29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O Homem que Matou a Democracia

Publicado em 22/07/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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Não acho que é polêmico ou genial, em 2020, dizer que a democracia como instituição política está seguindo o destino do muro de Berlim. A tendência é que a coisa piore. Não tem essa de coalizão pela democracia. A porteira quebrou e a questão agora é brincar de adivinhar de que lado da ribanceira rolaremos abaixo. Mas o que matou a democracia? Ou melhor: Quem matou a democracia. A resposta vai surpreender você. 

Mas antes de falar da morte, temos que fazer um breve (super breve) resumo histórico. Tanto a democracia grega quanto a contemporânea (franco-americana) nasceram da mesma demanda. Gente rica de saco cheio de sustentar rei. As elites queriam acesso ao poder pelo qual pagavam tanto. Na guerra da independência dos EUA, isso foi (é claro) transformado em slogan. "No taxation without representation". Algo como "Não à tributação sem representação". Então quando essa elite chegou ao poder nas respectivas nações, a preocupação era uma só: como administrar um país sem supremo mandatário, sem rei? E, principalmente, sem abrir mão do "controle". 

Dando uma acelerada na história, chegou-se ao formato com legislativo, judiciário e um novíssimo executivo, com uma figura que não é rei, posto que não é absoluto em relação aos outros poderes e, principalmente, porque seu mandato é finito, ou seja, após um período, elege-se um novo "governante". (E essas elites tinham tanta preocupação com a "desmonarquização" do chefe do Executivo que passaram meses discutindo o nome do novo cargo. Tinha que ser algo algo meio que desimportante, sem afetações ou conotações de prestígio. Era só alguém que, momentaneamente, presidia o poder executivo. Daí, presidente.)

Mas quem elegeria? Ora, quem? Eles. Os ricos. Os proprietários de terra. Os homens. E mais ninguém. E foi assim por bastante tempo, até que a revolução industrial fez da classe operária um insumo indispensável para a produção de riqueza. Aí, quem produzia as mercadorias que geravam lucros para os ricaços (além de pagar impostos como eles) começou a exigir o fim da… "taxação sem representação". Foi assim que a classe trabalhadora conquistou o direito ao voto, no grito e no protesto. E os negros. E as mulheres. E votando, elegeram representantes e conquistaram direitos. Da liberdade de expressão (para todos) à liberdade de ir e vir (para todos), tudo o que hoje associamos como benesses da democracia são, na verdade, adições realizadas ao contra-gosto dos idealizadores do sistema. O melhor da democracia são os puxadinhos construídos à revelia do senhorio.  E essa é a causa mortis do sistema democrático: os ricaços precisavam acabar com essa baderna de "todos iguais perante a lei".

Apresento aos senhores o assassino da democracia: Newt Gingrich, um político conservador norte-americano. 

Os comentaristas pagam pau pra Bannon, Boris Johnson e Carluxo, mas Newt já usava fake news, novas mídias, teorias da conspiração e tribalismo para sabotar o processo eleitoral muito antes de virar modinha. Aliás, muito pouco acontece no Brasil se não for modinha nos EUA primeiro. 

Senta que lá vem história:

O partido Democrata (um PSDB representando a esquerda num sistema bi-partidário) dominou o congresso dos EUA por 40 anos. Mas um jovem deputado Republicano (um PSC representando a direita num sistema bi-partidário) estava prestes a mudar isso: Newt Gingrich montou um plano solitário para implodir a democracia. Tá, não era isso que ele tinha em mente. Queria acabar com a hegemonia dos Democratas no Congresso. E se, no processo, a democracia em si desmoronasse, paciência.

O plano de Newt tinha três pontos: Mídia, Tribo e Legislação. Como havia pouco espaço para corservadores na grande mídia, aproveitou-se das novas tecnologias da época. TV à Cabo era uma inovação recente e, com ela, veio a C-Span, uma espécie de TV Câmara gringa. Parecia uma avó do Youtube. Resumia-se a uma câmera fixa no púlpito durante as sessões, sem cortes. Newt aproveitava aquelas sessões desertas (comuns aqui e lá) para atacar deputados democratas e exigir respostas às suas acusasões aburdas. Detalhe: os atacados não estavam presentes na sessão. Mas, para quem acompanhava de casa, parecia que o Republicano estava lacrando horrores pra cima dos democratas e suas ideias absurdas (a maioria, fake news) e os democratas, calados, não ousavam abrir a boca. Parece bobo, hoje em dia. Mas na época foi um sucesso e cativou os reacinhas da "América Profunda". 

Havia, no Congresso, um consenso sobre a alternância do poder em virtude das eleições. O decoro cívico orientava que oposição fisse sempre respeitosa e construtiva. Gingrish foi pioneiro no tribalismo da democracia contemporânea, orientando e incentivando o obstrucionismo como estratégia para reforçar o partidarismo no eleitorado. Foi ele quem criou o "nós conta eles" tribal que sufoca todo mundo nas redes sociais. 

O terceiro passo foi aproveitar o crescimento dos quadros republicanos para alterar a legislação eleitoral, fuçando o voto distrital para fazer que o número de eleitores se tornasse cada vez menos importante do que a região de onde tinham se originado. Isso permitiu que um estado com menos de um milhão de habitantes tivesse mais impacto do que, por exemplo, a Califórnia. Também foi ele quem encampou iniciativas para dificultar o acesso de pobres às urnas. 

Parece novela da Glória Peres, mas nem eu nem ela inventamos nada disso. Recomendo o livro "The Red and the Blue: The 1990s and the Birth of Political Tribalism", de Steve Kornacki. 

Hoje, Newt Gingrish observa, satisfeito, o legado do seu trabalho: Bush pai, Bush filho, Trump, Guerra do Golfo, Afeganistão, Iraque, duas crises econômicas mundiais e a multiplicação de miseráveis e bilionários mundo afora. E, colateralmente, o benchmarking para a erosão do discurso democrático ao redor do mundo. Como bom conservador, Newt vive bem sua aposentadoria milionária e dorme tranquilo à noite. Só realinhou, à machadadas, o sistema à intenção dos seus fundadores: a ideia sempre foi uma plutocracia.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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