29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Para a educação sexual ser efetiva, é necessário a substituição da religião pela ciência’

Publicado em 11/05/2020 12:00 -

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Vinte e cinco mulheres — todas profissionais de saúde — reuniram-se desde julho de 2019 na Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras. Desde então, já enfrentaram grandes debates na esfera pública posicionando-se contra a proposta de abstinência sexual como política pública para a redução da gravidez na adolescência e contra o projeto de lei que pretendia obrigar os serviços de saúde a denunciar casos de (suspeita de) violência contra a mulher à polícia.

O grupo acredita que a liberdade sexual e reprodutiva é uma questão de vida e morte para muitas mulheres e adolescentes e defende que a atenção à saúde deve incluir firmes disposições não discriminatórias para garantir proteção a todas as mulheres, independente de cor, idade, crença, classe social e portadoras de quaisquer deficiências. É o que afirma o perfil da Rede no Facebook.

De forma coletiva, elas respondem sobre direitos sexuais e reprodutivos dos adolescentes, apontando que métodos e propostas são mais recomendados e cientificamente reconhecidos como eficazes. Confira:

 

Como o Brasil tem se colocado ao longo dos últimos anos em relação às políticas públicas para educação sexual na adolescência?

A garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos para os e as adolescentes, já reconhecidos como direitos humanos em leis nacionais e documentos internacionais, indicam a importância da aceitação da individualidade e da autonomia desse segmento populacional, estimulando-os (as) a assumir a responsabilidade com sua própria saúde. O acesso à informação de qualidade, baseada em evidências científicas, usando uma linguagem acessível, são etapas fundamentais para o exercício pleno desses direitos, sem discriminação, coerção ou violência, em que se baseia as decisões livres e responsáveis sobre a vida sexual e a vida reprodutiva.

Nesse contexto, em 2011 e 2012, o Ministério da Saúde, por meio de sua Coordenação Geral de Saúde de Adolescentes e Jovens em conjunto com as Coordenações Estaduais e Municipais de Saúde de Adolescentes e de Jovens, Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) e outros parceiros, construiu coletivamente as orientações básicas e publicou um documento estabelecendo marcos norteadores que estruturam o desenvolvimento e a qualificação de ações, necessárias e adaptadas a cada território, para a atenção integral à saúde sexual e reprodutiva de adolescentes. Essas ações objetivam responder às singularidades e às necessidades específicas da adolescência, promovem a atenção integral à saúde sexual e à saúde reprodutiva e garantem os direitos sexuais e os direitos reprodutivos desse grupo populacional.

O Brasil vem recebendo influências internacionais, especialmente estadunidenses, no modo de vivenciar e cuidar da sexualidade na adolescência. Inclusive nossas políticas de educação sexual espelham-se em exemplos externos, sem muitas vezes mostrar as bases científicas consolidadas que sustentam a política, e nem tão pouco incluem as necessárias adaptações à realidade brasileira.

A história da sexualidade brasileira é documentada desde a época do Brasil colônia, quando começaram as trocas de conhecimentos, valores, práticas e crenças entre portugueses e índios. As regras portuguesas, desde o início, voltaram-se para o combate à nudez indígena e àquilo que simbolizava, ou seja, falta de vergonha e pudor. Nesse contexto, percebemos que, historicamente, a educação sexual se coloca com propostas moralizantes e por normas legitimadas por um poder que intenta moldar comportamentos. Essa herança de ideias e valores morais é legitimada por um setor da sociedade que quer impor controle no comportamento sexual, agora justificado por um pseudo-cientificismo. Querem não somente delimitar o que é normal ou anormal no comportamento sexual e no exercício da sexualidade, querem também a prescrição de formas de dominação sobre os corpos propondo abstinência sexual.

Que políticas públicas existem hoje no país nessa área?

Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos contemplam os princípios da diversidade humana, notadamente a sexual, o princípio da saúde, da igualdade, da autonomia e o princípio da integridade corporal, que estão fundamentados nos macroprincípios éticos previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Sob a liderança do movimento de mulheres dos anos 1980, que enfrentava a forma como se dava a assistência à saúde sexual e reprodutiva até então — uma política que reiterava o papel feminino à reprodução, alienando outros aspectos —, em 1983, foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism). A partir disso, a reprodução começou a ser vista como uma decisão individual, que deveria habitar os direitos de brasileiros e brasileiras. Com o Paism, o Estado deixou de exercer o controle da natalidade, começou a definir saúde sexual e reprodutiva como direito fundamental, passando a promover o planejamento familiar e a ser visto como provedor de informações e acesso a insumos, incrementando o princípio da cidadania que só se viabiliza por meio da autonomia. Garantidos por lei, os direitos sexuais dizem respeito ao direito de viver a sexualidade, com respeito pelo próprio corpo e pelo do parceiro; de escolher o(a) parceiro(a) sexual sem medo, culpa, vergonha ou falsas crenças; de escolher se quer ou não ter uma relação sexual, independentemente do fim reprodutivo; de expressar livremente sua orientação sexual; de ter acesso à informação e à educação sexual e reprodutiva; entre outros que possibilitam a expressão livre da sexualidade.

Os direitos sexuais e direitos reprodutivos também foram reconhecidos como direitos de adolescentes, de ambos os sexos, por meio da Conferência Mundial de Populações e Desenvolvimento de Cairo (1994). O Brasil é signatário da Carta de Cairo, aprovou o programa, reconhecendo os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos, comprometendo-se a fazer esforços para sua implementação na lei e na vida da população. Assim, o Estado é responsável por adotar campanhas educativas relativas à saúde sexual e reprodutiva e por inserir ações de educação sobre o tema nos currículos nacionais escolares, de modo a atingir, indistintamente, adolescentes meninas e meninos.

Adolescentes e jovens, sujeitos de direitos, constituem um grupo populacional que exige novos modos de produzir saúde, inclusive a saúde sexual e a saúde reprodutiva. Na perspectiva de direitos humanos, a elevada gravidez na adolescência pode ser considerada, hoje, um ponto de inflexão de como é importante discutir o exercício da sexualidade sob a perspectiva de direitos. Os programas de saúde deveriam promover espaços de discussão sobre como adolescentes e jovens encaram a sexualidade e o fato de serem reprodutivos ou não. Ressalta-se a importância de ações de educação em saúde que ajudem a desconstruir tabus e mitos que impedem um papel mais proativo e corresponsável na prevenção da gravidez na adolescência.

Tomando-se o percurso histórico acerca de sexualidade, sexo e educação sexual, percebe-se atualmente que o imaginário em torno do tema tende a circunscrever-se a uma moral conservadora, delimitando o discurso e o debate a respeito sob o foco dos aspectos biológicos, higienistas e nos comportamentos supostamente aceitáveis. Para avançar, é preciso que sejam superados os discursos moralistas e repressores, discutindo com adolescentes e jovens questões de gênero, namoro, expressões da sexualidade, sexo, saúde sexual e reprodutiva, sempre sob o ponto de vista científico. Ainda assim, seria possível supor que as transformações partam de propostas de educação sexual mais inclusiva, desde que os envolvidos sejam sensibilizados para isso. Portanto, para a educação sexual ser efetiva na efervescência da sexualidade que acompanha a adolescência, é necessário a substituição da religião pela ciência sob uma perspectiva de direitos humanos.

Somos uma sociedade dotada de um aperfeiçoado sistema normativo de proteção a adolescente e crianças, que deve ser mobilizado na luta por políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de atendimento à saúde, incluindo a sexual e reprodutiva, e o acesso à informação baseada em evidências e aos insumos necessários para a efetiva adoção de métodos anticonceptivos.

Que métodos e propostas são mais recomendados e cientificamente reconhecidos como eficazes?

O debate sobre educação em sexualidade na adolescência não é novidade no Brasil. A discussão sobre sexualidade a partir de aspectos biológicos, morais e até religiosos é antigo no país. Desde a década de 1960, há propostas governamentais que restringem a discussão sobre sexualidade na adolescência a esses temas. Contudo, foi na década de 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança de do Adolescente (Eca) que a inserção da sexualidade na educação ganhou força e legalidade. Atualmente, essa discussão ressurge, agora sob outro viés, no qual a legitimidade desse trabalho no ambiente escolar é colocada em xeque, tendo como pano de fundo o embate político e ideológico sob outro aspecto, pois ao invés de reforçar o papel do Estado na construção dos valores sociais, questiona a sua pertinência, em especial da escola. Em caso mais recente, fazendo alusão à preocupação com a formação moral de crianças e adolescentes, houve uma intervenção direta nas propostas do Plano Nacional de Educação (PNE) que estivessem referendadas com os termos gênero e diversidade sexual.

Apesar de crianças e adolescentes serem considerados sujeitos de direito no que diz respeito à igualdade de tratamento, à não discriminação por gênero, orientação sexual, raça ou questões geracionais, à privacidade e à preservação do sigilo, ao direito à educação e à saúde, além da liberdade de pensamento, opinião e expressão, ainda hoje são muitas as situações nas quais há sérias violações, pois não há o entendimento completo de tal status para essas pessoas.

A ideia de participação de crianças, adolescentes e jovens pressupõe que a sociedade, particularmente as escolas, leve em consideração seus desejos e saberes nas ações que digam respeito às suas vidas. Contudo, há maior ênfase na atitude no sentido de proteger, em detrimento à participação, trazendo como consequência a restrição da liberdade e da autonomia de crianças, adolescentes e jovens, princípios básicos para os direitos sexuais.

Inúmeras pesquisas demonstram que programas de educação sexual integral e participativa não promovem o início sexual precoce ou atividade sexual insegura. Políticas baseadas em evidências para enfatizar gênero, poder e direitos humanos nos programas têm maior probabilidade de reduzir as taxas de infecções sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada. Além disso, essas pesquisas demonstram que as normas de gênero são uma “chave” para a compreensão de uma série de desfechos em saúde para adolescentes — o que é endossado pelo Fundo de População das Nações Unidas. Por outro lado, programas que ensinam apenas abstinência não se mostraram efetivos. Em geral, os programas somente de abstinência, também conhecidos como “programas de prevenção de riscos sexuais”, ensinam que a abstinência sexual é a única opção moralmente aceitável para os jovens e a única maneira segura e eficaz de prevenir gravidez não intencional e infecções sexualmente transmissíveis.

Programas de educação sexual integral fornecem informações clinicamente precisas e adequadas à idade sobre abstinência, além de práticas sexuais mais seguras, incluindo contracepção e preservativos, como formas eficazes de reduzir a gravidez não planejada e as infecções sexualmente transmissíveis. Programas abrangentes em educação sexual também geralmente incluem informações sobre relacionamentos saudáveis, habilidades de comunicação não violenta e desenvolvimento humano, entre outros tópicos.

Portanto, conteúdos curriculares para a educação sexual de adolescentes que enfatizam o pensamento crítico sobre gênero e relações de poder — numa abordagem de “empoderamento” — são muito mais efetivos do que os programas convencionais que adotam uma postura de “cegueira de gênero” e abstinência sexual para a redução das taxas de infecções sexualmente transmissíveis e prevenção de gravidez precoce. Esses estudos também indicam que adolescentes e jovens que adotam atitudes mais igualitárias sobre os papéis de gênero, em comparação com seus pares, têm maior probabilidade de postergar o início da vida sexual, usar preservativos e usar contracepção. Também são menos propensos (as) a ter relacionamentos caracterizados como violentos.

Em São Paulo (Linha de Cuidado para a Saúde na Adolescência e Juventude para o Sistema Único de Saúde no Estado de São Paulo. http://www.saudeadolescentesejovens.net.br/) e no Rio de Janeiro (Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (Nesa). http://www.nesa.uerj.br/NESA), há projetos inovadores com experiências exitosas nas ações integrativas em educação sexual e na promoção à saúde de adolescentes, que colocam os direitos sexuais e reprodutivos nas suas diretrizes de ação. Experiências exitosas como estas atuam nos três eixos: educação, saúde e ação comunitária. Essa interdisciplinaridade e intersetorialidade, permitindo a progressiva ampliação da troca de saberes e a articulação intersetorial das ações executadas pelos sistemas de saúde e de educação, com vistas à atenção integral à saúde de crianças e adolescentes, deveriam ser ampliados por todo o país.


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