26/04/2024 - Edição 540

Brasil

Tragédia em curso: Covid-19 se alastra por aldeias indígenas da Amazônia e pode dizimar povos inteiros

Publicado em 11/06/2020 12:00 -

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O registro do 228º caso confirmado de óbito por contaminação pelo novo coronavírus em território indígena na Amazônia Legal brasileira, segundo dados de ontem da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), fez soar mais uma vez o alarme para uma tragédia em curso: o alastramento da doença entre um dos grupos mais vulneráveis do país no quesito acesso ao Sistema de Saúde, com riscos de extermínio de culturas e povos inteiros, que já sofrem com a depopulação.

O avanço é preocupante. Dados coletados no mesmo dia pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde apontavam para 73 óbitos, 1.716 casos confirmados e 254 casos suspeitos na Amazônia brasileira. Um número até três vezes menor que os de levantamentos independentes de outras entidades indígenas, como o da Coiab, que considera casos não computados na base do ministério.

Invasões de terras por garimpeiros ilegais (um drama na Terra Indígena Yanomami), a chegada de agentes de saúde infectados e o deslocamento de indígenas por conta da promessa do auxílio emergencial surgem como grandes vetores da contaminação. Uma vez que o vírus chega às aldeias indígenas, o controle da disseminação é improvável, já que, independentemente do território ocupado, a forma de organização social nestes espaços é integralmente coletiva.

— Em uma única aldeia, pode ter uma maloca com mais de 100 indígenas vivendo todos juntos, um espaço fértil para contaminação pela Covid-19. O risco é extremo — explica Mario Nicacio, vice-coordenador da Coiab, uma das maiores organizações regionais indígenas do país, abrangendo os nove estados da Amazônia brasileira.

O avanço da Covid-19 entre povos indígenas foi a base de nota divulgada pelos escritórios de Direitos Humanos da ONU para a América do Sul, da Colômbia e da Bolívia, junto com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por ocasião da celebração, na última sexta-feira, do Dia Internacional do Meio Ambiente; tem mobilizado agentes de saúde, autoridades, lideranças indígenas e artistas de todo mundo; e, na terça-feira, foi ponto de questionamento em entrevista coletiva de imprensa com o secretário de Saúde Indígena, Robson Santos.

Indagado sobre a possibilidade da taxa de letalidade do novo coronavírus entre este povos ser maior que a de 3,9% divulgada pelo Ministério da Saúde, o secretário disse “trabalhar com a ciência” e que ela aponta para uma taxa “abaixo da média nacional”. No entanto, Santos reconhece a dificuldade de preenchimento de vagas de médicos para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei).

— Há locais em que não temos profissionais por falta de talento humano no mercado — disse.

Divergência de números

A Coiab passou a fazer a contagem a partir da observação de que “o Boletim Epidemiológico da Sesai exclui 40% da população indígena, que se encontra fora de seus territórios”. A Coiab faz a coleta, checagem e sistematização das informações junto a uma rede de organizações indígenas que atuam diretamente na linha de frente dos estados, aldeias, terras e regiões indígenas. Pela entidade, ontem eram registrados 228 óbitos, 2.908 confirmados e 386 casos suspeitos em 76 povos da Amazônia brasileira. A realidade pode ser bem pior, considerando a subnotificação pela falta de testes, pela carência no atendimento de saúde e pela precariedade de comunicação com algumas comunidades.

Um dos motivos identificados para a divergência em relação aos números do governo é que o Ministério da Saúde não contabiliza indígenas que vivem em contexto urbano, os que vivem em área rural que não é terra indígena, os que migraram de outros países e aqueles que, por conta própria, tiveram de ir diretamente aos hospitais nas cidades. O Boletim Epidemiológico da Sesai refere-se, apenas, aos registros realizados pelas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) de indígenas aldeados atendidos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Há 25 Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena na Amazônia.

Colapso generalizado

A precariedade do atendimento de saúde para indígenas durante a pandemia é, em parte, desdobramento do caos do próprio sistema de saúde da região neste momento. O Amazonas é um dos estados brasileiros mais atingidos pela Covid-19, tendo registrado, ontem, 1.615 novos casos, totalizando 52.849 casos confirmados no estado, segundo boletim epidemiológico da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM).

Por lei, a Secretaria Especial de Saúde Indígena deve oferecer serviços de atenção básica aos povos indígenas brasileiros residentes em terras indígenas homologadas, com visitas domiciliares periódicas pelas Equipes Multidisciplinares de Saúde nas aldeias. Mas, na prática, tal atendimento não acontece como previsto — além da escassez de profissionais de saúde nas DSEI, entidades indígenas denunciam a falta de equipamentos de proteção das equipes em atendimentos primários, e muitos indígenas se deslocam para as cidades, onde estão os hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) e o atendimento é compartilhado com a população local. O atendimento de média e alta complexidade só é realizado no SUS, o que é um outro complicador: um paciente indígena com um quadro mais grave da doença, se não puder ser prontamente deslocado pelos aviões contratados pela Sesai para este fim, certamente terá dificuldades em ter um atendimento a tempo de um bom prognóstico.

— Para chegar ao município de São Gabriel da Cachoeira, onde um único hospital do SUS atende a população local de 45 mil habitantes, indígenas de 23 povos de comunidades do entorno têm que se deslocar de barco, às vezes, por vários dias. Quando chegam ao hospital, encontram uma realidade de sete respiradores apenas, que nem atendem à população da cidade, e uma usina de oxigênio com problemas. No mês passado, ela quebrou e o oxigênio teve de ser trazido às pressas, de avião, pela Força Aérea Brasileira. Neste hospital, não há UTI, e se o quadro se agravar, estes pacientes têm de ser deslocados para Manaus — conta Marivelton Barroso, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), que também alerta para o perigo do fluxo de indígenas da cidade para as aldeias. — Tem gente saindo de São Gabriel e se refugiando nas aldeias. Isso traz um risco enorme. Se o vírus chega a territórios e se alastra pelas comunidades indígenas, vamos ter o genocídio de vários povos do Alto Rio Negro, onde a imunidade já é baixa.

Somam-se aos problemas do atendimento de saúde pública a ausência de infraestrutura e saneamento básico de muitas comunidades, que impossibilitam alguns cuidados de prevenção, e as frágeis estruturas de comunicação destas áreas, onde a informação e educação da população sobre como combater o coronavírus não acontecem ou vieram tarde demais, sob a responsabilidade dos agentes de saúde indígena e lideranças locais do movimento indígena.

Barreiras sanitárias

Entre as terras indígenas mais populosas do país, as do Alto Rio Negro e do Alto Solimões são as áreas mais atingidas pela pandemia. Em uma aldeia do povo Tikuna, na região do Alto Solimões, vivem mais de 3 mil indígenas, exemplo na Aldeia Betania. O povo Kokama, localizado no Alto Solimões, em uma região de fronteira com Peru e Colômbia, é o mais atingido: ontem, eram 55 indígenas Kokama falecidos. Regiões de fronteiras com outros países — na Amazônia, são sete áreas de fronteiras — também são críticas para a disseminação da Covid-19, pois elas têm grande mobilidade terrestre e fluvial e não existe um trabalho integrado entres países.

Por conta dos riscos envolvidos, muitas comunidades da Amazônia estão fazendo barreiras sanitárias por conta própria, organizando-se para impedir que as pessoas entrem e saiam das terras carregando o coronavírus. Mas, com a dinâmica de invasões ilegais de garimpeiros, grileiros, madeireiros e fazendeiros que estes territórios já sofrem, o perigo trazido pelo mundo externo aumenta.

— Sem um efetivo controle do governo, problemas como a invasão de terras, o extrativismo e a mineração ilegais, o derramamento de óleo nos rios, incêndios, assassinato de lideranças indígenas e falta de serviços básicos se combinam com a pandemia da Covid-19, e se somam a outros problemas de saúde anteriores que se mantêm, como a malária e o sarampo. Não há, atualmente, um protocolo de saúde efetivo para os povos indígenas dos nove países que compõem a Bacia Amazônica — diz José Gregorio Mirabal, do povo indígena Curripaco, da Venezuela, que dirige a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica. Com quase 5 milhões de quilômetros quadrados, a Amazônia brasileira, mais diversa em povos indígenas, responde por 60% do território de toda a bacia.

Investimentos

A assessoria de comunicação do Ministério da Defesa informa que, por meio do Comando Militar da Amazônia, 9º Distrito Naval e ALA 8, as comunidades indígenas e a população local do alto Rio Negro vêm recebendo apoio. As Forças Armadas administram o Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira, em convênio com a Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas, têm oferecido recursos operacionais para apoiar as demandas dos órgãos de saúde estaduais e municipais. Além disso, as Forças Armadas teriam distribuído mais de 3 mil cestas básicas.

Segundo a assessoria de comunicação do Ministério da Saúde, foi aprovada pelo governo a contratação da Equipe de Resposta Rápida (ERR), composta por um médico, dois enfermeiros e quatro técnicos de enfermagem, para cada Distrito Especial Sanitário Indígena (DSEI), para reforçar o enfrentamento da Covid-19, em um investimento de R$ 6.608.106,81. Além disso, estaria prevista — sem data informada — a elaboração de um Termo de Execução Descentralizado (TED) junto ao Ministério da Defesa, para apoiar as comunidades indígenas do Norte do País, no valor de R$ 6.779.774,54.

Entidades não governamentais ainda não identificaram, no entanto, uma ajuda substancial do governo até o momento.

— Recebemos denúncias de que médicos estão com dificuldades em chegar aos estados, como é o caso do Dsei leste, em Roraima. Ainda estão no processo de contratação e residência nos locais de trabalho nos distritos. Mas o problema é não ter condições e proteções para saúde própria e para os indígenas, devido à falta de EPIs. A Sesai criou um comitê de crises, mas não tem repassado os planos e detalhamento das atividades para as organizações, o que faz a crise piorar ainda mais — diz Mario Nicacio, da Coiab.

Apoio que vem de fora

Há poucos dias, enquanto os números de casos de Covid-19 estouravam no Amazonas, uma reunião virtual reunia representantes do  Brasil, Portugal, Peru, Equador, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos para a inauguração do Instituto Amigos da Amazônia (Iama). A força-tarefa internacional, que a partir de julho ganha sede oficial na cidade do Porto, em Portugal, é uma parceria entre a Fundação Amazonas Sustentável (FAS), a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e a Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia. Na ocasião em questão, organizava-se para lançar, em caráter de emergência, as bases de suas ações de captação de recursos globais para o combate à Covid-19 em comunidades ribeirinhas e indígenas da Amazônia.

A meta de arrecadação para 2020 – um total de R$ 10 milhões em doações – terá 40% de seu total revertido para a causa, no financiamento de ações de ajuda humanitária, transporte de pacientes de territórios isolados, investimento em telessaúde, comunicação e educação sobre prevenção. O restante apoiará iniciativas de combate ao desmatamento, de cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pelas Nações Unidas metas nos países amazônicos e ações para erradicação da pobreza de povos indígenas e comunidades tradicionais.

— Sem o Fundo da Amazônia e o apoio do governo federal, tivemos de canalizar a inquietude mundial em relação à Amazônia para criar uma entidade internacional que facilite a captação de ajuda e recursos, promovendo diálogos estratégicos com governantes e investidores. O enfrentamento da Covid-19 não estava nos planos de lançamento do trabalho do Instituto, mas virou prioridade por seu caráter de emergência. Antes de ser uma doença, a pandemia da Covid-19 é um problema de saúde pública, o SUS nestes lugares é o pior que existe. E as ações do governo, por sua vez, não dialogam nem com as especificidades destas comunidades, nem com sua sabedoria tradicional e cultura — conclui Virgílio Viana, coordenador geral da FAS e um dos fundadores do Iama.

Diretora do documentário "Amazônia, o despertar da florestania" e ativista, há anos, dos interesses da floresta amazônica e  dos indígenas, a atriz Christiane Torloni está entre as apoiadoras do projeto do IAMA.

— Há 40 anos, a Amazônia estava longe dos olhos do mundo. Agora, felizmente, vemos um ativismo comovente e uma sensibilização internacional para a causa. Que é oposta à estratégia de desmobilização que parece ser a meta do governo federal. Mas a Amazônia e seus povos não estão sozinhos – diz a atriz.

O engenheiro e empresário português Aurélio Tavares, também entre os fundadores do instituto, diz que a iniciativa terá desdobramentos para além do combate à Covid-19 entre os povos indígenas. Entre os projetos que serão apoiados e financiados, estão propostas de soluções econômicas sustentpaveis que apoiem a população local, como um sistema de produção de energia autônomo.

— Queremos apoiar projetos sustentáveis que criem e promovam uma economia circular, preservando a floresta e criando empregos entre a população local. Boa parte da energia que se produz na Amazônia vem do diesel, um processo caríssimo e poluidor do ambiente. Investir nos recursos hídricos como se vem fazendo, apesar de serem considerados energia limpa, é outro desastre para a natureza. Entre as energias autonativas, o ar é o que melhor se aplica a investimentos, e temos muitos avanços técnicos nesta área — explica Aurélio.


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