28/03/2024 - Edição 540

Poder

Entidades denunciam violação de direitos indígenas na CIDH e na ONU

Publicado em 17/07/2020 12:00 -

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Após o presidente Jair Bolsonaro vetar 22 pontos do projeto de lei (PL) 1142/2020, que previa proteção aos povos indígenas e quilombolas durante a pandemia da covid-19, uma carta assinada por 202 entidades, entre frentes parlamentares, partidos e instituições da sociedade civil, foi protocolada no Senado Federal, solicitando uma sessão do Congresso para a derrubada desses vetos.

"Os vetos, que denotam desconhecimento e racismo estrutural, pretendem neutralizar a efetividade da nova Lei, que dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas, e de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento desse vírus invisível e mortal. Trata-se de afronta autoritária à Constituição Federal e à decisão soberana do Congresso Nacional, que aprovou nas duas casas legislativas, quase por unanimidade o Projeto de Lei", diz o documento.

O documento alerta que ao todo, mais de 13 mil indígenas já foram infectados pela covid-19, e 461 morreram. A pandemia já chegou para 127 povos, conforme o Comitê Nacional de Memória e Vida Indígena. Entre os quilombolas existem 3.034 infectados e 131 óbitos, monitorados pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

"Senhor Presidente, Senador Davi Alcolumbre, considerando que há quatro meses essas comunidades enfrentam a pandemia com cada vez mais contaminados e mortes em seus territórios, e confiando na vossa sensibilidade, vimos solicitar a realização de sessão do Congresso Nacional na próxima semana, para que os vetos ao PL 1142 sejam analisados e derrubados, contribuindo assim para salvar vidas dos povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais e demais povos e comunidades tradicionais do nosso país", finaliza a carta.

Dentre os vetos de Bolsonaro, está a exigência de fornecimento de acesso a água potável e distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e de desinfecção para as aldeias indígenas. Ele também barrou a obrigatoriedade de o Executivo liberar verba emergencial para a saúde indígena, instalar internet nas aldeias e distribuir cestas básicas.

O presidente também vetou o dispositivo que exigia que o governo facilitasse aos indígenas e quilombolas acesso ao auxílio emergencial e executasse ações para garantir a essas comunidades a instalação emergencial de leitos hospitalares e de terapia intensiva, com o fornecimento de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea.

Denúncia

A violação sistemática do governo federal aos direitos indígenas no contexto da pandemia de Covid-19 foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no último dia 15. O secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Oliveira, expôs a grave situação dos povos originários no país. “A política do atual governo é contra os direitos humanos, de incitação ao ódio, preconceito e violência”, sintetizou.

Na avaliação de Eduardo, o presidente da República, Jair Bolsonaro, vai na contramão do que seria seu dever constitucional: o de proteger as populações mais vulneráveis. “Todo o sistema de proteção aos direitos foi desestruturado, inclusive o Programa Mais Médicos, que atendia populações em suas aldeias. Com a chegada do novo coronavírus, milhares de indígenas ficaram sem proteção e atendimento”, enfatizou, acrescentando que organizações indígenas têm somado esforços para suprir o vazio deixado pelo Estado.

As denúncias foram recebidas pelo relator para o Brasil, Chile e Honduras, Joel Hernández García, durante reunião no âmbito da 176ª sessão da CIDH. Mais de 10 organizações da sociedade civil participaram do encontro, expondo os ataques enfrentados pela população negra, carcerária, LGBTQI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros queer e interesexos).

Também foram abordados assuntos como o descumprimento de regras de isolamento social, falta de saneamento básico, moradia adequada, retrocessos no mundo do trabalho e o aumento da violência policial e contra as mulheres, entre outros. Além disso, as entidades ressaltaram a urgência no pedido de apoio, já que o Brasil desponta entre os países mais afetados pela Covid-19. Mesmo com a subnotificação, o número de casos e óbitos segue em curva ascendente e o número registrado de mortes já ultrapassa 75 mil.

Veto a direitos básicos

Os vetos ao Projeto de Lei que buscava assegurar medidas emergenciais, durante a pandemia, para povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais foram ressaltados por Eduardo. “Na semana passada, em mais um ato de desumanidade, o presidente Bolsonaro vetou 16 artigos do PL 1142, aprovado pela Câmara e Senado Federal, que previa, entre outras medidas, a garantia de acesso à água potável, alimentação, leitos hospitalares e medicamentos”.

A incompetência e negligência do governo federal no que diz respeito à divulgação de dados sobre contaminação foi levantada pelo secretário-executivo do Cimi. “As organizações indígenas contabilizam mais de 500 óbitos, em 130 povos. Os dados oficiais do governo apontam pouco mais de 200 óbitos; isso devido à subnotificação, por não considerarem a existência de indígenas residentes em centros urbanos. Estes são sepultados sem nome e sem povo”.

A presença de invasores nos territórios indígenas foi pontuada por Eduardo, referindo-se aos garimpeiros, grandes mineradoras, madeireiros e latifundiários. “São presenças criminosas que destroem suas terras, suas águas, suas florestas e seu modo de vida tradicional, afetando não apenas a sua sobrevivência, mas a de todo o planeta”.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) classificou como injustificáveis e desumanos os vetos. Para a CNBB o Congresso Nacional tem desempenhado um papel fundamental neste momento de pandemia, "pautando iniciativas que buscam responder aos impactos urgentes da pandemia, particularmente aos que afetam diretamente a vida dos mais pobres e vulneráveis".

A entidade classificou como louvável a aprovação pelo Congresso do Plano Emergencial para Enfrentamento à covid-19 nos Territórios Indígenas, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais.

"Com indignação e repudio a CNBB tomou conhecimento, no último dia 7 de julho, que a sanção do Exmo. Sr. Presidente da República ao PL 1142/2020, agora Lei nº 14.021, contém 16 vetos. Esses vetos são eticamente injustificáveis e desumanos pois negam direitos e garantias fundamentais à vida dos povos tradicionais, como por exemplo o acesso a água potável e segura”.

Na avaliação dos bispos da igreja católica, os vetos do governo atentam contra a Constituição Federal. "Com efeito, ao abolir a obrigação de acesso à água potável e material de higiene, de oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, bem como outros aspectos previstos no PL 1142/2020, como alimentação e auxílio emergencial, os vetos violam o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inc. III), do direito à vida (CF, art. 5º, caput), da saúde (CF, arts. 6º e 196) e dos povos indígenas a viver em seu território, de acordo com suas culturas e tradições (CF, art. 231)".

O documento é assinado pelo presidente da CNBB, o Arcebispo de Belo Horizonte Walmor Azevedo de Oliveira e pelo secretário geral da CNBB, o Bispo auxiliar de S. Sebastião do Rio de Janeiro.

Na ONU

O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) também denunciou o presidente Jair Bolsonaro ao Conselho de Direitos Humanos da ONU pelo veto a dispositivos da lei que prevê medidas para proteger indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais durante a pandemia do novo coronavírus. O senador pede que a organização “encaminhe comunicação ao Brasil com apelo urgente” em ofício enviado ao relator especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas do Conselho das Nações Unidas.

Contarato cita o “descaso, seja por ação ou omissão, em proteger os povos indígenas da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus” do presidente e afirma que o veto desrespeita convenções e diretrizes da organização de que o Brasil faz parte. Entre elas uma convenção da Organização Internacional do Trabalho, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, e uma resolução da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, além de diretrizes traçadas em 29 de junho pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre povos indígenas.

“Considerando a gravidade da situação, que poderá levar à extinção de grupos indígenas inteiros caso não sejam tomadas medidas adequadas e rápidas, solicito que este Relator Especial encaminhe comunicação ao Brasil com apelo urgente para que o Presidente da República siga todos os tratados e diretrizes internacionais acima mencionados, a fim de possibilitar a mais ampla proteção dos indígenas durante o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus”, diz o documento. “Cabe lembrar que a presente denúncia é relativa a um governo que adota política de notória e sistemática agressão ao meio ambiente, que tem efeitos concretos nas comunidades indígenas”, diz a denúncia. 

O senador, que preside Comissão de Meio Ambiente do Senado, afirmou que atua para que o Congresso vote pela derrubada dos 16 vetos de Bolsonaro à lei. “O descaso do governo Bolsonaro nos leva a denunciá-lo à ONU. Espero que a pressão internacional faça o presidente assumir esse socorro”, disse.

Próximos passos

De acordo com Antônio Eduardo Oliveira, o relator demonstrou preocupação com o cenário alarmante exposto pelas organizações. “Ficou claro que o governo brasileiro não tem um planejamento mínimo para lidar com os desafios trazidos pela pandemia. O relator salientou sua apreensão em relação aos indígenas, em especial aos isolados, e indicou que fará um relatório com todas as questões e levará à plenária da CIDH para providências”.

Além de realizar reunião temáticas, a CIDH recebe denúncias formais de organizações sociais, que são analisadas e, quando comprovadas, encaminhadas para o julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) – podendo resultar em sanção ao governo federal. Em 2018, por exemplo, a Corte responsabilizou o Estado brasileiro pela violação do direito à proteção judicial e à propriedade coletiva do Povo Indígena Xukuru, em Pernambuco. A indenização ao povo foi de US$ 1 milhão.

Entre as entidades que participaram da reunião estão a Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil; Fórum Ecumênico Act Brasil; Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexos; Centro de Educação e Assessoramento Popular; Comissão Pastoral da Terra, SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, Pastoral Carcerária Nacional, Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários UNISOL Brasil, e Processo de Articulação e Diálogo Internacional.

Recursos para saúde indígena em queda

O Ministério da Saúde anunciou em junho que "investiu cerca de R$ 70 milhões em ações específicas de proteção aos indígenas para enfrentamento da covid-19". Os recursos foram usados para a compra de mais de 600 mil Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), insumos em saúde e medicamentos, que foram enviados aos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).

Segundo a pasta, isso inclui "372,7 mil máscaras cirúrgicas e N95, 166,7 mil luvas, 13,4 mil aventais, 16,6 mil toucas, 6 mil frascos de álcool em gel e também mais de 29 mil testes rápidos que garantem a testagem de todos os profissionais que vão entrar nas terras indígenas para atender a população".

No entanto, levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) indica que, mesmo com a crise do coronavírus, o total gasto pelo governo na saúde indígena no primeiro semestre deste ano ficou abaixo da despesa registrada na primeira metade de 2019.

Os dados foram extraídos do Siga Brasil, portal do Senado Federal que permite monitorar os gastos do governo, corrigidos pela inflação. Segundo essa fonte, foram efetivamente gastos com promoção e proteção da Saúde Indígena R$ 698,03 milhões de janeiro a julho do ano passado. Já no primeiro semestre desse ano, foram R$ 660,69 milhões (5,3% a menos).

Olhando o resultado por mês, os dados mostram que em abril e maio, meses em que a pandemia já estava com força no Brasil, essas despesas ficaram bem abaixo da registrada no mesmo período de 2019. Apenas em junho, houve uma alta relevante.

"Demorou muito tempo para o governo reagir e destinar recursos para a saúde indígena enfrentar a pandemia", crítica Leila Saraiva, assessora política do Inesc.

Ela ressalta que os recursos para área já vinham em queda no ano passado. O total efetivamente gasto com saúde indígena em 2019 foi de R$ 1,48 bilhão, 16% a menos da despesa de 2018.

Para Leila Saraiva, o argumento de que faltam recursos usado pelo presidente ao vetar nesta semana trechos da lei que previa medidas emergenciais de proteção aos indígenas é "falacioso".

Ela lembra que o Congresso aprovou um regime fiscal especial para enfrentamento da pandemia que permite aumentar o endividamento e romper o teto de gastos desse ano.

Além da redução dos gastos em saúde indígena, outro fator que, na sua opinião, deixou o atendimento aos povos mais precário nesse momento de pandemia foi a saída dos profissionais cubanos do programa Mais Médicos.

Logo após a eleição de Bolsonaro no final de 2018, o governo cubano decidiu deixar o programa brasileiro, se antecipando a uma decisão do futuro presidente. Isso porque Bolsonaro sempre atacou a parceria com o governo de Cuba no Mais Médicos.

Como é difícil atrair médicos brasileiros para atuar em territórios mais isolados, cerca de 90% dos profissionais do programa que atendiam em terras indígenas eram cubanos. Uma reportagem da BBC News Brasil mostrou que, após a saída de médicos cubanos, mortes de bebês indígenas cresceram 12%.

STF estabelece prazo para governo agir

Os vetos de Bolsonaro à lei que prevê as medidas emergenciais para os povos indígenas ainda podem ser derrubados pelo Congresso.

O governo, no entanto, já está obrigado a adotar uma série de providências por uma decisão do STF que saiu no último dia 8, logo após o presidente vetar parcialmente a nova legislação.

A partir de uma ação apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) com apoio de partidos de oposição, o ministro do STF Luís Roberto Barroso determinou que o governo crie uma Sala de Situação para a gestão de ações de combate à pandemia no caso de povos indígenas em isolamento ou contato recente, no prazo de 72 horas. Deverão participar representantes de comunidades indígenas, da Procuradoria Geral da República (PGR) e da Defensoria Pública da União (DPU).

Barroso também deu dez dias para o governo apresentar um plano de criação de barreiras sanitárias em terras indígenas, após ouvir a Sala de Situação.

Na decisão, o ministro reconheceu que o governo federal vem tomando iniciativas para mitigar a pandemia entre os povos indígenas.

"Entretanto, tais ações precisam ser coordenadas e precisam ser complementadas por medidas que não estão em curso. A criação sistemática de barreiras de proteção aos povos em isolamento e de contato recente não está em curso", ressaltou na decisão.

"A assistência à saúde dos inúmeros povos indígenas localizados nas muitas terras indígenas ainda pendente de homologação não está em curso, o que os coloca sob risco de perecimento", destacou ainda, ao acolher o pedido da Apib para reverter a decisão do governo de não garantir a todos os povos indígenas atendimento de saúde especializado.

Barroso determinou também que o governo crie em até 30 dias um Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros, com a participação das comunidades e do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Esse plano deverá conter medidas de contenção e isolamento de invasores em relação a terras indígenas.

Embora o Ministério da Saúde tenha elaborado em março o "Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus em Povos Indígenas", o ministro destacou o argumento da Apib de que esse planejamento "expressa meras orientações gerais e não prevê medidas concretas, cronograma ou definição de responsabilidades". Além disso, ele frisou a importância de que as comunidades sejam ouvidas na elaboração dessas medidas.

"Esses pontos (medidas não tomadas pelo governo) só estão sendo percebidos porque os indígenas puderam se manifestar. Está claro, portanto, que tais povos, desde seu ponto de vista, são capazes de identificar providências e medidas, que, se ausentes, podem constituir um obstáculo para a efetividade das ações de saúde já pensadas pela União", acrescentou o ministro.


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