29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Estamos em um caminho de retrocesso na conquista dos direitos das minorias

Publicado em 31/10/2014 12:00 -

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Aparecido Francisco dos Reis é doutor em sociologia e professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Ele é autor de uma pesquisa segundo a qual 55% dos estudantes da universidade apresentam algum nível de antipatia por pessoas LGBT, e nível ainda maior contra servidores do setor de limpeza da universidade, o que se caracteriza em um alto índice de preconceito entre os pesquisados. Aparecido concedeu esta entrevista à Semana On em um momento em que a UFMS passa por um momento delicado no combate a homofobia e a outras formas de preconceito após o incêndio criminoso de um acervo de livros do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Embora não concorde com a ligação entre o fato e os altos níveis de preconceito apontados pela pesquisa, ele se diz pessimista quanto a luta pelos direitos das minorias no país.

 

Por Victor Barone

Há homofobia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul?

Há homofobia no país inteiro e a UFMS reflete o que acontece na sociedade brasileira. Ela não é uma ilha isolada do mundo lá fora. Reflete os preconceitos, as aversões e os ódios que circulam dentro da sociedade.

O senhor realizou uma pesquisa sobre violência e o preconceito homofóbico no campus da UFMS. Quais foram os resultados?

Nós conduzimos este projeto entre 2009 a 2012. Uma parte da pesquisa foi feita dentro da universidade. Aplicamos um questionário longo no qual os estudantes marcavam seu grau de aversão, ódio e antipatia em relação a grupos de pessoas que elencamos. Entre eles estavam os LGBTs, em grupos estratificados como travestis, transexuais, lésbicas, gays, além de outros grupos como servidores da universidade, servidores da limpeza, estudantes de humanas, estudantes de exatas, religiosos, orientais, índios, usuários de drogas ilícitas, etc. o resultado mostrou que em relação às pessoas LGBTs há um grau de aversão em aproximadamente 55% dos alunos.

Há grupos mais odiados que os LGBTs?

Sim. As pessoas que com somem drogas ilícitas. Há uma antipatia muito grande sobre este grupo. Uma antipatia que nunca imaginamos encontrar, mas que se mostrou forte na pesquisa foi em relação a funcionários da limpeza. Foi um índice muito alto. Uma explicação pode estar no fato destes funcionários serem, em grande parte, mulheres, pobres e afrodescendentes, pardas ou indígenas. Isso reúne uma série de preconceitos que se juntam sobre esta categoria de pessoas.

Como este preconceito se traduz de forma prática sobre a comunidade LGBT na UFMS?

Nos últimos tempos houve uma mudança de comportamento por parte das pessoas LGBTs, de não se esconder, não ficarem no armário, de exporem sua orientação sexual ou sua identidade de gênero no caso de pessoas trans. Mas, dentro do campus esta tendência ainda é muito tímida. Alguns estudantes fazem isso abertamente, mas há ainda um receio muito grande. Não se pode dizer que uma pessoa que tenha este comportamento na UFMS vá ser alvo de agressões físicas, mas há outros tipos de agressão. Por exemplo, temos um aluno que foi alvo de comentários preconceituosos no Segredos UFMS (perfil no Facebook que divulga mensagens anônimas relacionadas a universidade). São ações que inibem a expressão das pessoas LGBT.

Nossa pesquisa apontou uma antipatia forte em relação a funcionários da limpeza. Foi um índice muito alto. Uma explicação pode estar no fato destes funcionários serem, em grande parte, mulheres, pobres e afrodescendentes, pardas ou indígenas.

Recentemente houve um caso mais grave, uma agressão verbal violenta contra uma estudante transexual.

Tomei conhecimento deste caso há bastante tempo, pela própria pessoa. Mas não me pareceu um caso de transfobia. Na semana passada, o Centro Acadêmico de Letras promoveu um debate sobre o caso, do qual participei, e a primeira vista não me pareceu assim. Não se soube apontar os estudantes que teriam sido autores da agressão, nem as palavras ditas por eles para que pudéssemos classificar o ocorrido como transfobia. Foi diferente do caso que ocorreu no ano passado, quando um professor se manifestou de forma homofóbica no Facebook.

Como reação a esta suposta agressão, membros do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFMS e do Centro Acadêmico de Ciências Sociais (CACISO) colaram cartazes contra a homofobia na Faculdade de Engenharia – que por sua vez foram pichados com frases de ódio e suásticas. Há uma divisão ideológica entre os alunos da UFMS.

Não creio nisso.

Estas manifestações de preconceito são identificadas em cursos específicos?

Nossa pesquisa não foi estratificada por curso, justamente para evitar dizer que um curso seja mais homofóbico ou preconceituoso que outro. Isso para mim é uma bobagem. Fizemos uma amostragem do campus. Como os LGBTs estão distribuídos em todos os cursos, entre alunos, funcionários e docentes, este ódio também se dispersa. Existe um curso mais homofóbico do que outro? Afirmar isso seria rotular o curso. Não é tão simples assim.  Nós encontramos pessoas homofóbicas dentro dos cursos de Humanas também. A homofobia e a transfobia não se restringem a quem está neste ou naquele curso. Isso seria estabelecer mais um preconceito. Não acho que a discussão tenha que ir por este caminho. É preciso responsabilidade em relação a isso. Os alunos envolvidos neste mal entendido com a aluna transexual, por exemplo, não eram da engenharia, eram alunos do próprio CCHS (Centro de Ciências Humanas e Sociais).

O incêndio criminoso de um acervo de livros do DCE da UFMS foi classificado por membros do CACISO como mais uma de uma série de ações homofóbicas na universidade, entre elas a pichação de cartazes com dizeres anti-homofobia com frases de ódio e suásticas. O senhor liga a queima do acervo à questão da homofobia?

A princípio não vejo ligação. Este caso (da queima dos livros) está sendo investigado pela Polícia Federal e não tenho dados sobre o assunto. Na verdade, esta é uma conclusão feita pelos próprios estudantes.

Por outro lado, as manifestações de ódio em pichação de cartazes anti-homofobia, a pintura de uma suástica na porta do CACISO, a depredação de uma faixa em defesa dos direitos dos indígenas são ações preocupantes.

Como eu disse, a UFMS reflete as posições da sociedade. No caso da questão indígena, estamos em um estado em que o tema atinge vários segmentos da sociedade. Ao mesmo tempo em que temos alunos simpáticos à causa indígena e a causa LGBT, temos alunos que não são simpáticos a estas causas, e que se sentem provocados. É assustador, sim. Você não quer ver isso na universidade, que deveria ser um espaço mais propenso ao debate.

A homofobia e a transfobia não se restringem a quem está neste ou naquele curso. Isso seria estabelecer mais um preconceito. Não acho que a discussão tenha que ir por este caminho. É preciso responsabilidade em relação a isso.

O que assusta, de fato, não é a exposição do contraponto, do choque de ideias, mas ações cuja intenção é cercear o direito a expressão, como a pichação dos cartazes, a queima de livros, a depredação de faixas. São tentativas de conter a expressão alheia.

Há um discurso de ódio na sociedade brasileira, e reforço que a universidade reproduz isso. Os alunos, técnicos, docentes vêm da sociedade para a instituição, eles não são alienígenas. Esta coisa se agudizou nos últimos 10 anos, quando estes grupos sociais passaram a declarar abertamente sua aversão a determinados segmentos como os LGBTs. Aliado a isso está o fato de o poder público não ter criado politicas de combate a estes discursos de ódio. Ao que me parece, o poder público estimula estes discursos mais do que tenta combatê-los. Não houve avanços no campo dos direitos humanos nos últimos anos. Esta pauta chegou a ser entregue a grupos contrários aos direitos humanos quando o deputado Marco Feliciano assumiu a Comissão na Câmara Federal em 2013. Entregaram as questões das minorias sociais aos seus maiores inimigos. O poder público tem uma responsabilidade muito grande na elaboração e expressão deste discurso de ódio. Ele não fez nada, recuou sempre que este debate foi posto.

O caso do chamado Kit Gay foi um exemplo…

Sim. A própria presidente Dilma fez uma declaração muito infeliz dizendo que seu governo não faria propaganda de opção sexual. Foram muitos os acontecimentos desastrosos do Governo Dilma em relação aos direitos humanos. O tema não avançou absolutamente em nada. Pelo contrário, sofreu muitos retrocessos.

Especialmente na questão indígena.

Sim. Este governo não demarcou terras indígenas. Quando a presidente esteve em Mato Grosso do Sul sentou com o setor ruralista, mas não sentou para conversar com os indígenas. Este governo tem uma opção muito clara pelos grupos conservadores, majoritários e que tem poderio econômico. Isso é muito claro e não me parece que irá se modificar nos próximos anos. Estas minorias sociais estão completamente abandonadas pelo poder público. Com esta posição o governo estimula o discurso de ódio. Não vamos conseguir combater isso sem medidas políticas, campanhas e políticas públicas, seja por meio de legislação ou ações contundentes de combate ao discurso de ódio.

De certo modo o próprio governo se beneficia disso.

Sim. Em época de eleição interessa este discurso de ódio. É uma estratégia extremamente perigosa. Você acaba produzindo mais cisões na sociedade. As pessoas se sentem encorajadas a expressar seu ódio. Até 2010, a média de assassinatos de pessoas LGBTs era de uma a cada dois dias. Hoje, esta média esta em uma a cada 26 horas. As pessoas se sentem encorajadas não só a expressar seu preconceito como a ir às visas de fato por conta da orientação sexual alheia. E não existe nenhuma política de governo para combater isso. Pelo contrário. A ação do governo foi enterrar o projeto de criminalização da homofobia. O governo enterrou este debate por puro interesse eleitoreiro. Da mesma forma, a universidade tem a responsabilidade de desenvolver políticas internas para combater estas expressões de ódio. À medida que as pessoas não veem esta ação do poder público, elas continuam externando seu preconceito.

Um dos grandes problemas do governo do PT é que, no momento em que ele chegou ao poder, cooptou os movimentos sociais. Ele colocou suas lideranças em cargos de governo.

Diante desta ausência de políticas públicas, o que resta para estes grupos minoritários? Como se fazer ouvir, respeitar e defender?

O movimento social deveria garantir que o poder público ouvisse estas minorias. O grande problema é que, muitas vezes, as lideranças do movimento social estão alinhadas ao próprio governo. Um dos grandes problemas do governo do PT – que tem uma ligação histórica com os movimentos sociais em razão de sua própria origem – é que, no momento em que ele chegou ao poder, cooptou os movimentos sociais. Ele colocou suas lideranças em cargos de governo. Como consequência, os movimentos sociais acabaram a reboque do governo, perderam força política para questionar, reivindicar e pressionar. É errado. As lideranças sociais não têm que comungar com governos, seja lá quais forem. Elas devem estar do outro lado do balcão, do lado da sociedade, das questões que dizem respeito ao segmento da qual fazem parte, e não ao lado do governo. Vejo lideranças sociais defendendo governos e não causas e, muitas vezes, reproduzindo posturas conservadoras e reacionárias.

Há saída?

É necessário que as lideranças pensem no papel que estão exercendo. Por isso, os movimentos sociais estão fragilizados. Não vejo saída neste momento.  Houve um endurecimento do discurso de ódio em relação a varias minorias, e não vejo neste governo a disposição ou possibilidade política de enfrentar isso. Este é um governo que estará comprometido com projetos conservadores, seja no âmbito da reforma agrária, da demarcação de terras indígenas ou nos direitos dos LGBTs.

Até que ponto vai o direito de uma religião em trazer para o âmbito da totalidade da sociedade, seja por leis ou ações legislativas, suas verdades e dogmas?

Não há este direito. Estamos em um regime democrático no qual todas as expressões devem ser garantidas, inclusive as das minorias. A democracia não pode ser a tirania da maioria. Tem que haver o reconhecimento e a garantia das minorias sociais. Do contrário caímos no fascismo, onde todo mundo tem que fazer aquilo que a maioria decidiu, mesmo que não pertença à maioria. Isso já representou tragédias na história, como o nazismo. É estritamente perigoso o discurso de que a maioria tem sempre razão. A democracia deve reconhecer e garantir a existência das minorias étnicas, religiosas, de gênero, racial, sexual, etc. Este discurso da maioria é fascista e não podemos de maneira alguma aceitá-lo. Grupos que representam interesses específicos de segmentos e querem impor estes interesses segmentados à sociedade são perigosos.

Grupos evangélicos fazem a mesma crítica ao movimento LGBT. Dizem que ele quer impor a sua agenda para a totalidade da sociedade. Qual a diferença entre as duas posições?

Trata-se de desonestidade intelectual. No caso do casamento igualitário entre pessoas do mesmo sexo, que é um ato civil e não religioso, trata-se do reconhecimento que o poder público, em um regime democrático, deve conceder aos seus cidadãos. Tratá-los de forma igualitária. O poder público não pode distinguir seus cidadãos com base em sexo, raça, religião, classe ou gênero. É muito diferente de você querer impor, por exemplo, feriados religiosos que atingem toda a sociedade independente da fé de cada um. É diferente da imposição da leitura da Bíblia em escolas municipais. Uma escola pública tem a obrigação de receber todos os tipos de estudantes, independente de classe, orientação sexual ou religião. Como obrigar a todos a ler a Bíblia se ali dentro pode haver ateus, muçulmanos, pessoas ligadas a religiões de matriz africana, espíritas, etc.? Isso sim é uma imposição. Este discurso é uma desonestidade intelectual.

A democracia não pode ser a tirania da maioria. Tem que haver o reconhecimento e a garantia das minorias sociais. Do contrário caímos no fascismo, onde todo mundo tem que fazer aquilo que a maioria decidiu, mesmo que não pertença à maioria.

Na semana passada entrevistamos o vereador Elizeu Dionízio, nova liderança evangélica em Mato Grosso do Sul. Segundo ele, quem legisla o faz de acordo com as expectativas do segmento que o elegeu. Isso justificaria, por exemplo, o voto contrário da bancada evangélica ou católica a investimentos públicos em shows de música ligados a religiões de matriz africana, ou a concessão de títulos de utilidade pública municipal a entidades como a Associação das Travestis e Transexuais de Mato Grosso do Sul (ATMS).

Ele está completamente equivocado em relação ao seu papel como legislador. O vereador não é representante apenas de um determinado grupo. Ele está ali para fazer projetos que sirvam para toda a sociedade, e não para grupos específicos. É um discurso desonesto. Na verdade o vereador é pago por todos os munícipes, e não exclusivamente por um grupo social. Enquanto parlamentar, ele está ali para discutir e fazer projetos de relevância para a totalidade da sociedade, garantindo igualdades. Ele não está sendo pago exclusivamente por este ou àquele grupo. Ele não é advogado deste ou daquele grupo. Este tipo de postura é que possibilita a criação de eventos como a Quinta Gospel, pagos com dinheiro público e que beneficiam grupos sociais específicos em detrimento da totalidade da sociedade.

O vereador afirmou que eventos como a Quinta Gospel se justificam pelo fato do poder público financiar eventos católicos, como as festas juninas e julinas, por exemplo.

Um parlamentar que defende a democracia não justifica um privilégio com base em outro, ele combate todos os privilégios. Repito: a democracia não é a tirania da maioria.

Diante de tudo isso, quais as perspectivas para as minorias no Brasil?

Estamos em um momento específico de nossa história, um momento crucial para o reconhecimento dos direitos das minorias. Infelizmente é um momento de retrocesso. Há avanços do conservadorismo e do discurso de ódio em toda a sociedade. A grande decepção é a impotência que temos para combater este preconceito e a indiferença do poder público em relação a isso. Vejo o quadro atual com muito pessimismo em relação à intolerância racial, religiosa e de orientação sexual. É preciso alertar a sociedade para este caminho perigoso que estamos traçando. A história nos mostra que este é um caminho que se transforma em tragédia.

Ouça a entrevista na íntegra.


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