25/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

A Milícia Fantasiada

Publicado em 09/06/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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Tem muito pouco neste governo que não se resuma a um exercício de estelionato político. Da expertise de Guedes à reputação ilibada e incorruptível do Presidente, não há evidências que corroborem as qualidades arrotadas por seus apoiadores. Mas nem a política de marketing multinível de Guedes, nem as décadas de abuso da verba de combustível parlamentar de Bolsonaro são tão revoltantes quanto as ameaças das milícias fantasiadas.

Em entrevista à revista Veja,  o general da ativa e ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que seria "ultrajante e ofensivo" falar em "golpe" por parte das Forças Armadas. Gabou-se de ter sido professor de cadetes que, hoje, são os comandantes unidades do exército, insinuando ter influência sobre as mãos armadas. Disse, também, que o presidente Jair Bolsonaro "nunca pregou o golpe" mas avisou que o "outro lado" não deveria "esticar a corda". 

A pergunta óbvia feita em seguida: "Como assim? O que significa esticar a corda, general?" Ramos enumerou "comparar Bolsonaro a Hitler" e a possibilidade do TSE julgar a chapa de Bolsonaro como irregular. Ou seja, emitir opinião contar o governo é esticar a corda. Condenar Bolsonaro e asseclas por crimes eleitorais cometidos, também. Se a justiça condenar a chapa do presidente por fraude eleitoral, vai ter golpe. E se continuarmos a criticar suas atitudes facistoides, comparando-as com as barbaridades autoritárias de Hitler, também. Em outras palavras, se ninguém investigar, ameaçar ou criticar o governo, não se preocupem: pensar em golpe é "ultrajante e ofensivo". 

Bem verdade que Bolsonaro prometeu desmantelar o Estado, extinguir ministérios e vender estatais. Eu só não esperava que ele começasse pelo Exército. Porque o dever essencial das forças armadas de qualquer país democrático é obediência à Constituição. Por esse motivo, generais e oficiais dignos, em países sérios, não participam do governo. Vide Mark Milley, Chefe do Estado Maior dos EUA, que pediu desculpas publicamente por ter participado de uma presepada marqueteira de Trump e chegou, inclusive, a pensar em renunciar. 

O que legitima a atuação militar é o distanciamento da política em prol da defesa da democracia e da Constituição. Ou alguém acha que a diferença entre exército e milícia é o número de estrelinhas de plástico no ombro dos líderes da organização? Sem compromisso com valores democráticos, não me importa se o braço armado do bolsonarismo é liderado por Ramos ou pelo Marcola. Comprometida ideologicamente, farda é fantasia. E não tem maior prova de comprometimento ideológico do que chamar 70% da população de "outro lado". E não tem prova maior de desrespeito à Constituição do que ameaçar o TSE. Quando chegamos nesse ponto, deixamos de ter um exército para ter uma milícia fantasiada. E pior, uma milícia que ameaça meus direitos enquanto eu pago pelo seu soldo e as pensões integrais de militares da reserva e suas filhas solteiras. Por falar em milícia, e os 39 kg de cocaína no avião presidencial que o tal sargento levou pra Espanha? Chegamos nos mandantes da operação?

Como falamos na última semana, não cabe o argumento das "maçãs podres" que contaminam as instituições se o restante das instituições não faz nada para lidar com a podridão que as contaminam. Se as ameaças de Ramos não representam as Forças Armadas, é dever de seus membros deixar o corporativismo de lado e separar o joio do trigo, começando a faxina dentro de casa. 

Quanto a nós "do outro lado",  não nos cabe muito mais do que nos é permitido por lei: manifestar opiniões, denunciar abusos e exigir que a justiça cumpra o seu papel. Se isso é "esticar a corda", pode vir, general. Vamos ver quanto tempo dura uma aventura antidemocrática no século XXI. Só fica combinado que, desta vez, não vai rolar anistia pra conspirador nem para torturador de pijama, tá? Paz.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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