23/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Para Celso Amorim, Forças Armadas tendem a não apoiar um golpe

Publicado em 08/06/2020 12:00 -

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Apesar dos atuais temores de um golpe de Estado no Brasil, o ex-ministro das Relações Exteriores (2003-2011) e da Defesa (2011-2015) Celso Amorim não considera provável que os militares partam para essa solução. “Eu acho que as Forças Armadas tenderiam a não apoiar um golpe. Não só a um golpe, mas até a uma garantia da lei e da ordem (GLO), se for convocado de maneira apressada”, diz.

Para ele, há o risco de que as manifestações de grupos anti-Bolsonaro “possam ser desvirtuadas”. “Pode haver provocações, e aí uma repressão muito forte da Polícia Militar, e isso gerar outra revolta ainda maior”, avalia.

Sobre os temores de que presidente Jair Bolsonaro use eventuais conflitos em manifestações para justificar um golpe, Amorim não acredita que os militares encampem a ideia.

“Veja as declarações recentes do general Santos Cruz (ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo de Bolsonaro). Embora esteja na reserva, ele é muito respeitado”, destaca. “Ele pertenceu ao governo, mas sempre verbaliza a questão de os militares servirem ao Estado, mas não se prestarem a ações que não sejam constitucionais.”

No último dia 4, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz rebateu a ideia de que as Forças Armadas possam desempenhar um “papel moderador” no país. Essa interpretação, disse o general, “é completamente equivocada. O nosso elemento moderador é a Constituição Federal, não são as Forças Armadas”.

 

Foi uma semana de mobilizações em várias partes do mundo, principalmente nos Estados Unidos,  em protesto pela morte de George Floyd, mas também no Brasil e na França. Como avalia esse momento?

São coisas latentes. Há uma enorme desigualdade histórica e, nos Estados Unidos, é recorrente, tem a violência contra os negros, a violência policial. Não é algo novo. É possível, mas não digo com certeza, que a própria crise do coronavírus, em que morrem mais negros, tenha contribuído para a reação, até levando as pessoas a se manifestarem, apesar dos riscos pessoais para a saúde.  Acho que é uma coisa que vai se acentuar, não vai passar facilmente.

Um dos fatos mais interessantes é que, no caso da repressão nos Estados Unidos, comandada pelo Trump, houve muita resistência. As próprias Forças Armadas disseram “isso não é com a gente”, pelo contrário. O general Jim Mattis (ex- secretário de Defesa) chegou a dizer que Trump quer dividir os Estados Unidos (“Donald Trump é o primeiro presidente da minha vida que não tenta unir o povo americano, nem mesmo o finge. Em vez disso, tenta nos dividir”, afirmou Mattis).

Que diferença do Brasil…

Que diferença do Brasil! Mas acho que a desigualdade não só é um fator que leva a pandemia a ser mais forte em certos lugares, mas também a própria maneira de lidar com a pandemia vai acirrar conflitos latentes. E não é uma coisa só racial.

Claro que nos Estados Unidos isso é dominante, no Brasil também é forte, embora as pessoas queiram esconder. A nossa desigualdade não é só social, é racial também. Não é o único, mas o principal fator para a desigualdade no Brasil é ainda a herança da escravidão. Joaquim Nabuco (1849-1910) disse que em cem anos para frente a escravidão ainda lançaria sombras. Mal sabia ele que seriam mais de cem anos.

Mas, com as mortes por coronavírus, o efeito é muito maior nas comunidades pobres, favelas etc. Já está acontecendo, e continuará uma grande crise econômica no Brasil e isso vai gerar mais protestos. Quando passar a doença, isso não vai passar. Quanto mais gente morre, mais enfraquecidos estejamos, mais vai aumentar a revolta. É inevitável.

Seria uma onda mundial tendendo a crescer?

Quase que com certeza sim, mas que rumos vai tomar, não sei. Essas coisas em alguns lugares geram mais repressão, mas vai haver protestos crescentes. No Chile estavam recomeçando os protestos, parados por causa do coronavírus. As pessoas estão reclamando porque estão com fome.

Segundo uma notícia, o governo prorrogaria a ajuda emergencial, e isso talvez já seja fruto da percepção dessa instabilidade que se cria com a doença e com o desemprego, e tudo o que vem junto (o governo deve propor que o auxílio emergencial seja estendido por mais dois meses, mas o valor cairia de R$ 600 para R$ 300).

Algumas pessoas acham temerário fazer manifestações, porque seria um pretexto para Bolsonaro endurecer e até dar um golpe. Isso poderia acontecer?

Às vezes as situações fogem um pouco do controle. Veja como cresceu, na época, o movimento em 2013 – que foi manipulado, mas tudo pode ser manipulado.

Podem haver provocações, e aí uma repressão muito forte da Polícia Militar, e isso gerar outra revolta ainda maior. O risco de que isso possa ser desvirtuado é real. O que pode haver é a tentação de usar a GLO, (Garantia de Lei e da Ordem). Eu acho que as Forças Armadas tenderiam a não apoiar um golpe. Não só a um golpe, mas até a uma Garantia de Lei e da Ordem, se isso for convocada de maneira apressada.

Os EUA têm um governo fascista, mas as instituições americanas são sólidas. Ninguém fala em golpe, como aqui.

Eu não chamaria o governo Trump de fascista. É muito ruim. Há uma diferença entre extrema-direita e fascismo. O comportamento do Trump, em alguns momentos, tem características fascistoides, até lembra Mussolini. Mas ele sabe que lá tem os pesos e contrapesos, ele vai até certo ponto e volta. Aqui, também ocorre, mas o ponto a que Bolsonaro vai é mais adiante, sempre ameaçando de maneira um golpe mais óbvia. O que nos Estados Unidos seria impensável, infelizmente aqui é verdade.

Pode ser que eu esteja errado, espero que não, mas no Brasil as Forças Armadas têm comandos mais profissionais. Tem uma diferença entre o alto comando e os militares do governo, que falam às vezes de maneira, senão fascista, pelo menos muito extremada.

Não quer dizer que entre os seguidores do Bolsonaro não haja muitos fascistas mesmo, provavelmente na família, mas aí é outra coisa.

Existe mesmo uma tendência da Marinha, mas principalmente da Aeronáutica, serem mais “profissionais” do que o Exército?

O que é mais importante dizer é que, na minha opinião, os militares têm uma visão mais profissional de defesa do país. Acho que começou a haver uma distorção já no governo Temer, com a intervenção no Rio, que foi muito ampla, mas ainda dentro de alguns parâmetros.

É diferente de um golpe. É preciso distinguir essas coisas. A Aeronáutica tende a ser mais técnica, pela própria natureza do trabalho, e a Marinha também, felizmente, se envolveu em grandes projetos que têm a ver com a defesa do país, como navios e submarinos, embora na ditadura tenha se envolvido em questões de repressão interna.

Mas eu vi o próprio Exército, quando estava no governo, muito voltado às tarefas profissionais. Acho ainda que, como instituição, eles tendem a ser bem profissionais. Não tenho contato direto, é bom destacar, mas pelo que leio e ouço, os comandos das três Forças, nesse aspecto, têm a mesma atitude profissional. Já os ministros são diferentes.

Muitas pessoas indignadas com o governo perguntam: “onde estão as Forças Armadas?” O que o senhor diria?

Veja bem, não podemos ficar desejando que as Forças Armadas deem um golpe para tirar o Bolsonaro. O que se pode esperar das Forças Armadas é que – se houver o chamado a uma coisa obviamente inconstitucional, ilegal, repressão com violência – elas não participem disso, que não se deixem seduzir por uma aventura golpista.

Pessoalmente, acho que não é bom para as Forças Armadas, para o Exército, que haja tantos militares no governo. É ruim para o governo e para elas.

Mas acho que há um esforço nítido, inclusive em declarações. Veja as declarações recentes do general Santos Cruz (ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo de Bolsonaro). Embora esteja na reserva, ele é muito respeitado, porque, a rigor, é o único general que foi à guerra.

A República Democrática do Congo, onde ele chefiou a missão da ONU (em 2013), era guerra. “Ele pertenceu ao governo, mas sempre verbaliza a questão de os militares servirem ao Estado, mas não se prestarem a ações que não sejam constitucionais.”  

As pessoas devem ou não ir às ruas se manifestar contra Bolsonaro?

Eu recomendo muita cautela, em dois aspectos. Primeiro, principal, é o da contaminação. Obviamente é um risco enorme para a saúde as pessoas estarem próximas umas das outras. É muito difícil manter o afastamento. E a segundo cautela é com as provocações, porque vai haver provocação, gente interessada em estimular a repressão e fazer que, com isso, haja uma escalada.  Mas também não posso dizer que as pessoas não vão se manifestar nunca, pelo fato de haver o risco. Também não é possível dizer isso. Mas é preciso muita disciplina.

E o Brasil de Bolsonaro não tem mais nenhum respeito no mundo…

Não tem nenhum. Na época do Lula, o Brasil estava presente nas reuniões, como G8+5, G20. Trump queria agora convocar uma reunião ampliada do G7, um G7+4. Esses quatro incluiriam três países dos Brics: China, Rússia e Índia, e não inclui o Brasil, mas a Austrália.

Isso seria impensável na época em que estávamos no governo. Quando Bush resolveu convocar o G20, Lula foi imediatamente consultado.

Todos os dias tem um artigo no Le Monde, ou no El País etc. O Brasil é um pária por toda uma série de questões. O coronavírus, a questão do clima, direitos humanos em geral, tratamento dos negros, dos LGBTs.

Agora não dá para perceber tanto, mas quando o mundo começar a se normalizar, a anomalia do Brasil vai ficar mais gritante ainda e o isolamento, ainda maior.

Vão vender para o Brasil, claro, mas na hora de procurar parcerias, uma relação de transferência de tecnologia, um investimento de longo prazo, não vai ser privilegiado. Vai ficar no fim da fila.


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