25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Celular em legítima defesa

Publicado em 25/06/2020 12:00 -

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Dos Estados Unidos ao Brasil, o uso de celulares para gravar imagens ou tirar fotos de abordagens policiais ilícitas se concretiza como uma forma de ecoar denúncias contra a brutalidade rotineira dos agentes.

Os vídeos do caso George Floyd, por exemplo, homem negro que morreu asfixiado por um policial nos Estados Unidos após ter seu pescoço pressionado por 8 min 46s há quase um mês, impulsionaram um levante antirracista internacional. 

Os episódios de agressão, que são ainda mais frequentes no Brasil, estão sendo cada vez mais registrados. No último dia 22, por exemplo, circulam nas redes sociais e na imprensa imagens de vídeos feitos por moradores de Carapicuíba, que registraram o momento em que um garoto de 19 anos desmaia duas vezes após ser estrangulado em abordagem da PM no dia 21.  

Nas imagens, é possível ver o policial pressionando o peito do jovem, em posição de rendição, enquanto ele se debate até ficar desacordado. Ele recobra a consciência, e, poucos minutos depois, desmaia novamente após ação do mesmo agente policial. Desacordado, foi levado à viatura.

O rapaz afirmou, em entrevista ao jornal Bom Dia São Paulo, que se assustou com a presença dos policiais, se desequilibrou e bateu na moto de um dos agentes, sendo agarrado pelo pescoço logo em seguida.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) informou que dois homens que estavam em uma motocicleta desrespeitaram ordem de parada e colidiram com a viatura.

O órgão afirma que "o condutor entrou em luta corporal com o policial, tentou se evadir e foi imobilizado com técnicas de defesa pessoal". O jovem foi levado ao pronto-socorro e posteriormente encaminhado ao 1º Distrito Policial (DP) do município, onde o caso foi registrado.

"Os policiais envolvidos na ocorrência foram ouvidos na noite de domingo (21) e o comando da unidade abriu uma sindicância para apurar todas as circunstâncias do caso. Por precaução, os policiais foram afastados para funções administrativas e as imagens citadas são analisadas pela instituição", diz o texto. 

Violência recorrente

Outra grande repercussão de uma filmagem nas redes sociais levou ao afastamento de 8 policiais da Força Tática do 43º Batalhão recentemente. O vídeo em questão registrou o espancamento de um jovem de 27 anos no último dia 13 de junho, no Jaçanã, zona norte de São Paulo. 

As fortes imagens gravadas por testemunhas explicitam que ele já estava completamente rendido quando os policiais desferiram golpes de cassetetes, socos, chutes e tapas à vítima, que não reagiu. Ao longo do espancamento, o homem repetiu ser “trabalhador” por diversas vezes. 

Os policiais relataram, em um primeiro momento, que as viaturas teriam sido alvejadas com pedras durante o atendimento de uma ocorrência e, ainda, que um agente teria entrado em luta corporal com o jovem, sendo necessário força policial para contê-lo. 

No entanto, as imagens gravadas mostram o oposto. Com a ampla circulação do vídeo, a corporação abriu uma investigação para apurar crimes de lesão corporal e abuso de autoridade.

Segundo Jacqueline Sinhoretto, socióloga e coordenadora do Grupo de Estudos sobre a Violência e Administração de Conflitos (Gevac) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a gravação de abordagens abusivas permitem que a narrativa dos policiais, que são as registradas nos boletins de ocorrência, sejam questionadas e refutadas. 

Conforme estudo realizado a partir de dados da Ouvidoria de São Paulo, a pesquisadora afirma que policiais, muito frequentemente, alegam que sofreram ataques, que as agressões foram em legítima defesa ou ainda que houve resistência à prisão. 

“Na medida que as cenas começam a ser filmadas, elas modificam, contam outra narrativa, que não é apenas a dos documentos oficiais”, diz Sinhoretto. “Os celulares usados pela sociedade civil, pelo cidadão, para filmar abusos, é algo muito importante e significativo, embora o impacto disso para punição ou mudança dos procedimentos de abordagem da polícia seja muito pequeno. Tem um impacto de denúncia. A versão dos policiais sobre os abusos, historicamente, acaba predominando”, complementa.

Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), a pesquisadora cita casos antigos e recentes em que a filmagem foi determinante para expor a violência policial. Entre eles, o caso da Favela Naval, onde policiais militares extorquiram dinheiro, espancaram e executaram moradores do local, em Diadema, na grande São Paulo, em 1997. Imagens exibidas por uma reportagem no Jornal Nacional, da Rede Globo, em 31 de março daquele ano, deram repercussão ao episódio. 

Atualmente, com o avanço da tecnologia e disseminação dos smartphones, há uma frequência muito maior de casos denunciados que contrapõem a versão dos policiais. A exemplo do caso de um PM, que, em 2015, jogou um suspeito do telhado no bairro do Butantã mas negou a ação. Vídeos feitos por vizinhos, porém, mostram claramente o contrário. 

Sinhoretto lamenta que, embora tenha havido uma facilitação das denúncias, as imagens não passaram a ser incorporadas nos procedimentos de apuração e, na maioria dos casos, não são usados como prova. 

Mas, a coordenadora do Gevac faz uma ponderação. “Ao mesmo tempo que as denúncias são feitas e repercutem entre os críticos da violência policial, facilita a denúncia e principalmente a comprovação da denúncia, por outro lado existem policiais e apoiadores da violência policial que também filmam, também expõem. É uma situação muito mais delicada. Eles estão expondo corpos. Eles tratam a morte com escárnio”, critica. 

“Quem filma a denúncia, filma no sentido de garantir direitos. Quem filma a violência, no sentido do apoio, é o contrário. A própria filmagem, nesse caso, é uma violação de direito”.  

De acordo com a pesquisadora, a Lei de Abuso de Autoridade, sancionada em novembro de 2019, gerou preocupação das organizações policiais que diminuíram o compartilhamento do conteúdo em páginas do Facebook, por exemplo, que elogiavam e incentivavam o uso da violência. 

Apesar da medida ter ocasionado a diminuição das imagens públicas de rostos de pessoas agredidas, torturadas, e até mesmo executadas, não é possível monitorar o que acontece em grupos privados do Whatsapp ou outros aplicativos. 

O que diz a lei 

Ao contrário do que muitos pensam e até mesmo declarado por policiais durante muitas abordagens ou protestos, filmar qualquer ação policial é permitido pela lei brasileira, segundo explica Rafael Português, defensor público do Estado de São Paulo.

“Não existe nenhum mecanismo legal que proíba. A atividade policial é uma atividade do Estado que deve contar com o controle, não só com os órgãos de fiscalização, mas com o controle popular. Nesse sentido, a atividade de um cidadão que filma a atuação policial acaba contribuindo com um dos fins da própria polícia, que é garantir a segurança pública”, afirma Português.

O defensor também ressalta que, conforme previsto na resolução 34/169 da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabelece o Código de Conduta Para Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, os policiais devem respeitar a dignidade da pessoa humana. O documento também faculta ao cidadão a denúncia de violações dos direitos humanos. 

Ele frisa que a identificação policial é obrigatória, o que consta no artigo 112 do Estatuto da própria Polícia Militar.

“Não há nenhuma justificativa para o Estado agir no anonimato. O policial que está ali está em uma escala. A ausência de identificação consiste em crime previsto na nova lei de Abuso de Autoridade, que tipifica a conduta do policial que se recusa a atestar sua identificação”. 

Plataforma colaborativa

Com o objetivo de monitorar e também dar visibilidade para as denúncias de agressões por parte das forças de segurança mineiras, o Fórum das Juventudes da Grande BH e a Assessoria Popular Maria Felipa idealizaram o projeto Baculejo, uma plataforma colaborativa online que recebe informações sobre situações de violência contra jovens de 15 a 29 anos.

Mantido pelo Fórum, o Baculejo foi lançado recentemente a partir de um edital do Fundo Brasil de Direitos Humanos. A proposta é que a plataforma permaneça no site por alguns meses, e, após acumular denúncias, seja produzido um dossiê com orientações adequadas para combater a violência policial na região.

“A proposta da plataforma não é produzir uma resposta individual pra cada violência que cada jovem sofre. É produzir uma resposta coletiva”, conta Nana Oliveira, presidente da Assessoria Popular Maria Felipa, coletivo de advogadas que atua na área dos direitos humanos, principalmente no sistema prisional. 

Oliveira detalha que o Baculejo foi desenvolvido de uma forma leve, para demandar pouca internet e ser mais acessível para as periferias da grande BH.

“Construímos de forma que a pessoa consiga nos enviar, por e-mail, fotos e vídeos do que ela sofreu. No registro da denúncia não é preciso se identificar. Só será convidado, ao final, caso queira dar um encaminhamento institucional a essa denúncia de forma individual”. 

Segundo a advogada criminalista, caso a pessoa queira seguir com a denúncia, os riscos individuais são avaliados, assim como a inclusão em programas de proteção são estudados, visando, acima de tudo, garantir a segurança. 

Orientações

Ao presenciar uma ação abusiva, a prioridade também é manter-se seguro. “Seja se está presenciando ou vivenciando. Filmar e gravar é dentro do que é possível. Se isso aumenta a situação de insegurança, é melhor não. Trabalhamos com o recurso de provas que temos. Nunca trabalhamos com as provas ideais, mas com as provas possíveis”, comenta Oliveira. 

A advogada acrescenta que, caso não seja possível filmar, é possível recolher outras informações para dar prosseguimento às denúncias, como, por exemplo, memorizar ou registrar o número da viatura policial. 

Outras informações como data, horário e local onde aconteceu a abordagem abusiva também são muito importantes. 

Já caso a pessoa esteja em um local seguro, com exposição reduzida, a orientação é filmar ou tirar as fotos direto pelo Whatsapp ou outros aplicativos, para que o envio das imagens sejam feitas de forma rápida. Fazer uma transmissão ao vivo da abordagem é outra orientação, para assegurar que o conteúdo repercuta ainda mais nas redes e alcance um número maior de pessoas. 

Estar acompanhado e repassar o celular para alguém próximo também pode ajudar a manter as provas. 

Rafael Português, também integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), esclarece que, ao contrário de relatos frequentes em que policiais quebram celulares de testemunhas ou até mesmo apagam conteúdo gravados, os smartphones não podem ser vasculhados sem uma ordem judicial. O mesmo acontece com máquinas fotográficas.

Reforçando a importância da existência de uma ferramenta de denúncia que não seja do próprio Estado, Nana Oliveira destaca que os casos de violência policial, ainda que recorrentes, tem sido tratados pela sociedade em geral como isolados.

Para ela, é urgente que a análise da sociedade civil aponte para uma violência sistêmica, principalmente contra a juventude negra do país. 

“Se diz que é o policial tal, a companhia tal, o batalhão tal, a polícia de tal estado. O nosso desafio é transformar isso em algo sistêmico e estrutural. Alguns policiais podem ter sido demitidos mas no bairro do lado, estão fazendo a mesma coisa mas não tiveram o azar de terem sido filmados ainda”, critica Oliveira. 

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública endossam como a violência policial no Brasil tem cor. Apenas em 2019, as polícias brasileiras mataram pelo menos 5.804 pessoas. Dessas, 4.353 eram negras. 

Análise

Na era digital, o celular tornou-se uma arma poderosa contra a truculência policial. Com duas vantagens: Não atira para matar. E sempre acerta dois alvos com um disparo: o criminoso de farda e seus superiores hierárquicos, que são obrigados a a se explicar. Diante da fidelidade das imagens, certas explicações têm o efeito de uma segunda agressão.

Em São Paulo, por exemplo, o secretário-executivo da Polícia Militar, Álvaro Camilo, tem o hábito de apelidar a barbárie policial de "excesso". Ao declarar que não será condescendente com policiais violentos, o governador João Doria disse: "É incompatível com uma polícia bem treinada e bem preparada que uma minoria que representa menos de 1% possa comprometer 99% de uma polícia séria."

Nos últimos dez dias, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo registrou seis casos de barbaridades praticadas por policiais militares. No episódio mais grave, um PM de folga assassinou a tiros um adolescente. Confundiu-o com um assaltante.

No caso mais recente, um PM em serviço levou um jovem negro —rendido e desarmado— a desmaiar duas vezes. Primeiro, pressionou o joelho contra o peito do rapaz, levando a mão à garganta. Recuperado de um primeiro desfalecimento, o rapaz tomou uma gravata. E foi arremessado na viatura desmaiado.

Colocando-se nos sapatos de um familiar das vítimas, o secretário-executivo da PM paulista decerto encontrará um vocábulo mais adequado do que "excesso" para qualificar a desqualificação policial. E o governador talvez perceba que, do ponto de vista do morto ou do agredido, a PM foi 100% bandida.

Povo com medo da polícia e polícia com ojeriza do povo são patologias curáveis. O governo paulista promete "retreinar" a corporação. É um começo. Mas parece pouco. A truculência talvez diminuísse se fossem periodicamente levados à vitrine os nomes e as penalidades impostas aos policiais que estimulam as pessoas a jamais conversarem com a polícia, exceto em legítima defesa.


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