29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Organizações religiosas dos EUA mapeiam indígenas no Brasil e não interrompem ações com isolados mesmo durante a pandemia

Publicado em 11/06/2020 12:00 -

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Sites estrangeiros oferecem até 50 vagas para evangelizadores atuarem em aldeias brasileiras e detalham o nível de conversão religiosa de etnias. Contato com isolados é criticado por entidades mesmo antes da covid-19

“Deus quer que suas crianças perdidas sejam encontradas”, diz um dos sites de grupos missionários estrangeiros que atuam para converter povos nativos no Brasil. Para eles, as “crianças perdidas” são os indígenas, incluindo os isolados. Bastam poucos cliques para ver que o caminho para “resgatá-los” já está traçado – e em detalhes. Nos sites dessas organizações, há um mapeamento completo dessas populações, com análises do “grau de conversão” de cada etnia, a oferta de vagas para missionários em aldeias onde “igrejas precisam ser plantadas” e até quem peça doações em dinheiro para realizar essas missões.

O trabalho desses evangelizadores não foi interrompido nem com a pandemia de coronavírus. E, no último dia 21, os missionários ganharam uma forcinha da bancada da bíblia no Congresso. Durante a aprovação na Câmara de um projeto de lei (PL 1.142) que prevê um plano emergencial para indígenas, deputados ligados à ala evangélica conseguiram incluir um artigo que autoriza a permanência de missões religiosas que já estejam em territórios ocupados por isolados. Para virar lei, o projeto precisa ser aprovado pelo Senado e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Se a crise da covid-19 fez crescer os olhos de grupos religiosos em Brasília, nas terras indígenas e em seus arredores não é diferente. “Recebemos a informação de que missionários estavam se organizando para uma expedição durante a quarentena”, disse à Repórter Brasil Paulo Marubo, coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), região com a maior concentração de povos isolados no país. “Eles acreditam que, se entrarem [em terras indígenas] nesse período, a Funai e a Polícia Federal não vão tomar providências para impedi-los”, completa, destacando que considera como assédio o trabalho feito por esses missionários.

No Vale do Javari (AM), missionários fizeram voos de helicóptero para contatar indígenas entre março e abril, já em plena pandemia. O ato gerou polêmica, já que à época a Funai informou não ter recebido pedido de autorização para ingresso em aldeias da região.

O helicóptero foi adquirido pela Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), que em janeiro havia anunciado sua aquisição para atividades missionárias. A compra ocorreu após uma campanha da Ethnos360 (antiga New Tribes Mission), uma organização missionária americana e ligada à Novas Tribos do Brasil. Em um vídeo de 2018, em que pedia doações, a entidade americana dizia que o objetivo era chegar a áreas de difícil acesso no extremo oeste do Brasil, perto da fronteira com o Peru – a mesma região onde fica o Vale do Javari. Também pedia orações para que a aeronave fosse usada para estabelecer igrejas “nos povos isolados desta região longínqua do Brasil”. Questionada pela reportagem, a Novas Tribos afirmou que o helicóptero “foi comprado com valores doados por um empresário americano que prefere não se identificar”.

Vaquinhas virtuais também costumam ser usadas para financiar diretamente os evangelizadores em missões para converter indígenas. A Frontier International, por exemplo, tinha dois casais americanos que trabalhavam como missionários em Benjamin Constant (AM). No site da organização, há posts dos missionários contando da vida na região e de seus objetivos: “Nosso coração e nossa missão está em alcançar os ainda não alcançados entre os indígenas do Vale do Javari”, afirma um casal de americanos logo acima do link por meio do qual recebe doações. Outro casal, que também pede doações, comenta: “Vamos morar em um barco, na Amazônia, para pregar nos vilarejos ao longo do rio.”

Vagas no Brasil 

Além das doações virtuais, os sites dessas organizações estrangeiras lembram os de busca de emprego. As vagas estão espalhadas por territórios de povos nativos mundo afora – e o Brasil aparece cheio de “oportunidades”. No site do Joshua Project, por exemplo, há 45 vagas para os missionários que quiserem plantar igrejas para converter indígenas em todo o Brasil. Há vagas inclusive para atuação entre os isolados do Alto Jutaí e de Jandiatuba, ambos no Vale do Javari, e em dezenas de outros povos, especialmente na região norte, como os Shanenawa, no Acre.  

Todos os povos mapeados são classificados com uma espécie de termômetro colorido chamado “Nível de Progresso”, que marca o percentual de conversão de um determinado povo, além de outros detalhes: a cor verde mostra as aldeias do Brasil onde há uma presença missionária significante (maior que 10%) e o vermelho refere-se a áreas onde quase não há sinais de cristandade. 

Também há cards para facilitar a oração para os povos e link para vídeo incentivando a vinda de missionários, em que é citada uma “tragédia escondida da floresta brasileira”, já que “a oportunidade dessas tribos ouvirem o gospel e conhecerem a vida eterna está ameaçada pelas crescentes restrições que os missionários sofrem ao tentar alcançá-las”.

Já no site da Finishing the Task, as vagas para missionários que querem “finalizar a missão” são mais restritas. No mapa mais recente, há espaço para dois missionários no Mato Grosso (uma no povo Apiaká e outra nos Bororo), um no Acre (Katukina-Jutaí), um na Bahia (Tupinambá), um em Pernambuco (Tumbalala) e um em Alagoas (com os Koiupanka). 

Ao descrever cada uma dessas etnias, a Finishing the Task dá informações detalhadas sobre o quanto da Bíblia foi traduzido para determinada língua indígena, se usam rádio e se há alguma igreja no local. A organização reúne mais de 1.500 missões religiosas “para, juntas, alcançar grupos ainda não engajados” e, assim como o Joshua Project, compila informações levantadas por outras associações religiosas.

O papel dessas organizações – em sua maioria estrangeiras – que mapeiam os indígenas a serem convertidos é fundamental para as missões que atuam no Brasil. Isso fica claro em um documento da  Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), que reúne grupos missionários e cujo vice-presidente de Assunto Indígenas é o mesmo Edward Luz, diretor da Novas Tribos e pai do “antropólogo dos ruralistas”. No site da AMTB, lê-se: “há diversas e valiosas iniciativas de pesquisa que participam ativamente do trabalho de investigar quem são e onde estão os menos evangelizados.” 

Poderoso aliado

Essas organizações estrangeiras haviam ganhado, no Brasil, um poderoso aliado. Em fevereiro, antes do isolamento social, o governo de Jair Bolsonaro nomeou o ex-missionário Ricardo Lopes Dias, que já fez parte do Novas Tribos, para chefiar o departamento da Funai responsável pelos isolados. A nomeação foi criticada por ambientalistas, organizações indigenistas e membros da sociedade civil, e despertou alerta do Ministério Público Federal.

Inicialmente, para o órgão, o problema era o de que Lopes Dias teria acesso a informações detalhadas sobre os isolados, o que poderia alimentar os já vastos bancos de dados de organizações evangelizadoras estrangeiras. Depois, quando a covid-19 chegou ao Brasil e a Funai orientou que indígenas não saíssem das aldeias para evitar o contágio, o MPF acendeu o sinal vermelho: entrou na Justiça pedindo a suspensão da nomeação de Dias. O órgão argumentou que a “conduta omissiva” de Dias e a “letargia” da Funai em elaborar políticas emergenciais para os indígenas no Brasil gerava uma “ameaça concreta de genocídio com a pandemia de covid-19, dada a baixa resistência que têm a agentes que provocam doenças respiratórias”.

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região acatou o pedido do MPF e suspendeu a nomeação de Lopes Dias em 21 de maio, em decisão que fez lideranças indígenas respirarem aliviadas. No entanto, nesta terça-feira (9/6), o STJ revogou a decisão do TRF, liberando a nomeação de Dias para o cargo.

Outras decisões na Justiça também têm imposto derrotas aos evangelizadores. Na tentativa de impedir contato entre indígenas e não indígenas, também por conta da covid, a Justiça do Amazonas proibiu a entrada de missionários do Vale do Javari. Em decisão favorável à ação movida pela Unijava, o juiz Fabiano Verli, de Tabatinga (AM), mencionava os pastores americanos Andrew Tonkin e Josiah Mcintyre, o brasileiro Wilson Kannenberg e a Novas Tribos. Eles negam qualquer iniciativa nesse sentido e se dizem vítima de perseguição.

Tonkin, além das denúncias de preparar novas incursões para contatar os isolados da etnia Korubo, no Igarapé Lambança, já foi alvo de duas investigações por invasão de outras terras indígenas no Vale do Javari, em 2014 e em 2019. A primeira foi arquivada, mas a segunda ainda não foi concluída.

Em contato por e-mail com a Repórter Brasil, Tonkin afirmou que costuma visitar a Amazônia com frequência há 13 anos, mas disse que está no Iraque desde março e, portanto, não poderia ter participado da suposta expedição no Vale do Javari. O americano disse que atua como um missionário independente e negou fazer parte da organização evangélica batista Frontier International, apesar de aparecer em várias páginas do site e do Facebook da entidade.

Questionado sobre uma possível tentativa de evangelizar isolados, ele respondeu: “Só tenho planos de contatar aqueles que o Senhor Jesus coloca no meu caminho”. E, com ironia, acrescentou: “Não comprei terra da Funai, não estou planejando construir uma fábrica de Coca-Cola em qualquer reserva. E também não sou nenhum tipo de head hunter. Isso tudo são boatos.”

A Repórter Brasil também entrou em contato com Josiah Mcintyre, outro missionário citado pela pela decisão da Justiça do Amazonas. Mas o americano se recusou a comentar as alegações da entidade e disse que tem sido alvo de mentiras. “Deus está comigo. Deixo tudo nas mãos dele, e ele vai me defender”, afirmou. 

O terceiro religioso citado, Wilson Kannenberg, trabalha na Asas de Socorro. uma organização cristã missionária que fornece apoio logístico, incluindo aviões, para área remotas. De acordo com o site da associação, eles têm o “propósito de servir a Deus junto a populações de difícil acesso na Amazônia” e entendem que atuar na área técnica, como a pilotagem de aviões, é um meio eficaz para alcançar os povos isolados. Procurado pela reportagem por e-mail e celular, Kannenberg não respondeu às questões enviadas.

Já em relação à Missão Novas Tribos, também citada pela Justiça amazonense, enviou as respostas por e-mail (leia a íntegra) em nome do pastor Edward Luz, negando que eles tenham planos de “contatar grupos étnicos considerados pela Funai como isolados”. 

À Repórter Brasil, a Funai afirmou que não foi consultada sobre a entrada de missionários em terras indígenas no Vale do Javari. “O ingresso em Terra Indígena sem autorização configura invasão de território da União e tem suas consequências legais”, acrescentou a fundação. A entidade disse ainda que suspendeu a concessão de novas autorizações de entrada em territórios indígenas e que tem atuado na prevenção à covid-19 junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. O órgão não respondeu aos demais questionamentos sobre a atuação de organizações religiosas junto aos indígenas.

A covid-19, que se dissemina rapidamente por aldeias no Brasil, parece ter ressaltado a importância de que os indígenas isolados continuem isolados — política adotada pela Funai desde a década de 1980 e que estava ameaçada com a nomeação de Lopes Dias. 

Foi o coronavírus o principal argumento do juiz federal Fabiano Verli ao proibir a entrada de missionários no Vale do Javari. “Doutrinação religiosa, por mais que seja subjetivamente importante para muita gente, não é, pela ideologia constitucional possível, imaginável, um serviço essencial”, escreveu na  sua sentença. “Ressalto os que imagino serem bons motivos daqueles que querem espalhar a belíssima palavra de Cristo aos índios. Mas estamos num Estado laico e temos outras prioridades. Até estados semi-teocráticos e tirânicos como a Arábia Saudita esvaziaram seus templos pela Covid.”


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