25/04/2024 - Edição 540

Brasil

O vírus é democrático, mas o Brasil, não

Publicado em 07/05/2020 12:00 -

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O Brasil mostrou porque é um país projetado para matar pobre em pandemia. A vida tratou até de desenhar usando exemplos para aqueles que acreditam que o coronavírus atinge todos de forma igual. O vírus é democrático, mas o Brasil, não.

Nesta semana, enquanto o país batia novo recorde de mortes diárias pelo coronavírus, o IBGE divulgava dados mostrando que nossa concentração de renda continua em patamares pornográficos. Desigualdade que fica ainda mais gritante na epidemia. Por exemplo, em Belém (PA), o poder público abre caminho para empregadas domésticas pobres voltarem ao trabalho antes da hora, enquanto os ricos devem ser os únicos com acesso livre a hospitais – a um avião de distância.

Até o último dia 6, o Brasil registrava 8.536 por covid-19, de acordo com dados do Ministério da Saúde. O número oficial, subdimensionado e atrasado, mostra uma aceleração no ritmo de mortes, principalmente nas periferias das grandes cidades. Também nesta quarta, o IBGE divulgou os números consolidados sobre o rendimento do trabalho em 2019, mostrando que o 1% mais rico ganhou, em média, 33,7 vezes o que recebeu o 50% mais pobre. Ou seja, R$ 28.659 frente a R$ 850.

Também nesta semana ficamos sabendo que o prefeito de Belém (PA), Zenaldo Coutinho (PSDB), anunciou que a atividade de empregada doméstica vai ser considerada essencial durante a pandemia. Elas podem, portanto, serem chamadas para voltar a trabalhar nas casas de seus patrões em meio ao pico da infecção.

Na mesma Belém de Coutinho, reportagem de Aiuri Rebello, do UOL, revelou que aumentou a procura por fretamento para o serviço de UTI aérea para deslocar pacientes em direção a São Paulo e Brasília diante do colapso do sistema de saúde local. Manaus – que está enterrando mortos em valas coletivas com a ajuda de retroescavadeiras – vivencia a mesma tendência. A maior parte desse tipo de fretamentos ainda é via Sistema Único de Saúde, mas os mais ricos e as empresas em que trabalham têm usado o serviço, que aumentou de 30% a 100%.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua, do IBGE, também informou que a parcela dos 10% que ganham mais detém 42,9% da massa de rendimentos, enquanto que os 10% mais pobres contam com apenas 0,8% dessa massa. O Nordeste (R$ 569) e o Norte (R$ 633) são as regiões com as menores médias de rendimento para a metade da população mais pobre.

Um voo entre Belém a Brasília de uma UTI com asas custa a partir de R$ 40 mil – o equivalente a 63 meses de ganhos do 50% mais pobre no Norte. Já de Manaus a São Paulo, o preço é a partir de R$ 80 mil – ou 10 anos e seis meses de trabalho de pobre. Isso sem incluir a fatura do hospital. Sem o SUS, só quem tem.

O prefeito de Belém afirmou que categorizar o trabalho doméstico como essencial visa a atender "pessoas que precisam, pela necessidade de trabalho essencial, ter alguém em casa". Essa é a justificativa que foi historicamente usada para que as empregadas domésticas não contassem com os mesmos direitos de outros trabalhadores: a classe média não pode pagar por isso. Mantem-se dessa forma, nas costas de mulheres negras e indígenas pobres o custo de reprodução da sociedade. Desde a senzala.

Ressalte-se que o então deputado federal Jair Bolsonaro votou contra a PEC das Domésticas, que estendeu direitos de outros trabalhadores a essa categoria, em 2013.

Organizações de trabalhadores alertaram o Congresso Nacional para não aprovar uma emenda constitucional para limitar o crescimento de gastos públicos em saúde, uma vez que a situação era gritante e ficaria mais ainda. Alguns deputados colocaram na mesa a alternativa de taxar dividendos recebidos de grandes empresas para compensar os recursos para a área. O andar de cima riu. Agora, ele sai voando para outras cidades diante da falta de estrutura.

Como fica o pobre agora, sofrendo as consequências de uma política que privilegiou a concentração de rendas em detrimento à melhoria nos serviços públicos e gratuitos? Como diria o personagem Justo Veríssimo, do saudoso Chico Anísio, "que se exploda".

A primeira vítima fatal de covid-19 no Rio de Janeiro foi uma empregada doméstica pobre, moradora de Miguel Pereira, que percorria semanalmente 120 quilômetros até a casa em que trabalhava no rico Leblon. Sua empregadora havia visitado a Itália e aguardava o resultado do exame para coronavírus – que acabou dando positivo. "A patroa não avisou para ela que achava que estava doente", disse o irmão da vítima à Mariana Simões, da Agência Pública. Em outras palavras, não a reconheceu como ser humano.

A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.

O triste é que, para muitos, nada disso importa. Preferem um não-país do que dividir custos em épocas de paz. E na época da "guerra", é cada um por si e Deus acima de Todos. A desigualdade social, que seria motivo de vergonha em qualquer lugar civilizado, aqui é razão de orgulho. O importante para uma parte da população, tanto a que está no topo quanto a que sonha em estar lá, não é reduzir essa diferença, mas garantir que ela seja devidamente glamourizada e a ascensão social, mitificada. Assim, o indivíduo passa a não desejar justiça social coletiva e redistribuição, mas um lugar ao sol para si mesmo.

E cai em um fatalismo, comprando discursos de que essa pandemia do diabo derrubaria o sistema de saúde de qualquer jeito. A questão é que, com mais recursos e uma estrutura melhor, seria possível empurrar esse colapso e salvar uma quantidade maior de vidas. Desde que elas importassem realmente.

O problema não é alguém ter um apartamento de 400 metros quadrados enquanto outro mora em um de 40. O que desconcerta é uma sociedade que acha normal um ter condições para desfrutar de um apê de 4 mil metros quadrados enquanto o outro apanha da polícia para manter seu barraco em uma ocupação de terreno, no Grajaú, em Eldorado dos Carajás, onde for.

Da mesma forma, o absurdo não é pessoas que podem ter acesso a bons tratamentos em outras cidades, mas isso acontecer enquanto uma parte da sociedade está esperando para morrer em casa pela falta de leitos em hospitais públicos. Ou indo para o sacrifício na casa de terceiros em nome da ordem das coisas.

600 mortos, 600 reais

Também nesta semana, o país viu cenas de filas formando-se na frente de agências da Caixa para o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600,00 a trabalhadores informais e por conta própria. O planejamento torto do governo federal transformou o processo de recebimento de uma pequena boia de salvação durante a pandemia em uma roleta russa de infecção pelo coronavírus.

O que uma situação tem a ver com o outra? A forma como está sendo feita a segunda deve piorar os números da primeira.

A Caixa ampliou o horário de funcionamento para o pagamento do auxílio. Ajuda, mas ainda é pouco, pois são milhões. Pessoas que deixaram de trabalhar porque quarentenas foram corretamente impostas a fim de reduzir a velocidade de contaminação e o colapso do sistema de saúde estão sendo contaminadas ao receber a renda básica para sobreviver durante a quarentena. Com isso, a solução se torna parte do problema, desperdiçando vidas, tempo e dinheiro.

Ampliar o sistema para outros bancos e fintechs para desconcentrar é algo que poderia ter sido feito, mas faltou informação sobretudo. Muita gente foi para as filas sem precisar ter ido.

Vemos na internet representantes da elite paulistana festejando que o pior já passou (alguns festejando literalmente, na maior cara de pau), enquanto bairros pobres, com incidência de favelas, cortiços ou autoconstrução precária registram dez vezes mais mortes que os bairros centrais – como é o caso de Sapopemba, em São Paulo. Não admira que carreatas exijam formas de trazer, o mais rápido possível, a força de trabalho barata de volta para seus negócios.

A tragédia poderia ser pior se não houvessem medidas de isolamento social. E poderia ser mais suave se a população não tivesse ido à rua sem precisar, alcançando 70% de quarentena. Muitos, contudo, atenderam ao canto do cisne do presidente da República – que chama todos a voltarem às suas vidas normais, atestando que quarentena é inútil. Ele, que chegou a afirmar que o pior da pandemia já havia passado, não se importa se os mortos por dia são 100, 200, 600 ou 1000.

Acredita que, seja qual for a contagem, os corpos viram pavimento de seu caminho para a reeleição. É só encontrar a mentira adequada para cada patamar. Da histeria à gripezinha, do "e daí?" à inutilidade da quarentena.

A grande pergunta é o que o naco da parcela humilde da população que o apoia, que está em crescimento, segundo o Datafolha, vai fazer quando não houver mais hospitais e cemitérios disponíveis. Considera-lo o presidente dos R$ 600,00 (uma farsa, aliás, porque foi graças ao Congresso Nacional) ou o presidente dos 1000, 1600 mortos por dia?


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