29/03/2024 - Edição 540

Poder

STF freia a tentativa de Bolsonaro de controlar a PF. Mas, até quando?

Publicado em 01/05/2020 12:00 -

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Jair Bolsonaro ameaçou, em alto e bom som e com orgulho indisfarçado, descumprir a liminar do ministro Alexandre de Moraes que impediu a nomeação de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal e insistir na indicação. Ameaçava, com isso, cometer um crime de responsabilidade.

O artigo 4º da lei do impeachment (lei 1079/65) lista os crimes de responsabilidade que podem ser cometidos pelo presidente da República, ministros de Estado, ministros do STF ou o procurador-geral da República. O último é justamente atentar contra “o cumprimento das decisões judiciárias”.

Bolsonaro tentou justificar que poderia descumprir a decisão de Moraes por ela ser “incoerente”, uma vez que o ministro impede a posse de Ramagem na PF, mas não impede que ele prossiga na Abin. Aqui cabem duas análises:

1- na liminar, Moraes fala da diferença entre a PF e órgãos de inteligência. “Tais acontecimentos, juntamente com o fato de a Polícia Federal não ser órgão de inteligência da Presidência da República, mas sim exercer, nos termos do artigo 144, parágrafo 1º, VI da Constituição Federal, com diversas investigações sigilosas, demonstram, em sede de cognição inicial, estarem presentes os requisitos para a concessão da liminar”, diz a decisão do ministro.

2 – o mandado de segurança decidido por Moraes liminarmente NÃO QUESTIONA a presença de Ramagem na Abin. Caso entre alguma ação nesse sentido, ou a AGU faça alusão à suposta “contradição” no recurso, Moraes pode até analisar esse aspecto cobrado pelo presidente, o que tiraria seu protegido inclusive da Abin.

Portanto, não seria simples cumprir a (mais nova) bravata do presidente. Seus auxiliares sabem disso. Tanto que desaconselharam o presidente, na véspera, a criar uma “crise institucional”, como ele mesmo revelou à porta do Alvorada.

A tática do presidente já se tornou um clichê: depois de esticar a corda, o presidente recua e adota um tom manso. No caso de Alexandre Ramagem na PF, o presidente parece ter sido dissuadido de afrontar a liminar de Alexandre de Moraes, porque recuou da bravata na tradicional live noturna das quintas-feiras.

Além do alerta dos assessores, Bolsonaro deve ter visto que seus ataques a Alexandre de Moraes renderam desagravos de vários ministros do STF. Não foi o único recado a vir da corte: por unanimidade, os ministros confirmaram liminar do mesmo Moraes sustando trechos de uma medida provisória que permitia ao Executivo não atender a pedidos de dados pela Lei de Acesso à Informação enquanto durar a pandemia. Ainda na quinta-feira, Gilmar Mendes negou liminar pedida por Eduardo Bolsonaro para impedir o prosseguimento da CPMI das Fake News. O cerco ao presidente se fecha na corte, que tem tido cada vez mais decisões unânimes, antes raras.

Bolsonaro não se ateve a criticar Moraes por sua decisão. Afrontou o ministro também insinuando que sua indicação ao STF só ocorreu por sua “amizade” com Michel Temer. O ataque, além de reduzir os reconhecidos conhecimentos jurídicos do magistrado, coloca todos os outros dez ministros da Corte no mesmo barco.

Pela lógica de Bolsonaro, pode-se dizer que os demais ministros também foram levados ao tribunal pelo coleguismo com algum presidente.

Bolsonaro ficará alarmado quando descobrir de quem o presidente da Corte, o ministro Dias Toffoli, foi amigo no passado. Ou o ministro Edson Fachin, ou Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes… Todos os ministros, afinal.

Um presidente da República deveria saber que amizades não definem a atuação de um ministro do STF. Lula acreditava nisso e veja para onde Joaquim Barbosa mandou os corruptos do mensalão, todos amigos do petista.

Para chegar ao STF, cada um dos ministros precisou demonstrar notório saber jurídico. O modelo brasileiro de escolha dos magistrados dos tribunais há tempos expõe juristas ao lobby político para a promoção. Mas o sistema que submete, também garante plena independência ao magistrado após a posse.

“Depois que a toga cobre os ombros, apaga-se o passado. Zera o jogo”, costuma dizer um ex-ministro da Corte.

Quem na cadeira do STF chega, torna-se defensor e imagem da melhor doutrina jurídica da Nação. É isso que o presidente não entende e tratou de atacar nesta manhã, na imprensa. Ao fugir do questionamento técnico à decisão de Moraes, Bolsonaro praticamente inviabilizou o plano para tentar colocar seu amigo, o delegado Alexandre Ramagem, no comando da Polícia Federal.

Deputados apavorados

O medo bateu forte nos parlamentares bolsonaristas que estão na mira do Supremo Tribunal Federal. A lista ainda é mantida em sigilo pelo ministro Alexandre de Moraes, mas a decisão tomada por ele de suspender a posse do amigão de Jair Bolsonaro na Polícia Federal deixou as excelências bolsonaristas apreensivas.

Fontes do STF e da PF ouvidas pela coluna Radar, da revista Veja, disseram que a trava na nomeação de Alexandre Ramagem ajudou os investigadores a ganharem tempo para prepararem o bote nos aloprados que financiam, operam e dão sustentação política ao esquema de fake news a partir do gabinete do ódio. Os próximos dias serão inesquecíveis para essa bancada bolsonarista no Congresso.

Interlocutor direto de Jair Bolsonaro na Câmara, o deputado Cabo Junio Amaral (PSL-MG) é um dos principais alvos do inquérito aberto no STF para investigar os atos contra democracia. Investigadores dizem que há “indícios veementes de autoria” contra Junio, que não está sozinho na mira da Procuradoria-Geral da República.

Outro conhecido nome do bolsonarismo em situação igualmente grave nas investigações é do Rio de Janeiro. Subcelebridade política desde que quebrou a placa de Marielle Franco, Daniel Silveira (PSL) vem capturando as atenções dos investigadores, que passaram a monitorar seus passos nas redes com especial interesse.

“O caso dele é de prisão preventiva. Eu realmente acho que esse cara quer ser preso”, diz um investigador, observando que Silveira continua agindo nas redes mesmo depois da abertura do inquérito no STF, onde ameaça as instituições e chega a nominar autoridades.

Análise

O presidente da República indicou um "brother" de seus filhos para ocupar o cargo de diretor-geral da Polícia Federal, que, não por um acaso, está investigando exatamente seus filhos em um processo sobre difusão de notícias falsas e ataques a autoridades. Ao fazer isso, nem corou. Pelo contrário, o próprio Jair Bolsonaro defendeu o seu "direito" de ter acesso a informações privilegiadas da PF, horas após Sergio Moro acusá-lo de interferência política e pedir demissão.

Não só. No mesmo dia em que divulgou o nome de Alexandre Ramagem para a chefia da Polícia Federal, também avisou que "vai ser reaberta a investigação [sobre a facada que sofreu na campanha de 2018]". Discordando da conclusão do inquérito da gestão de Maurício Valeixo, que apontou que Adélio Bispo de Oliveira tem problemas mentais e agiu como lobo-solitário, Bolsonaro quer que a instituição lhe traga uma conspiração de qualquer jeito.

Um dia após o presidente anunciar essa Festa da Fruta Institucional, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem. O mandado de segurança, que atendeu a um pedido do PDT e alega "abuso de poder por desvio de finalidade", foi uma das várias ações judiciais movidas contra a nomeação.

Ao fazer isso, Moraes acabou por validar a acusação do ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública, de que o presidente articulava para que a PF agisse como polícia política ou guarda de segurança da família. Em sua decisão, cita que Sergio Moro afirmou o presidente lhe disse que pretendia nomear o amigo da família para que pudesse "ter 'interferência política' na instituição, no sentido de 'ter uma pessoa do contato pessoal dele', 'que pudesse ligar, colher informações, colher relatórios de inteligência'".

Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro vem engolindo instituições de monitoramento e controle para garantir a própria sobrevivência e a de seus filhos. Passou por cima da Receita Federal e do Coaf, colocou um aliado na Procuradoria-Geral da República. Interferiu na Polícia Federal, com a ajuda do próprio Moro, aliás, quando foi citado pelo porteiro-testemunha na investigação do caso Marielle Franco.

Bolsonaro tem sido contido, aqui e ali, pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal. Mas, até agora, nada que fizesse com que repensasse seu comportamento pouco republicano quanto às instituições e dignificasse o cargo que ocupa. Em outras palavras, enquanto o país vinha assistido a uma sequência de reações frouxas, Bolsonaro ia testando os limites dos Três Poderes.

O "E daí? Lamento. Quer quer eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre" que Bolsonaro soltou, no último dia 28, sobre o recorde diário do número de mortes pela pandemia de coronavírus, também já havia sido pronunciado para as altas taxas de desemprego no ano passado. E tem o mesmo DNA do "foda-se" do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que virou mote de manifestação em nome do AI-5, do fechamento do Congresso e da prisão de ministros do Supremo. O "E daí?" também veio à tona quando o próprio presidente saudou atos que pediam um novo AI-5 nos dias 19 de abril e 15 de março. E quando, em outubro do ano passado, postou um vídeo chamando o STF e outras instituições de hienas. Ou quando Eduardo Bolsonaro, durante a campanha eleitoral de 2018, disse que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF.

O projeto de país de Bolsonaro é um governo populista e autoritário. Nesse plano, as instituições que não podem ser domesticadas, são consideradas inimigas.

As instituições que deveriam proteger a elas mesmas e à democracia frente aos ataques perpetrados pelo clã têm focado suas ações em comentários e notas indignadas ou em respostas pontuais de seus membros. Parecem temer a fortaleza bolsonarista de um terço da população.

A decisão de Alexandre de Moraes – ironicamente, um dia após a fiel escudeira do presidente, deputada Carla Zambelli (PSL-SP), insinuar uma ligação do ministro com o PCC – pode ser uma linha traçada no chão.

Espera-se que ministros do Supremo, deputados federal e senadores cumpram sua função de fiscalizar e monitorar o Executivo. Isso não passa por firmar pactos e acordos em nome da governabilidade, como já foram propostos inclusive pelos presidentes dos Poderes, mas atuar conforme a Constituição Federal, contendo tentativas de transformar o país em um puxadinho do condomínio Vivendas da Barra e de todos os seus ilustres moradores.

Vivemos um vácuo de liderança no enfrentamento a uma pandemia mortal, o que está levando à morte milhares de brasileiros. Espera-se que, nesse contexto e mesmo diante de pressão, os ministros do STF não apaguem essa linha com os pés, fazendo de conta que nada aconteceu.


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