24/04/2024 - Edição 540

Mato Grosso do Sul

Pobreza indígena transforma covid-19 em bomba-relógio no Mato Grosso do Sul

Publicado em 15/05/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

A Reserva Indígena de Dourados (MS), com quase 20 mil habitantes, das etnias Kaiowa, Guarani e Terena, registrou esta semana seus três primeiros casos confirmados de infecção pelo coronavírus. O primeiro foi o de uma indígena de 35 anos que trabalha num frigorífico na cidade – os outros dois, segundo informações preliminares, são pessoas que tiveram contato com ela. Trata-se da maior comunidade, em uma das regiões indígenas mais problemáticas e conflituosas na atualidade. A chegada da pandemia ali pode ser desastrosa, e há muita preocupação neste momento, tanto pelo ambiente nas aldeias como pelas deficiências e omissões do poder público.

A indicação preliminar, segundo o Ministério Público Federal, é que pelo menos 43 pessoas da reserva que tiveram contato com a mulher doente antes de ela ter a confirmação da contaminação deverão ficar em isolamento por 14 dias.

O perfil da vítima é emblemático – mostra como a vulnerabilidade das comunidades indígenas de MS está vinculada à dificuldade de autonomia econômica. É grande o número de indígenas em Dourados que trabalham na cidade. A reserva tem apenas 3,5 mil hectares, e a maioria da população ali não consegue manter produção agrícola própria para não precisar ir ao centro urbano.

Além de ter atingido a reserva de Dourados, o coronavirus já está em Caarapó e Amambai, municípios do interior próximos nos quais estão as outras duas das três maiores reservas habitadas pelos Kaiowa e Guarani – segundo maior povo indígena do país, com cerca de 50 mil pessoas. Tirando o caso de Dourados, por ora, não se tem registros de casos da doença ou mortes dentro das dezenas de outras áreas indígenas da região, mas os relatos – obtidos em grupos de WhatsApp dos quais participam indígenas moradores das áreas – são inquietantes.

Igrejas abertas

O índice de evangélicos entre os indígenas de Mato Grosso do Sul é crescente nos últimos anos, e os cultos das igrejas pentecostais são uma das principais preocupações, pois seguem acontecendo diariamente em dezenas de locais, segundo vários relatos.

O mais grave é que, segundo os relatos, os cultos envolvem visitas de pastores e missionários vindos de cidades da região e até mesmo de outros estados. Diversas igrejas instaladas nas aldeias pertencem a grandes redes, como Assembleia de Deus ou Deus é Amor. Citam-se até mesmo casos de ameaças contra lideranças que estão buscando fechar os acessos das aldeias para minimizar os riscos de contaminação.

"Aqui no Ypo'i, desde a quarentena, a igreja não para. Vem caravana de outras aldeias, vêm pastores brancos, 24 horas está tendo culto. Parece que outras lideranças não estão dando orientação… É uma preocupação e tanto", relata a professora guarani Holanda Vera, da aldeia Ypoi, em Paranhos (MS). Somente esta semana a liderança local, segundo ela, conseguiu obter compromisso dos encarregados das igrejas de que as atividades serão interrompidas.

Outra aldeia, Cerrito, no município de Eldorado, também vinha registrando a entrada de pastores vindos de cidades. Segundo a professora guarani Vanoiria Martins, esta semana a comunidade formou uma comissão e houve um comprometimento coletivo com o respeito às medidas de isolamento: "Nós achamos que agora o pessoal conseguiu entender que esse vírus não é brincadeira, é muito mais grave do que eles estavam pensando".

Bares e campos de futebol também seguem funcionando normalmente em várias comunidades, inclusive com autorização de lideranças, segundo relatam outros indígenas. O MPF tem enviado ofício às lideranças, pedindo o "devido auxílio na conscientização das pessoas que residem nas comunidades a fim de prevenir e combater o covid-19", mas, por ora, ainda são numerosos os relatos de problemas.

Isolamento de notícias

Em função da escassez de terras e da falta de apoio técnico, grande parte das comunidades depende de mantimentos e outros itens comprados nas cidades, ou trazidos por vendedores ambulantes. Esse fluxo constante também é considerado outra vulnerabilidade. Diversos observadores têm relatado a presença de famílias indígenas nas cidades da região sem utilizar máscaras e nem mesmo ter ideia dos riscos que estão correndo. Para complicar ainda mais o quadro, em pelo menos uma aldeia há relato de que a prefeitura decretou volta às aulas nas escolas indígenas esta semana.

"A preocupação não é só minha, mas sim das lideranças também. Nossa comunidade não vê o que acontece no mundo afora, estamos sem notícia… Não temos mesmo nem televisão, somente quem tem internet sabe e viu o que está acontecendo. A minha comunidade precisa de orientação", diz ainda a professora Holanda.

O professor guarani-kaiowa Claudemiro Lescano é outro que está preocupado com a situação em sua aldeia, Taquapery, em Coronel Sapucaia (MS): "Solicito que seja enviado o mais rápido possível por meio da Funai para cada liderança, para cuidarem e orientarem a sua comunidade para seguir o isolamento social (…); não vejo esforço nenhum por parte de algumas lideranças para cumprir, ao contrário, incentivam a fazer aglomeração, jogos, torneio, funcionamento de igreja e outros".

Amazonas

Se o Mato Grosso do Sul – maior população indígena fora da Amazônia (mais de 80 mil pessoas) – registra clima de apreensão diante da expectativa de chegada da doença às aldeias, o Amazonas, o estado com a maior população indígena na Amazônia e no país (quase 200 mil pessoas), já vive neste mês de maio uma realidade de colapso em seu sistema de saúde por conta da pandemia.

O estado alcançou, na quinta (14), 17.181 casos de covid-19, tendo um total de 1.235 óbitos, segundo os números oficiais. A doença chegou a 59 dos 62 municípios, sendo que pelo menos quatro cidades já decretaram lockdown – bloqueio total (Tefé, Silves, Barreirinha e São Gabriel da Cachoeira).

Entre os indígenas, já são 195 casos confirmados e 13 óbitos, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/MS) desta quinta (14), havendo uma alta dispersão do contágio nas Terras Indígenas.

Na avaliação do Coletivo de Apoio aos Povos Yuhupdëh e Hupd'äh (CAPYH), essa dispersão pode estar acontecendo em função do retorno de milhares de pessoas indígenas a suas comunidades após as tentativas de acesso a benefícios sociais nos centros urbanos dos municípios. Segundo estudo recente, 110 terras indígenas do Amazonas encontram-se em estado de perigo.

O boletim da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), divulgado no dia 12 com base em informações levantadas pelas próprias lideranças, profissionais de saúde e organizações indígenas, aponta um total de 70 óbitos, 249 casos confirmados e 121 casos suspeitos na Amazônia Legal. "Os dados da Coiab buscam mostrar uma realidade omitida pela Sesai", afirma nota da Coiab divulgada junto a esses dados. Para a entidade, a discrepância se deve ao fato de a Sesai não considerar em seus números os indígenas moradores de cidades.

Sem estrutura (veículos, hospitais de referência, medicamentos, EPIs, respiradores) e profissionais suficientes, os sete Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) do Estado do Amazonas encontram-se impossibilitados de prestar a atenção emergencial necessária e aguardam repasses financeiros, insumos e contratações de recursos humanos urgentes pela Sesai.

Nenhum dos DSEIs atendeu à exigência de planos de contingência de epidemia para os Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato tal como preconizado pela Portaria Conjunta 4.094, de 20/12/2028 (Funais/Sesai), ainda que os povos Hupd'äh, Yuhupdëh, Yanomami, Ye'kuana, Suruwaha e Korubo sejam considerados extremamente vulneráveis.

As constantes invasões das terras indígenas por garimpeiros, madeireiros e grileiros aumentam o risco de ataques violentos e de contaminação por coronavírus. Apenas na TI Yanomami são já 20 mil garimpeiros invasores.

Dada a gravidade da situação de avanço da epidemia de coronavírus no Amazonas, o movimento indígena e entidades indigenistas têm reforçado os apelos por maior articulação e agilidade entre os órgãos municipais, estaduais e federais para que as ações emergenciais se tornem mais eficazes.

A falta de testes, de monitoramento de base comunitária e de investigação sobre grande número de óbitos de pessoas que apresentava sintomas de infecção viral gera grande insegurança quanto aos dados epidemiológicos oficiais. As parcerias com universidades e centros de pesquisa, entidades da sociedade civil, organizações indígenas e organismos de cooperação internacional em saúde serão fundamentais para o enfrentamento da crise.

Spensy Pimentel – Jornalista e doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, atua como pesquisador junto aos Kaiowa e Guarani de Mato Grosso do Sul, entre outras populações.

Danilo Paiva Ramos – Doutor em Antropologia também pela USP, atua como pesquisador junto a povos do Alto Rio Negro, no Amazonas.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *