19/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Bakhita, presente!

Publicado em 26/06/2020 12:00 -

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No dia 25 de maio passado, em homenagem ao Dia da África, mandei aos parentes e amigos/as um pequeno texto contando uma experiência pessoal marcante durante a escavação no cemitério dos Pretos Novos, localizado na Gamboa, Centro do Rio. Nina, minha irmã, ao recebê-lo, pediu-me que escrevesse uma carta para as crianças da Escola Por Vir, organizada pela Associação Lanchonete, vizinha ao Cemitério dos Pretos Novos. As crianças, quase todas pretas e moradoras das ocupações urbanas do Morro da Conceição, participam de atividades de arte e música, que se tornaram ainda mais importantes para elas nesses dias pandêmicos. Fiz a carta em pouco mais de uma hora e, nos dias seguintes, esta foi entregue a criançada, que foi incentivada a desenhar suas impressões sobre aquela história.

Transcrevo, com algumas poucas modificações, a carta às crianças, que acredito deva também ser conhecida pelos adultos, ainda mais nesses tempos de luta mundial contra o racismo, após o assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis e do jovem João Pedro Motta, pela polícia civil em São Gonçalo.

“Em 2017, quando arqueólogos do Museu Nacional escavavam dentro da sede do Instituto dos Pretos Novos (IPN, Rua Pedro Ernesto, 32-34), descobriram um esqueleto. Não foi surpresa encontrar ali ossos humanos, pois naquele lugar existiu entre 1796 e 1830 o cemitério dos Pretos Novos, uma das páginas mais terríveis da escravidão dos africanos no Brasil.

Por que o cemitério se chamava ‘dos Pretos Novos’? Porque era um cemitério reservado aos cativos que tinham acabado de chegar da África e que, depois de cerca de um mês de travessia do oceano Atlântico, haviam ficado doentes devido às péssimas condições dos navios-negreiros, e morrido logo após da chegada. Ajudando os arqueólogos na pesquisa, observei centenas de dentes humanos no material que havia saído da escavação. Chamei meu dentista para ir lá no IPN dar uma olhada. O que o Dr. João Guerra nos disse foi assustador. A maioria dos dentes era de pessoas de pouca idade: crianças, adolescentes e jovens. Ou seja, ‘cemitério dos Pretos Novos’ também poderia se referir muito bem a um lugar onde foram enterradas pessoas novas.

Voltando ao assunto, o esqueleto encontrado em 2017 teve um significado especial, pois foi o primeiro inteiro encontrado no antigo cemitério até aquele momento, ou seja, que não havia sido mexido depois do sepultamento. E isso foi muito importante, pois antes só haviam sido encontrados ossos espalhados e muito quebrados, muitas vezes queimados.

Conforme narrativas antigas, os africanos que morriam durante a quarentena que faziam ao chegar no Rio de Janeiro ou logo depois, eram enterrados de qualquer jeito, apenas cobertos por um palmo de terra, e como às vezes o cheiro ficava muito ruim, os corpos eram queimados e os ossos ficavam espalhados no terreno. A descoberta de um esqueleto inteiro significou que aquela pessoa foi enterrada numa vala comum, onde foram jogadas outras pessoas por cima, e que depois foi coberta de terra e nunca mais o lugar foi remexido.

Após análise, descobriu-se que o esqueleto pertencia a uma mulher jovem, com idade entre 20 e 25 anos, que foi “batizada” por um dos arqueólogos de ‘Bakhita’, em homenagem a primeira santa de origem africana, Santa Josefina Bakhita.

Não sabemos se a jovem Bakhita era casada, se tinha filhos, mas ela deve ter sido capturada no início do século 19 na costa ocidental da África, provavelmente em Angola. Foi entregue aos traficantes de escravos portugueses e, durante um mês ou mais, fez uma viagem terrível cruzando o oceano Atlântico, apertada em um porão lotado de gente, sem condições de higiene e com alimentação fraca. Deve ter chegado ao Rio de Janeiro bastante doente e, morreu provavelmente antes de ser vendida como escrava em um dos mercados que existiam na região da Gamboa e da Saúde. Foi enterrada sem qualquer dignidade, junto com outras pessoas, jogada em uma vala comum.

Minha ajuda na escavação arqueológica foi desenhar as camadas de terra que cobriam a Bakhita. Durante mais de uma hora fiquei sentado naquele buraco quadrado de um metro por um metro, juntinho ao esqueleto da Bakhita, tomando todo o cuidado para não encostar, pois os ossos estavam muito frágeis.

Eu tinha que respeitar a memória daquela pessoa e de todas as outras que lá estão, pois a Bakhita, segundo a Dona Mercedes Guimarães, presidente do IPN, representa um ‘grito’ e uma ‘denúncia’ contra todos os horrores que aconteceram naquele local. A Bakhita é um grito contra a escravidão, mas também pela reparação da dívida histórica com o povo preto, que ainda existe no desrespeito de todos os dias.

Lá dentro daquele buraco, pertinho da Bakhita, fiquei amigo dela, e ela me fez lembrar que todos nós falamos um português africanizado; temos uma cultura (música, artes…) africanizada; temos ‘um jeito de ser carioca’ africanizado. Devemos a pessoas como a Bakhita muito do que somos hoje. Bakhita Presente!”

Renato Cabral Ramos – Geólogo e professor da UFRJ


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