25/04/2024 - Edição 540

Especial

Governo afrouxa controle de armas e munições

Publicado em 01/05/2020 12:00 -

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Na manhã do último dia 28, o presidente Jair Bolsonaro deixou o Palácio da Alvorada e foi a um estande de tiro. Antes de sair, falou com apoiadores que ficam na porta do palácio e defendeu a ampliação da posse e do porte de armas para os brasileiros. "Nós ampliamos a portaria, mas ainda não temos a maioria no Congresso para facilitar a posse e o porte de armas". 

A portaria a que o presidente se refere é a 1.634/2020, editada no último dia 23 e que permite ao cidadão comum com porte de arma para defesa pessoal pode comprar até 600 munições anuais. Antes disso, o limite era de 50. Além disso, somando o calibre de tiro já liberado pelo governo federal, um único cidadão pode comprar até 6 mil munições por ano.

A portaria foi elaborada por Sergio Moro, ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública, e o general de exército Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa.

No último dia 17, Bolsonaro revogou as portarias do Comando Logístico (Colog) nº 46, 60 e 61, de março de 2020, que tratavam do rastreamento, identificação e marcação de armas e munições.

A Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão (PFDC) pediu à Procuradoria da República do Distrito Federal que apure a revogação. O pedido acontece após a Procuradoria receber respostas do Exército a questionamentos que havia feito. 

No ofício, enviado no último dia 29 à PFDC, o Comando do Exército defendeu que a revogação das normativas busca aprimorar pontos de difícil compreensão pelo público. "A afirmação, no entanto, não conta com indicação de quais seriam esses pontos e, especialmente, sua importância estrutural para fundamentar a revogação integral dos três atos normativos”, diz a Procuradoria.

Segundo a PFDC, o Comando do Exército afirmou que a revogação foi impelida por “inúmeros questionamentos e contrapontos levantados por diversos setores da sociedade, especialmente nas mídias sociais, e da Administração Pública”.

A partir dessa resposta, a PFDC pediu à Procuradoria da República do DF, que já conta com procedimento administrativo sobre a matéria, que apure o caso, sob o argumento de que a ação demanda apuração mais profunda sob as perspectivas da violação de direitos fundamentais, “em razão do princípio da vedação ao retrocesso social e do impacto dessa revogação para a segurança dos cidadãos”. 

Reação

A suspensão desses mecanismos de controlar a circulação de armamentos, afirmou Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, fortalecem as milícias e o desvio de armas. “Quem faz as atividades dentro da lei, que pratica o tiro esportivo, não teria motivos para se preocupar com o aumento da rastreabilidade, com uma melhoria da marcação. Essa medida atinge e prejudica quem faz atividade ilegal”, declarou.

Natália Pollachi, coordenadora do Sou da Paz, destaca que, até 2019, o limite era de 50 munições de uso permitido por ano, uma quantidade condizente de uso só para casos excepcionais, que é o que está previsto na categoria de posse de arma para legítima defesa. “Há 3 meses, em janeiro, o governo aumentou esse limite para 200 munições. Agora, aumenta para 600 sem qualquer justificativa técnica”, explica.

“Isso é absurdo, porque essa categoria só prevê o uso de legítima defesa, não é categoria de atirador esportivo. Tudo isso se torna mais grave com as revogações que o governo fez das portarias que o Exército tentava implementar melhorias na rastreabilidade de armas e munições”, completa Pollachi.

Em nota de repúdio, o Instituto Sou da Paz denunciou que a única função da nova portaria “é facilitar de forma irresponsável e descontrolada a compra de munições por cidadãos”.

Para o Sou da Paz, em um país com aproximadamente 50 mil mortes cometidas com armas de fogo por ano e que atravessa uma pandemia que já tirou a vida de quase 3 mil brasileiros, a medida é “um ato completamente descolado da realidade, das evidências científicas e também das prioridades da maioria da população que se posiciona contrária à ampliação do acesso a armas”.

O governo federal, diz a nota, deveria “concentrar todos os seus esforços na luta contra a pandemia do coronavírus e não agradar a indústria de munições e grupos minoritários que advogam pelo total descontrole da política de armas”.

A carta também relembrou outras medidas feitas em um ano e meio de Governo Bolsonaro. “O presidente já afrouxou as regras de compra e de porte de armas de fogo, ampliou em quatro vezes a potência das armas que podem ser adquiridas por civis e agora aumenta pela segunda vez e de forma irresponsável a cota anual de compra de munições por arma”.

“Assim como nas outras medidas, a portaria é errática e sem embasamento, pois uma mudança no limite de munições já havia sido feita há menos de três meses e, assim como na portaria anterior, não houve justificativa para fundamentar o motivo e a necessidade da alteração”, defendeu a ONG.

MPF aponta interferência de Bolsonaro no Exército

Sob suspeita de ingerência na Polícia Federal, o presidente Jair Bolsonaro entrou agora na mira do Ministério Público Federal (MPF) por indícios de violar a Constituição ao interferir em atos de exclusividade do Exército. Procuradores abriram dois procedimentos de investigação para apurar a ordem dada por Bolsonaro ao Colog revogando três portarias publicadas entre março e abril sobre monitoramento de armas e munições. 

A procuradora regional da República Raquel Branquinho aponta a possibilidade de Bolsonaro ter agido para beneficiar uma parcela de eleitores e que não há espaço na Constituição “para ideias e atitudes voluntaristas” do presidente, ainda que pautadas por “bons propósitos”. O desdobramento do caso pode levar a uma ação de improbidade na Justiça Federal ou à abertura de um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF).

As portarias revogadas pelo comandante do Colog, general Laerte de Souza Santos, por exigência de Bolsonaro, foram elaboradas em conjunto por militares, policiais federais e técnicos do Ministério da Justiça. “Determinei a revogação das portarias (…) por não se adequarem às minhas diretrizes definidas em decretos”, escreveu Bolsonaro no Twitter em 17 de abril.

Essas portarias estabeleciam o controle, rastreabilidade e identificação de armas e munições importadas e fabricadas pela indústria nacional, sob a finalidade de atividades esportivas, de colecionador e também para abastecer os quartéis. Na avaliação dos procuradores, ao revogá-las, o governo facilita o acesso do crime organizado a armas e munições desviadas. “A cidade do Rio de Janeiro é a face mais visível dessa ausência de efetivo controle no ingresso de armamento no País”, observou Raquel Branquinho. 

Ex-braço direito da então procuradora-geral da República Raquel Dodge na área criminal e uma das integrantes do grupo escolhido pelo atual chefe do MPF, Augusto Aras, para atuar na Lava Jato, Raquel Branquinho é considerada uma procuradora linha dura, conhecida por seu trabalho em processos importantes, como o mensalão.

As normas estabeleciam diretrizes para identificação de armas de fogo, bem como para a marcação de embalagens e cartuchos de munições. Umas das regras revogadas, por exemplo, determinava que armas apreendidas pela Justiça cuja identificação tenha sido suprimida ou adulterada poderiam ganhar uma nova numeração.

O pedido de investigação foi enviado por Raquel Branquinho no dia 20 deste mês ao chefe da Procuradoria da República no Distrito Federal, Claudio Drewes José de Siqueira. No ofício, a procuradora argumenta que Bolsonaro fere princípios constitucionais.

“Ao assim agir, ou seja, ao impedir a edição de normas compatíveis ao ordenamento constitucional e que são necessárias para o exercício da atividade desempenhada pelo Comando do Exército, o Sr. Presidente da República viola a Constituição Federal, na medida em que impede a proteção eficiente de um bem relevante e imprescindível aos cidadãos brasileiros, que é a segurança pública, e possibilita mecanismos de fuga às regras de controle da utilização de armas e munições”, escreveu Raquel Branquinho.

Agora, o MPF vai avaliar os motivos da conduta de Bolsonaro de determinar a derrubada das portarias do Exército. Numa avaliação inicial, Raquel Branquinho entendeu que a finalidade da revogação das portarias pode ter sido a de “atender uma parcela de eleitores.” 

Procuradores ouvidos sob a condição de anonimato observaram que o texto de cancelamento das portarias, publicado no Diário Oficial da União, no dia 17, não apresentou motivação. “Caso o Exército não apresente justificativas plausíveis, que não seja uma postagem do presidente no Twitter, tudo fica ainda mais grave”, disse um procurador.

A tentativa de ingerência de Bolsonaro num órgão de Estado foi o argumento usado pelo ex-ministro Sérgio Moro para pedir demissão no último dia 24. O ex-juiz da Lava Jato acusou o presidente de tentar interferir politicamente ao trocar o delegado-geral da Polícia Federal e de cobrar acesso a relatórios sigilosos de inteligência.

Ao analisar o caso envolvendo o Exército, Raquel Branquinho diz “não restar dúvidas” da competência da Força na fiscalização de armas e munições. A procuradora ressalta, ainda, que a atitude de Bolsonaro nesse caso de derrubada das portarias “representa uma situação extremamente grave” e que tem o potencial de agravar a crise de segurança pública vivenciada no País. Outro risco, argumenta, é que organizações criminosas podem ser “fortalecidas na sua estrutura operacional, abastecidas por armas e munições, cujas origens são desconhecidas pelo Estado”.

Outra frente

Além do procedimento aberto a pedido de Raquel Branquinho, uma outra frente para apurar interferência de Bolsonaro no Exército foi iniciada em conjunto pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e pela Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional (7.ª CCR). Os dois órgãos são vinculados diretamente à chefia da Procuradoria-Geral da República (PGR), mas podem abrir processos sem passar pelo comando do órgão.

Neste procedimento, os procuradores Deborah Duprat e Marlon Alberto Weichert, dos Direitos do Cidadão, e Domingos Sávio Dresch da Silveira, da 7.ª CCR, pediram, no dia 20 último, explicações ao Comando Logístico do Exército para prosseguirem no trabalho. Eles querem saber se o órgão vai admitir a suposta ingerência do presidente. No ofício ao general Laerte de Souza Santos, comandante Logístico do Exército, os procuradores solicitam ainda o envio da cópia integral do procedimento de origem da portaria que revogou os atos.

Os procuradores ressaltam que as portarias revogadas concretizavam os princípios estabelecidos pelo Estatuto do Desarmamento e seus regulamentos e “preenchiam relevante lacuna” na regulamentação do rastreamento de produtos controlados pelo Exército. “Essas providências, imprescindíveis para a fiscalização do uso de armas de fogo e para a investigação de ilícitos com o emprego de armas de fogo, eram reclamadas por especialistas em segurança pública e também pela Procuradoria Federal”, diz trecho do ofício.

Visavam à segurança nacional, diz general responsável por normas revogadas

Responsável pelas portarias sobre armas e munições revogadas pelo presidente, o general de Brigada do Exército Eugênio Pacelli Vieira Mota afirmou, em carta, que as normas visavam à segurança nacional e não atenderam “interesses pontuais” do setor armamentista. 

O general deixou o cargo de diretor de fiscalização de produtos controlados uma semana depois de os atos terem sido publicados pelo Exército. Durante o período em que esteve na vaga, ele chefiou o grupo que elaborou os textos. 

A carta do general foi entregue aos seus subordinados e superiores na sua despedida. O documento foi visto como uma demonstração de que as normas feriam os interesses dos eleitores do presidente. “… Desculpe-me se por vezes não os atendi em interesses pontuais… Não podia e não podemos: nosso maior compromisso será sempre com a tranquilidade da segurança social e capacidade de mobilização da indústria nacional”, escreveu o general em referência a empresários do setor.

Na carta, Pacelli ressaltou “conquistas” relacionadas à modernização no controle de armamentos durante sua gestão e citou as portarias. “Foram quatro importantes decretos presidenciais a serem normatizados”, afirmou o general. Pacelli não faz qualquer agradecimento ao seu ex-chefe, o general Laerte de Souza Santos, que assinou a revogação das portarias, por determinação de Bolsonaro.

O Centro de Comunicação Social do Exército ressaltou que a exoneração do oficial não ocorreu por pressão política ou interferência da Presidência. A assessoria destacou que a mudança no cargo é uma “atividade de rotina”, feita regularmente para promoção de generais. 

Pacelli entregou o cargo numa “cerimônia de passagem de posse”, no último dia 16. No dia seguinte, Bolsonaro foi ao Twitter para informar que tinha determinado o cancelamento das portarias elaboradas pelo grupo do general. A ordem do presidente de revogar as normas foi aceita pelo Colog no dia 18.

Havia dois meses que Pacelli sofria pressão nas redes sociais de grupos armamentistas por conta da publicação das portarias. Clubes de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs), além de páginas no Facebook que vendem armas, vinham ironizando a atuação do general por causa das portarias. Esses grupos, segundo procuradores ouvidos pelo Estado, cobram para que o presidente interfira em funções que, por lei, são atribuídas ao Exército.

A investigação sobre interferência de Bolsonaro no Exército aumentou o desgaste do chefe do Planalto no Congresso e a pressão pela abertura de um processo de impeachment. Deputados do PSB avaliam incluir a acusação por ingerência no Exército no pedido que haviam por ingerência na PF. 

A quem interessa derrubar portarias do Exército sobre armas e dobrar a munição de civis?

Não são mais apenas os próprios militares e a Polícia Federal que estranham a canetada do presidente Jair Bolsonaro derrubando as portarias do Exército sobre controle de armas de civis. Agora, o MP quer explicações e a oposição inclui mais essa decisão do presidente nos pedidos de impeachment que se multiplicam. Bolsonaro vai empilhando, assim, a mesma pergunta: Por quê?

Por que a demissão do diretor-geral da PF agora, em meio ao caos na saúde, na economia, na política? Por que empurrar porta afora o ministro mais popular do governo? Por que bater de frente com o ministro da Saúde até demiti-lo na hora decisiva da pandemia? Por que confrontar a OMS, epidemiologistas e o mundo inteiro com as cenas patéticas e infantis contra o isolamento social? E por que, afinal, o presidente da República foi prestigiar manifestações pedindo golpe militar? Justamente diante do Quartel-General do Exército?

Assim como no pronunciamento do último dia 24 ele não respondeu objetivamente a nenhuma das acusações que o ex-juiz e agora também ex-ministro Sérgio Moro acabara de lhe fazer, Bolsonaro não responde, não explica e não dá o sentido de suas ações mais absurdas. Por isso, ele, seu governo e o País estão envoltos numa nuvem de incertezas.

É aí que entra a decisão voluntariosa e mal (ou não) explicada de suspender – aliás, pelo Twitter – as três portarias do Exército. Além de, cinco dias depois, também como registrado na coluna de sexta-feira, mais do que dobrar as munições de cada arma de civis por mês. Por que derrubar as portarias? E por que aumentar de 200 para 550 as munições?

Bolsonaro e o governo não respondem, mas militares do Exército, policiais federais e assessores do Ministério da Justiça não gostaram, juristas e especialistas em Defesa acharam estranho. E todos eles dizem exatamente, claramente, o “porquê”: porque, na opinião deles, quem saiu no lucro, lépidos e fagueiros, foram o crime organizado e as milícias. Mais armas sem controle de entrada, sem rastreamento, sem fiscalização e com muito, mais muito mais munição legalmente permitida… A quem interessa?

É claro que Bolsonaro nunca escondeu, e até fez disso discurso prioritário de campanha, seu amor e o amor dos filhos pelas armas e que muitos neste país praticam tiro desportivo ou são colecionadores. Mas – e aí vem novamente o por quê? – derrubar as três portarias do Exército foi só para agradá-los? E mais do que dobrar a munição mensal por arma também?

A procuradora Raquel Branquinho alega que o presidente “viola a Constituição” e faz uma referência particular à base da família Bolsonaro. “A cidade do Rio de Janeiro é a face mais visível dessa ausência de efetivo controle no ingresso de armamento no País”, diz ela em ofício ao qual o repórter Patrik Camporez teve acesso e que foi manchete do jornal O Estado de São Paulo no ú8ltimo dia 27.

Pois é… Rio, armas, controle, munição… Isso tudo vai se embolando com a demissão de Valeixo da PF, a queda de Moro e as acusações que o ministro fez ao sair, de que o presidente queria ter acesso direto ao diretor-geral, a superintendentes e a relatórios de inteligência da PF. E ele, o ministro, também citou especificamente o Rio, neste caso, o Estado do Rio.

Moro, Mandetta e Valeixo saem por uma porta do governo e o Centrão entra pela outra, trazendo, entre outros, Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto. Isolado no Supremo e na cúpula do Congresso, perdendo apoios no empresariado e nas finanças e enfrentando uma guerra inglória na internet com Moro, Bolsonaro corre o risco de se apoiar só em dois pilares: os militares e os líderes do Centrão, que não têm nada a ver. Quem diria? Aliás, por quê?


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