde maio de 1995, mais de 54 mil pessoas foram resgatadas pelo poder público através da ação de grupos de fiscalização móvel, com auditores, procuradores do trabalho e da República, policiais e defensores públicos.

"Tem sido comum, em algumas gerências regionais do trabalho, a dificuldade de organizar operações por falta de auditores. E muitos auditores estão prestes a se aposentar. Ou seja, em breve teremos menos da metade da carreira ocupada", afirma.

O impacto do coronavírus na fiscalização

O número de cargos ocupados na nota da Conatrae é de 2.091, mas a quantidade real já caiu a 2.050. A atualização foi feita à coluna por Carlos Silva, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait). Segundo ele, a forma como o poder público tem encarado o coronavírus tem parte de responsabilidade nisso.

O déficit não é um problema apenas do governo Jair Bolsonaro, uma vez que o último concurso para a categoria foi em 2013 – para 100 vagas. Desde então, os governos Dilma Rousseff e Michel Temer não abriram o preenchimento de vagas. O presidente do Sinait aponta, contudo, que a tendência de perda vem se agravando.

"Parte dos auditores com mais de 60 anos acabaram pedindo a aposentadoria com medo de terem que ir para linha de frente em meio à pandemia, já que são precárias as medidas de proteção para impedir sua contaminação. Isso combinado com os efeitos da Reforma da Previdência aumentou o ritmo na redução de cargos ocupados. É um estrangulamento da nossa estrutura", afirma Carlos Silva.

A Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 1957, prevê que o número de fiscais deve ser suficiente para permitir o exercício eficaz das funções de serviço de inspeção.

Na sentença do Caso Brasil Verde, que condenou o Brasil por não dar o tratamento devido à exploração de pessoas por trabalho escravo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ressaltou esse déficit. E instou o Estado a incrementar seu poder de fiscalização para não permitir retrocessos.

A coluna conversou com auditores de cinco estados que reclamaram da falta de recursos humanos e de estrutura para a realização de inspeções, principalmente em regiões rurais.

Ministério da Economia não dá previsão de concurso

Questionado pela coluna sobre a realização de concursos para auditor fiscal do trabalho, o Ministério da Economia, através de sua assessoria de comunicação, afirmou que, com a edição da Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, "estão proibidos até 31 de dezembro de 2021, ressalvados casos específicos definidos nessa norma, a admissão ou a contratação de pessoal e a realização de concursos públicos".

A lei 173/2020, que estabelece o programa de enfrentamento ao coronavírus, afirma, contudo, em seu artigo 8º, que concurso público está permitido para vacâncias de cargos efetivos.

O ministério também disse que "analisa as demandas relativas à admissão de pessoal encaminhadas pelos órgãos da administração pública federal conforme são recebidas" e, quando autorizadas, são publicadas no Diário Oficial da União. E que não comentam solicitações que estão em análise.

E afirmou que "o Ministério da Economia apenas autoriza o orçamento para concurso. O agendamento e a realização do certame cabem a cada órgão".

Vale ressaltar, contudo, que desde que o governo Jair Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho e Emprego incorporou as funções de inspeção ao Ministério da Economia. Ou seja, ele é o responsável por isso.

A coluna apurou que um pedido por preenchimento de vagas tramita internamento no ministério, mas não há previsão para abertura de processo.

Ataques à fiscalização do trabalho

Auditores fiscais do trabalho têm sofrido ataques semelhantes aos de outras servidores públicos que atuam na fiscalização, como funcionários do Ibama, do Incra, do ICMBio, da Receita Federal.

De deboches e insinuações sobre o fim da fiscalização com a nova conjuntura política até a exposição de armas e ameaças, auditores que conversaram com a coluna reclamaram das condições de trabalho. Tem sido comum empregadores se exaltarem e irem para o enfrentamento mesmo com policiais armados fazendo a segurança de uma operação.

O Sinait divulgou uma linha do tempo com 22 casos de ataques a auditores desde a Chacina de Unaí – quando, em janeiro de 2004, três fiscais e um motorista do então Ministério do Trabalho foram mortos a mando dos fazendeiros Norberto e Antério Mânica, em Minas Gerais – até o caso envolvendo um escritório de contabilidade em junho. Somente no ano passado, foram seis casos graves de ameaças e agressões a fiscais.

A carta dos deputados norte-americanos

"O presidente Bolsonaro deu passos significativos para trás em relação às proteções para trabalhadores no Brasil. Em seu primeiro dia no cargo, eliminou o Ministério do Trabalho, delegando muitas de suas funções aos Ministérios da Economia e da Justiça. Bolsonaro continua ameaçando enfraquecer os direitos trabalhistas para aumentar a criação de empregos."

A declaração está em uma carta enviada por 24 deputados da Comissão de Orçamento e Tributos do Congresso norte-americano ao representante do Comércio do governo Donald Trump, Robert Lighthizer no mês passado. Na época de sua divulgação, houve atenção por aqui às críticas ambientais que ela trazia, mas não para as trabalhistas.

"Além desses recentes retrocessos nas questões trabalhistas, o Brasil ainda enfrenta profundas dificuldades em erradicar condições análogas às de trabalho, que continuam sendo um problema significativo", diz o documento.

Se depender da vontade dos democratas, o Brasil não avançará em acordos e parcerias comerciais com os Estados Unidos: "Esse tipo de desrespeito ativo pelos direitos básicos dos trabalhadores e pelas normas trabalhistas deve desqualificar o Brasil de ser considerado um parceiro apropriado para uma parceria econômica mais estreita, muito menos um acordo de liberalização comercial que comprometerá a competitividade, os salários e os direitos dos EUA trabalhadores".

Com isso, a fragilização do combate ao trabalho escravo e a redução de proteções trabalhistas podem causar dores de cabeça econômicas semelhantes às do desmatamento ilegal e das queimadas, que colocaram o Brasil em evidência internacional. Um "dumping social" – para citar o termo usado pelo próprio Donald Trump ao se referir a esse tipo de prática. Mira a Ásia, mas nos atinge colateralmente.


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