18/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Mensagem do governo com alusão ao nazismo agride vítimas do Holocausto, diz Michel Schlesinger

Publicado em 18/05/2020 12:00 -

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Uma mensagem publicada pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), com uma construção próxima à de um slogan do nazismo, "agride a memória de vítimas do Holocausto e ofende a sensibilidade de sobreviventes", diz Michel Schlesinger, rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP).

No último dia 10, em mensagem com críticas à imprensa no Twitter, a Secom afirmou que "o trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil".

A expressão "o trabalho liberta" estava inscrita na entrada do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, onde se estima que a máquina de guerra nazista tenha assassinado 1,3 milhão de pessoas – principalmente judeus, mas também poloneses cristãos, ciganos e soviéticos.

Schlesinger diz que o episódio se soma a uma série de ocasiões em que o governo Bolsonaro se portou de maneira condenável em relação ao regime nazista.

O episódio ocorre poucos dias após o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ser criticado por várias organizações judaicas por comparar a quarentena gerada pelo novo coronavírus aos campos de concentração.

Em janeiro, o então secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim, foi demitido após divulgar um vídeo com falas semelhantes a um discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels.

Na entrevista, Schlesinger trata ainda de sua rotina como rabino durante a pandemia e diz que a possibilidade de acompanhar orações pela internet está trazendo de volta muitos fiéis que andavam afastados das sinagogas.

Formado em Direito pela USP, Schlesinger iniciou a carreira religiosa aos 21 anos, no Seminário Rabínico Schechter, em Jerusalém, onde se ordenou rabino e obteve o título de mestre em Talmude (livro sagrado judaico) e Lei Judaica. Ele ingressou na CIP em 2005, aos 28 anos, tornando-se o representante da organização para o diálogo inter-religioso.

 

O que o sr. achou da mensagem veiculada pela Secom?

A utilização da expressão "o trabalho liberta", conhecido lema que ilustrava a porta de entrada do criminoso Campo de Concentração de Auschwitz, agride a memória das vítimas do Holocausto e ofende a sensibilidade dos sobreviventes.

Infelizmente, não é possível desconectar este movimento das demais referências do atual governo ao regime nazista, que seria "um movimento de esquerda" e "que deveria ser perdoado".

Tudo isto sem citar a imitação tão patética quanto aviltante do Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista, protagonizada por Roberto Alvim, então secretário de Cultura do mesmo governo.

Bandeiras de Israel tremulavam em um dos últimos protestos de que o presidente Jair Bolsonaro participou, onde manifestantes pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso. O que o sr. sentiu ao ver a bandeira israelense ali?

A paixão que Bolsonaro declara ter pelo Estado de Israel é algo positivo. A ostentação da bandeira de Israel numa manifestação como aquela pode causar uma confusão.

Sou um judeu brasileiro, não sou israelense. Obviamente, me vinculo muito com Israel pelo fato de o judaísmo ser uma religião extremamente relacionada com Israel.

O que lamento é que a gente crie crises desnecessárias. Estamos diante de um problema muito real, a pandemia. Gostaria de ver todo mundo se unindo em torno de soluções para esse desafio.

Há momentos em que podemos nos dar ao luxo de nos dividir em diferentes grupos e posições ideológicas. Mas, quando a gente se vê diante de um desafio tão grande, tão importante e tão real quanto é o da pandemia do coronavírus, deveríamos ser capazes de nos unir.

Como o sr. se coloca no debate entre reabrir a economia versus manter o isolamento?

Penso que esse é um falso dilema. Economia e saúde não brigam, mas existe uma que vem antes da outra. Precisamos de saúde para desenvolver qualquer modelo econômico. Se a vida for preservada, teremos criatividade suficiente para equacionar o resto.

Fala-se muito que a comunidade judaica apoiou de maneira massiva a eleição de Bolsonaro. Hoje pesquisas apontam que ele tem perdido apoio. O sr. percebe esse movimento entre os judeus brasileiros?

Existiram judeus que apoiaram Bolsonaro, assim como há judeus que não o apoiaram. É um equívoco tratar a comunidade judaica como uníssona, como apoiadora ou opositora de Bolsonaro.

O que caracteriza o judaísmo é a convivência de diferentes pontos de vista, de diferentes ideias. E assim sempre foi.

Há uma obra monumental judaica, o Talmude, criado no início da Idade Média. Em qualquer página, há diversas respostas judaicas para a mesma pergunta. Essa é a maior beleza do judaísmo.

Como o sr. lida com essa multiplicidade? O sr. expressa suas preferências políticas para quem o acompanha?

Não tenho candidato, não declaro voto, não defendo partido, mas defendo valores. Essa é a função do religioso.

Apoiar um candidato ou partido significa que você tenta trazer a comunidade para um consenso que a emprobece. Na hora que defendemos valores e princípios, damos para a comunidade ferramentas para avaliarem quais são os candidatos e os partidos que preenchem o maior número desses valores.

A defesa da justiça social é um valor importantíssimo dentro do judaísmo. A defesa dos direitos humanos, a defesa das minorias. Na medida em que minha comunidade estiver bem educada a respeito dos valores, a escolha do seu candidato e partido será uma boa escolha.

Houve uma polêmica recente com um artigo em que o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, comparou o isolamento da pandemia aos campos de concentração nazistas. O que o sr. achou?

Qualquer comparação com o sofrimento e o assassinato de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, além de equivocada, porque nada se compara a isso, é insensível. Estamos falando de um trauma muito recente. Temos sobreviventes do Holocausto ainda vivos. Os que faleceram têm filhos e netos em vida.

A Congregação Israelita Paulista (CIP), que o sr. integra, teve um papel importante na redemocratização do Brasil. A entidade se preocupa com a possibilidade de retrocessos democráticos no país?

Em 1936, a CIP foi fundada para absorver judeus que fugiam do regime nazifascista europeu. Ela nasceu como um centro de acolhimento de refugiados que estavam escapando de ditaduras de ultradireita europeias.

Ela foi o lugar de acolhimento, de receber pessoas, de defender o pluralismo e os direitos humanos.

Durante a ditadura militar, ela teve uma atuação grande liderada pelo rabino Henry Sobel, que denunciou o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, contrariando a versão oficial do governo militar de que ele teria se suicidado.

A CIP tem uma tradição de diálogo inter-religioso e de defesa das minorias. Vemos a democracia e os direitos humanos como uma conquista enorme do Brasil, sobre os quais o Brasil não está disposto a negociar. Qualquer retrocesso é inaceitável.

O sr. não acha que há risco de retrocesso agora?

Vigilância e caldo de galinha nunca são demais. Mas confio que temos instituições democráticas maduras o suficiente para resistir a aventuras que apontem na direção de um retrocesso.

O mundo e o Brasil se orgulham das conquistas em igualdade entre negros e brancos, homens e mulheres, preservação de direitos LGBT. E penso que, embora haja retrocessos pontuais, de modo geral, a história corre na direção de um fortalecimento dessas liberdades.

Como tem sido seu trabalho de rabino durante a pandemia?

As regras do jogo mudaram completamente. Todos viramos rabinos do primeiro ano do rabinato. Porque é um novo judaísmo, é um novo mundo.

Se o judaísmo quiser dar respostas atuais aos desafios do mundo, precisa ter capacidade de se reinventar. Não é a primeira vez que isso acontece na história judaica.

Quando, no ano 70, o Império Romano destruiu o segundo templo de Jerusalém, o judaísmo teve de ser redesenhado. A liderança deixou de estar nas mão dos sacerdotes e passou para as mãos dos rabinos.

Deixamos de fazer oferendas de sacrifícios de animais e passamos a fazer rezas. A gente deixou de ter um único local de ritual, o templo, e passou a ter sinagogas espalhadas.

Agora vivemos um momento parecido. Não é possível manter o judaísmo e qualquer outra religião da maneira como eram antes.

Quando tivemos de fechar sinagogas, havia duas alternativas: ou parar de rezar, ou migrar serviços religiosos para o ambiente virtual. Ficamos com a segunda opção, e a resposta tem sido incrivelmente positiva.

Por quê?

Estamos conseguindo atingir pessoas que não conseguíamos atingir no serviço presencial. Pessoas que moram em partes do Brasil que não têm rabino ou sinagoga, pessoas que moram em São Paulo mas não estavam se deslocando até nós, ou idosos que não conseguem sair de casa.

Todas essas pessoas estão voltando à sinagoga graças ao coronavírus, o que é uma loucura. Algo que veio para nos desafiar trouxe junto uma enorme oportunidade – que, a meu ver, vai marcar o judaísmo de forma definitiva.

Assim como temos a telemedicina, agora temos o telejudaísmo.

A sinagoga não perde seu motivo de ser, mas vai nascer um modelo misto, que vai misturar o virtual com o presencial.

Temos visto que a pandemia tem mudado alguns ritos muito importantes para tradições religiosas, como os relacionados à morte. Como o judaísmo tem lidado com essas mudanças?

Os rituais do luto judaico foram muito afetados. Deixamos de fazer uma limpeza ritual do corpo antes do enterro e de vestir a pessoa com uma mortalha.

Paramos por conta do perigo de contágio com a manipulação do corpo. A mortalha agora está sendo enterrada sobre o caixão, de maneira simbólica.

Os enterros estão sendo sumários, com pouca gente presente, e normalmente há celulares ligados para familiares que não puderam estar lá.

Depois disso começa o período mais desafiador, que é o do luto. A tradição judaica traz muitas ferramentas para que pessoa se sinta abraçada pela comunidade. Há orações de manhã, à tarde e à noite por um ano. Temos feito isso tudo virtualmente.

A gente abre um espaço para cada familiar dizer alguma coisa da pessoa que faleceu em um encontro pelo Zoom. Deixamos o chat aberto para quem quiser escrever algo.

Podemos compartilhar a tela para mostrar fotos e vídeos de momentos vividos com aquela pessoa. Estamos abraçando tudo que existe disponível para fazer esse momento ser significativo.

O sr. diz que tem recorrido à Bíblia para pensar o momento atual. Quais os trechos que considera mais pertinentes?

Estamos vivendo um desafio de proporções bíblicas, então não por acaso fui à Bíblia procurar inspiração.

Quando Moisés subiu o Monte Sinai para receber os Dez Mandamentos, ele também ficou lá quarenta dias. Enquanto ele vivia um momento de elevação espiritual, o povo que ficou aos pés do monte estava com medo, se sentindo abandonado. E acabaram trocando Deus pelo bezerro de ouro.

Hoje, as pessoas também estão vivendo essa quarentena de formas distintas. Alguns estão conseguindo ler livros, ouvir música, ficar mais perto de suas famílias.

Tem gente que está conseguindo ver algum lado positivo. E tem pessoas que estão desesperadas, em pânico.

Acho que o ideal está no meio do caminho. Não é possível que a gente se aliene do que está acontecendo – a alienação é perigosa e maléfica -, mas a histeria também não nos ajuda.

A religião pode ser inspiração na busca desse caminho intermediário. Também tenho pensado muito na travessia do Mar Vermelho.

Enquanto o último escravo não terminou de passar, as águas do Mar Vermelho não se fecharam. A pandemia é um desafio coletivo. Ou todos nós passamos e fazemos travessia de maneira coletiva, ou ninguém atravessará.

Entender isso nos traz uma oportunidade. Quando acabou a Segunda Guerra, o mundo percebeu que tínhamos de cooperar. Foram criadas a ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Houve um baque muito grande gerado pela guerra e uma resposta a essa crise que foi a solidariedade, a união. Infelizmente, nos últimos anos, vemos se fortalecer no mundo um discurso ultranacionalista, ultraxenófobo.

Minha esperança é que a pandemia nos coloque no caminho de compreender que fazemos parte da mesma humanidade, e que desafios não serão superados por nenhum país ou religião se não houver cooperação.


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