23/04/2024 - Edição 540

True Colors

Um mês após STF derrubar restrição, homens gays ainda são impedidos de doar sangue no Brasil

Publicado em 09/06/2020 12:00 - Andréa Martinelli – Huffpost

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“No início, me trataram super bem. A funcionária do hospital perguntou se eu já tinha tentado doar sangue e tal. Eu disse que sim, mas que não tinha dado certo e que aquele era um momento muito importante para mim. E ela perguntou: ‘Mas por que não conseguiu doar antes?’ Eu disse: ‘por que sou gay, me relaciono com homens’. E a partir daí me senti muito constrangido. Ela mudou. Só pela cara que ela fez, vi que eu não poderia doar.”

Em 13 de maio, quase uma semana após o encerramento do julgamento considerado histórico no STF (Supremo Tribunal Federal), que derrubou restrições à doação de sangue por homens que fazem sexo com homens no País, Mathias Menezes, de 25 anos, tentou, mas foi impedido de doar sangue no HCPA (Hospital de Clínicas de Porto Alegre), no Rio Grande do Sul.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Ministério da Saúde, mesmo notificados pelo Supremo, resistem em alterar os documentos que contêm artigo considerado discriminatório e inconstitucional pela corte há um mês. 

Portaria do Ministério da Saúde, publicada em 2014, e resolução da Anvisa, de 2016, afirmam que “indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes” são considerados inaptos à doação pelo período de 12 meses. 

O julgamento, considerado histórico, decidiu pela inconstitucionalidade das normas e chegou ao fim no dia 8 de maio. Dez dias depois, no dia 18, o Supremo enviou notificações aos órgãos responsáveis. A decisão foi publicada no Diário de Justiça no 22 de maio, e ganhou validade imediata a partir desta data, mesmo sem a publicação do acórdão.

Em 14 de maio, em ofício, a Anvisa, reiterada pelo MS, orientou os bancos de sangue afirmando que “as regras previstas na Portaria de Consolidação 5/2017 – Anexo IV do Ministério da Saúde (MS) e na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 34/2014 sobre doação devem ser seguidas normalmente pelos serviços de hemoterapia públicos e privados em todo o país.”

A agência adicionou que “aguarda a publicação do acórdão do STF sobre o julgamento para analisar as medidas administrativas e judiciais cabíveis, inclusive eventual apresentação de recurso sobre o tema.” 

Questionada, a agência manteve sua posição, disse que aguarda a publicação do acórdão do STF e que está consultando “especialistas nacionais para discussão de alternativas de forma a acatar de forma inequívoca a decisão” e que, “por isso, precisamos da decisão de caráter executório”. 

Já o Ministério da Saúde, que defendeu a restrição em nota, não respondeu aos novos questionamentos específicos sobre o tema. A pasta afirmou, por e-mail, ainda em maio, que “trata-se de uma decisão judicial que será seguida assim que publicada.” 

Juristas afirmam que não cabe recurso da decisão do STF e que não é preciso aguardar “conclusão total” do julgamento, cujo acórdão ainda não foi publicado, para que a decisão seja cumprida e reorientar os hemocentros. 

“A partir da decisão publicada, no dia 22 de maio, eles [órgãos] já são obrigados a permitir que homens gays doem sangue porque, pelo próprio entendimento do STF em 2015, o cumprimento deste tipo de decisão se dá partir de publicação da ata de julgamento, não somente do acórdão”, afirma Thiago Amparo, advogado e professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Neste cenário, hemocentros pelo País, como o de Porto Alegre, em que Mathias tentou doar sangue, ainda estão rejeitando doações desta parcela da população sob a alegação de que aguardam orientações da Anvisa e do Ministério da Saúde para se adequarem aos novos procedimentos.

‘Queria avisar que você não vai poder doar’

Formado em relações internacionais, Mathias afirma que seguiu o procedimento padrão para evitar aglomerações, e marcou um horário por WhatsApp no hemocentro do hospital. Ele conta que não só ficou empolgado com a decisão do Supremo, mas também quis realizar um gesto de cidadania sabendo da escassez dos bancos de sangue diante dos casos de covid-19

“Eu não moro com ninguém do grupo de risco para a doença. E quando saiu a decisão eu fiquei animado para doar, porque sabia que os estoques em todo o País estão apertados, e é algo que sempre estão precisando. Tem muita coisa ruim acontecendo, mas também têm muitas coisas positivas sendo feitas nesse momento e eu pensei que doar seria uma forma de poder ajudar alguém.”

Na escalada da pandemia do novo coronavírus, o Brasil apresenta recorde de mortes e casos diariamente, tendo ultrapassando França e Itália no número de mortos. 

Mathias relata que, chegando ao local, passou pela triagem, foi pesado, teve a pressão verificada e uma amostra de sangue colhida. Em seguida, foi encaminhado para a entrevista padrão com uma funcionária do hospital. E. neste momento, informou sua sexualidade e soube que não poderia doar. 

Ao dizer que era gay, a funcionária sugeriu que ele tinha um parceiro fixo – algo que ele refutou – e que não teria usado preservativos em suas relações. “Ela duvidou e me perguntou quantos parceiros eu tive no último ano e eu disse: ‘dois’. E ela falou ‘ah, é, mas dois sem proteção não dá, né?‘. E eu respondi pra que não tinha dito isso. Que foi tudo com proteção. E ela falou ‘ah, mesmo assim’. E eu pensei comigo que não iria ganhar essa batalha.”

A funcionária chegou a interromper a entrevista. “Ela já me disse ’ah, não vou fazer todas as perguntas, então. E queria avisar que você não vai poder doar. E eu perguntei por que. E ela disse: ‘você tem um parceiro, não é? Eu vou te mostrar, eu sempre tenho em mãos isso aqui’”, relata o jovem, ao citar que a funcionária apresentou a portaria do MS. “Ela me apontou justamente a parte que o STF derrubou. Quando ela me falou isso, eu fiquei totalmente impotente, sem reação. Só fiquei olhando pra ela”, conta. 

O jovem conta que, mesmo constrangido, argumentou que tinha o direito de doar e estava respaldado pela Suprema Corte. Em seguida, a funcionária foi conversar com seus superiores. “Ela voltou com a negativa, me dispensou e ainda me deu uma recomendação: a de que eu deveria ter ligado para o hospital antes para saber se a decisão já estava valendo.”

A reportagem do HuffPost Brasil entrou em contato com o HCPA, mas até o momento da publicação deste texto, o hospital não respondeu aos questionamentos. Devido à discriminação sofrida no momento do atendimento, Mathias entrou com uma representação no MPF (Ministério Público Federal), que está em andamento.

Decisão do Supremo já deveria estar sendo cumprida no País

A decisão do Supremo foi publicada no Diário de Justiça no 22 de maio, duas semanas após a decisão da corte. Tecnicamente, a decisão ganha validade imediata a partir da publicação e os hemocentros do País não poderiam mais aplicar a restrição de 12 meses a homens gays, bissexuais e mulheres trans – assim como os documentos inconstitucionais deveriam ter sido alterados.

“Essa decisão produz efeitos desde quando a ata da sessão do julgamento foi publicada. Ou seja, desde o dia 22 de maio. E os dispositivos das normas da Anvisa e do Ministério da Saúde, cuja constitucionalidade foi questionada, já estão comprometidos, já foram declarados inconstitucionais. Não há como haver recursos como cita a Anvisa no ofício”, explica Renan Quinalha, advogado e professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

O que poderia haver, eventualmente, segundo o jurista, após a publicação do acórdão, são os chamados “embargos de declaração” que servem para, eventualmente, sanar algum tipo de obscuridade e contradição da decisão, e não têm efeitos de recurso. “Sem dúvida nenhuma, há um descumprimento de ação judicial e o Supremo precisa ser notificado. É evidente que está havendo uma resistência do governo em alterar os dispositivos.”

Caso haja algum impedimento no momento da doação de sangue por homens que fazem sexo com homens, existem mecanismos jurídicos que podem ser úteis, mas que respondem a longo prazo – porém, de forma eficaz. Entre eles está a possibilidade de entrar com uma ação cível de indenização moral.

“No caso de uma decisão do STF, é possível apresentar uma reclamação judicial diretamente à corte. Outra opção um pouco mais radical seria entrar com mandado de segurança [ação constitucional que visa tutelar direito ameaçado ou violado por autoridade pública]”, diz Thiago Amparo. “Sabemos que algumas resistências vão surgir. Mas é esperado que elas não se sustentem”, pontua.

Além disso, reclamar junto às ouvidorias dos hospitais e hemocentros é uma possível solução, assim como recorrer aos Conselhos de Saúde estaduais.

É possível que, se tanto a Anvisa, quanto o Ministério da Saúde continuem a apresentar demora em alterar as normas, e casos de discriminação sejam recorrentes, os órgãos sejam obrigados a fazer as alterações. O PSB (Partido Socialista Brasileiro), que apresentou a ação, pode reclamar ao STF, assim como o Ministério Público Federal também pode se manifestar.

Com a crise provocada pelo surto do novo coronavírus, os hemocentros de todo País estão fazendo campanhas para receberem doações de sangue. Especialistas estimam que a decisão do STF pode chegar a abastecer hemocentros do País com até 1,5 milhão de litros de sangue por mês. No momento, eles operam com 40% da capacidade.

Outros países ao redor do mundo, diante do aumento de casos da covid-19, também alteraram as regras de doação visando o abastecimento dos estoques dos bancos de sangue, reduzidos devido à pandemia. Entre os que flexibilizaram estão Dinamarca, Austrália, Irlanda do Norte e Estados Unidos. 

“Essa é uma decisão que precisa ser irradiada, capilarizada”, afirma Quinalha. “Leva muito tempo para cada hemocentro alterar formulários, procedimentos padrão. Tem um tempo de assimilação da decisão que é muito difícil neste caso. A distância entre a decisão do STF e quem está fazendo a triagem das pessoas para doação é abissal. Se não houver novas orientações, profissionais de saúde se sentirão inseguros em deixar de aplicar a restrição”, reitera. 

‘É um ato nobre doar o nosso sangue’

Eduardo Pinheiro Braga, 42, de Brasília, recebeu um pedido de doação de sangue em um grupo de LGBTs que participa no WhatsApp. Na mensagem, uma amiga pede doações para o filho recém-nascido de uma outra colega que, internado, teve hemorragia e estava precisando de transfusão. “Eu tenho sangue ‘o negativo’, que é doador universal, e vi ali uma oportunidade”, conta. 

“Eu sabia da decisão do STF, mas não quis quebrar a quarentena, correr o risco e ser barrado na hora da doação. Eu sabia que era um risco [não conseguir doar]. Então eu liguei em no hemocentro aqui de Brasília e eles me disseram que não estão estavam aceitando doações de homens gays.”

“Muitos hemocentros ainda estão negando por burocracia”, aponta Eduardo, que tentou doar no Hemocentro São Lucas, em Brasília, mas recebeu a negativa. Segundo ele, o local informou por telefone estavam cientes da decisão do Supremo, mas que ainda não estavam autorizados a receber estes doadores por que estavam aguardando trâmites administrativos da Anvisa. 

Também o HemoRio, principal hemocentro do Rio de Janeiro, informou que, “como órgão do SUS, precisa seguir todas as orientações passadas pelo Ministério da Saúde. Dessa forma é necessário aguardar as definições do MS e da Anvisa para tomar qualquer decisão nesse sentido”. 

A fundação Pró-Sangue, em São Paulo, se posicionou de forma semelhante. Em nota, afirmou que “segue as determinações do Ministério da Saúde e está no aguardo de publicação desse órgão com novas orientações referente ao assunto dos critérios para doação de sangue.”

Porém, o brasiliense conta que, caso estivesse autorizado, esta não seria a primeira vez que doaria sangue. Isso porque, como muitos outros LGBTs, ele mentiu sobre sua sexualidade no momento da doação. Ele afirma que, dessa vez, mesmo comovido com o pedido, quis fazer diferente.

“Honestamente? A gente está de saco cheio de continuar mentindo. A gente quer ajudar a salvar vidas, né? Mas essa restrição era mais uma que obrigava a gente a mentir sobre quem nós somos. É um ato nobre doar o nosso sangue.”

O que o STF decidiu sobre doação de sangue por homens gays

Em seu texto, a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5543, que foi analisada pela corte, diz que as regras dão “absurdo tratamento discriminatório por parte do Poder Público em função da orientação sexual, o que ofende a dignidade dos envolvidos e retira-lhes a possibilidade de exercer a solidariedade humana com a doação sanguínea”.

O ministro Edson Fachin, relator do processo, em seu voto, já havia afirmado que as cláusulas existentes nos documentos colocam em xeque “direitos fundamentais de um determinado grupo social”.

Para Fachin, estas restrições são baseadas em orientação sexual e no gênero do candidato, enquanto o mais adequado é utilizar o conceito de “práticas de risco” dos indivíduos – que podem atingir toda a população, não apenas homens gays. Ele foi acompanhado por 7 dos 11 ministros da corte.

A decisão é considerada histórica porque, partir da decisão do STF, o governo brasileiro terá que tratar homens gays e bissexuais da mesma forma que homens heterossexuais ao doar sangue – assim como mulheres trans e travestis, que são tratadas pelo gênero masculino no momento da doação.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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