29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Nenhum país democrático tem artigo na Constituição que permite intervenção das Forças Armadas na política, afirma Leonardo Avritzer

Publicado em 16/06/2020 12:00 -

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Engolido pela crise sanitária em decorrência da pandemia do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro nomeou um militar para liderar, no Ministério da Saúde, o combate aos números negativos da doença. Em resposta, sob a liderança do general Eduardo Pazuello, o Brasil vivenciou nos últimos dias um apagão de dados. “Parece que nomear militares não ajuda a resolver o problema”, resume o cientista político e professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Leonardo Avritzer.

O autor de O Pêndulo da Democracia (2019) e Os Impasses da Democracia no Brasil (2016) diz que Brasil tem presença dos militares na política “muito além do desejável e que custa muito caro” e, embora as Forças Armadas inspirem confiança na população, sua atuação não tem resolvido questões do País. Para o especialista, os militares têm uma posição ambígua na democracia brasileira.

Segundo ele, nenhum outro país democrático tem um artigo como o 142 que permite a intervenção das Forças Armadas na política. Avritzer destaca ainda que hoje há militares [como o general Augusto Heleno, que falou em ‘consequências imprevisíveis’ para estabilidade nacional] e o próprio presidente que ameaçam à democracia.

Para ele, o País está em um momento de descrença na democracia, o que já foi visto anteriormente. Em sua análise, há movimentos cíclicos em relação à democracia. “Tem momentos que a democracia tem altíssimo apoio, mas tem momentos que os brasileiros realmente não veem a democracia com a importância que a população de outros países vê”, diz.

Avritzer acrescenta que há fortes traços democráticos no Brasil, mas diz que as instituições não estão fortes. “Quando os presidentes da Câmara, do Senado, do Supremo precisam vir a público diversas vezes para dizer que a democracia é forte é porque existe um problema com ela. Em geral, essa reafirmação das instituições democráticas não precisa ocorrer no dia a dia. Acho que vivemos em uma democracia que está muito degradada na suas principais práticas políticas.”

No entanto, ele avalia que é possível fazer que esse pêndulo volte para o lado da democracia. “O Brasil precisa que a violência não aumente, que se respeitem as regras do jogo e que as Forças Armadas cumpram unicamente seu dever constitucional de defesa e não de ameaça às instituições políticas.”

 

Pode-se dizer que o brasileiro tem pouco apreço pela democracia?

Acho que a democracia no Brasil tem movimentações cíclicas, os brasileiros se expressam ciclicamente em relação a ela. Tem momentos que a democracia tem altíssimo apoio, mas tem momentos que os brasileiros realmente não veem a democracia com a importância que a população de outros países vê. Falou-se em adiar a democracia nos Estados Unidos, até o [presidente Donald] Trump disse que não era o caso.

Mas aqui, imediatamente a discussão pega. Na verdade, as dimensões eleitorais da política, da soberania popular, estão de fato frágeis no nosso País. Não são sempre frágeis, tem momentos de 1945 a 1958, de 1985 a 1992, 1993 que são momentos de forte consciência democrática, mas aparecem problemas com o sistema político, com a representação, e os brasileiros se tornam mais ambíguos em relação à democracia. A gente tem poucos presidentes que concluíram seus mandatos. Se a gente pensar de 1945 para cá, quatro presidentes que terminaram seus mandatos, que entregaram o País a seu sucessor: Manoel Dutra, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique e o Lula. É muito pouco se a gente pensar que é um período de 75 anos. 

A gente poderia falar que existe uma desilusão com o comportamento político?

Existe essa desilusão, mas essa é uma questão que não explica tudo. Se a gente pensar, alguns cientistas políticos tentam colocar isso no centro. O professor Marcos Nobre publicou recentemente um livro sobre bolsonarismo, diz que os brasileiros estão desiludidos com os políticos. Sim, mas veja bem, a Dilma Rousseff sofreu impeachment com 13% de aprovação e o presidente [François] Hollande na França terminou o mandato dele [em 2017] com 10% de aprovação. Ninguém achou lá na França que era o caso de tirar o presidente. Então, o problema não é apenas de desilusão com o político, mas de fortes valores não-democráticos que continuam presentes na população. A população tem enorme confiança nas Forças Armadas, igrejas, mas não tem confiança nas instituições políticas. 

Neste contexto, qual papel das Forças Armadas hoje?

O Brasil tem Forças Armadas muito atípicas. É um país que não tem guerra desde a Guerra do Paraguai [1864-1870], não tem grandes formas de presença militar em conflito no exterior e ainda assim tem Forças Armadas fortes e que entendem sua missão como intervir na política. Isso vem desde o fim do Império. A República no Brasil já é introduzida por um militar (Deodoro da Fonseca, comandante do Exército na Guerra do Paraguai) e atravessa o século 20. 

Mesmo quando os militares entregaram o governo em 1985, a gente teve alguns artigos, como o 142 que ficou na Constituição de 1988. Nenhum país democrático tem um artigo desses. Ele veio por pressão direta dos militares, principalmente pelo ministro do Exército no governo José Sarney, Leônidas Pires. Esse artigo é completamente ambíguo, o papel dos militares é manter a ordem a pedido dos Poderes. 

Sobre o que versam os artigos da Constituição citados:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Ou seja, o Bolsonaro pode pedir [a intervenção]. E qual é a ideia dele de ordem? O presidente se manifesta contra o STF e o Congresso Nacional. Então, eu diria que nós temos a maior presença dos militares na política, muito além do desejável e que custa muito caro. Quando o ministro [Henrique] Mandetta foi demitido, o Brasil tinha duas mil mortes pela covid-19, desde então são mais de 18 militares no primeiro e segundo escalão do Ministério da Saúde e temos mais de 30 mil mortos. Não parece que nomear militares para essas posições ajuda a resolver o problema. 

Voltando à França, que o presidente ficou no cargo com baixa popularidade. No Brasil, por outro lado, é comum a frase “se não der certo, a gente tira”. Por quê? 

A elite brasileira se considera numa posição superior ao eleitorado. E como elite a gente pode entender desde os grandes empresários, como também as altas autoridades do Poder Judiciário e a elite midiática. Então, teve essa conversa no processo eleitoral de 2018, “se exceder, a gente tira”. E a gente vê agora que não é tão simples assim. [O presidente] Tem apoio fortes na corporação militar e outros lugares… 

A ideia de que o presidente do Brasil pode ser removido por qualquer razão acabou se consolidando. E essa não é uma ideia boa para a democracia. A gente fica entre duas: a gente tem um presidente pouco democrático, que ameaça instituições democráticas, mas temos também elites pouco democráticas que se consideram no direito de retirar o presidente. Então, temos um imbróglio porque a democracia é frágil em todos os setores. 

A gente teve um tempo atrás atrito entre Legislativo e Judiciário. Hoje, é entre o Executivo e o Judiciário. Nesse meio tempo, o Judiciário também foi além de suas atribuições. Como fica Judiciário hoje?

Esse também é um ponto delicado. O Brasil teve um Judiciário frágil até 1988. O fortalecimento do Judiciário vem da Constituição de 1988, das novas prerrogativas, de uma tentativa que tivemos de constituir uma democracia forte com sistema de divisão de poderes. Em um certo momento, o Judiciário claramente cruzou linhas muito importantes da soberania de seu sistema político sobre sua própria forma de se organizar, foi completamente omisso em relação à maneira como Eduardo Cunha (MDB-RJ) atuou na presidência da Câmara até o impeachment. Também [interferiu] em prerrogativas do presidente, como a de indicar ministros, agora na Polícia Federal. 

Temos um Judiciário com dois problemas na maneira como se organiza. De um lado, ele cruza demais a linha de suas próprias atribuições, de outro lado, ele tem o papel de defender as instituições democráticas de abusos por parte de outros Poderes. O problema é que, como ele cruza muito a linha de seu papel, ele às vezes fica frágil nessa tarefa de defender as instituições democráticas. 

O que é possível fazer para que o pêndulo volte ao lado da democracia?

A gente vive um momento dramático porque o presidente não é democrático; não é só que se acha que ele não é democrático, ele ameaça instituições. Ele deixa bastante claro. Por outro lado, a sociedade brasileira está tentando rapidamente se organizar. O presidente enfrentou o STF, o STF não se acovardou, isso é importante. Forças democráticas estão se unindo, teve manifesto dos governadores pela democracia. Agora temos o conjunto de manifestos de muitas organizações e de centro, como o Somos 70%, o Estamos Juntos. São movimentos importantes.  

A gente vê que as forças democráticas estão se organizando. Mas estamos em uma situação muito desfavorável: o Brasil vive uma pandemia, com maior número de mortos neste momento, e ao mesmo tempo uma enorme crise econômica, que ainda não se manifestou plenamente, mas vai se manifestar. É nessa condição que estamos tentando reorganizar as forças democráticas, mas certamente hoje existem mais forças que enxergam a importância da democracia no Brasil do que em outros momentos do passado recente, como nas eleições de 2018, durante processo de impeachment… 

O senhor vê semelhança com as Diretas Já? 

Muito cedo para dizer isso. Existem manifestos, forças, mas existem também fortes limites para ocupar as ruas da mesma maneira que foram ocupadas em 1984. A própria pandemia é um fato limitador. Como as forças democráticas vão se unir? A gente tem que pensar e ver se é possível criar uma força democrática forte para pressionar o bolsonarismo. 

Com tantos ataques à democracia, é possível dizer que vivemos em uma democracia?

A gente ainda tem fortes traços democráticos no Brasil, mas as instituições não estão fortes. Ou seja, quando os presidentes da Câmara, do Senado, do Supremo precisam vir a público diversas vezes para dizer que a democracia é forte é porque existe um problema com ela. Em geral, essa reafirmação das instituições democráticas não precisa ocorrer no dia a dia. Acho que vivemos em uma democracia que está muito degradada na suas principais práticas políticas. 

O que pode ser feito? 

A gente precisa tentar fortalecer as instituições. Pesquisa Datafolha da semana passada mostra que aumentou muito o apoio ao STF, até mesmo o Congresso Nacional, que recebia a pior resposta em pesquisas dizendo que o desempenho era ruim, muito ruim, hoje o que aparece é regular em primeiro lugar

Ao mesmo tempo, vemos uma escalada nos discursos violentos, que apontam para possibilidade de uma violência física…  

Pessoas que discordam não vão se enfrentar nas ruas. Elas usam voto, manifestações públicas pacíficas… Temos hoje a degradação desse elemento democrático no Brasil desde 2018. Teve o atentado ao ônibus do ex-presidente Lula, o atentado ao Bolsonaro, depois violência de rua, depois o assassinato da Marielle Franco, todos são indicadores de que o Brasil não é uma sociedade pacificada do ponto de vista da política. E agora nós temos militares e o próprio presidente ameaçando as instituições. É uma situação de instabilidade política, a violência entrou na política brasileira pela porta dos fundos.

Não era assim até 2014, mas a violência acabou se tornado parte das regras do jogo. O próprio presidente falou na reunião ministerial de 22 de abril que “nós precisamos armar a população”. Não parece exatamente uma frase que o presidente da República deve dizer, especialmente quando diz que não é para defesa pessoal. Ele deixou claro que é para questões políticas. O Brasil precisa que essa violência não aumente, que se respeitem as regras do jogo e que as Forças Armadas cumpram unicamente seu dever constitucional de defesa e não de ameaça às instituições políticas.


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