29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Próximas semanas serão de uma disputa entre Moro e Bolsonaro por parte do eleitorado bolsonarista’, afirma Miguel Lago

Publicado em 27/04/2020 12:00 -

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Ainda que enfraquecido pelo desgaste no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus e com baixas expressivas no governo, o presidente Jair Bolsonaro não é suscetível a um impeachment, na avaliação do cientista político Miguel Lago, diretor-executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. O especialista afirma que o processo de fidelização do eleitorado pelas redes sociais blinda o ex-capitão do Exército de um afastamento do Palácio do Planalto. 

“Não acho que seja viável um impeachment de um presidente que tenha 30% de popularidade”, afirma em referência aos dados mais recentes do Datafolha. De acordo com a pesquisa, a aprovação do presidente na gestão da atual crise ficou em 33% e se mantém estável desde o início da pandemia. Em seu ponto mais baixo, Dilma Rousseff registrou 8% de popularidade. Seu sucessor, Michel Temer, chegou a 3%.

Esse apoio bolsonarista é mais difícil de ruir porque não é construído por critérios de avaliação de que o governo está fazendo um bom trabalho, mas por um processo de convencimento por meio das redes sociais ao longo dos anos. “O que o Bolsonaro faz brilhantemente é que ele consegue transformar esse seguidores num canal para ele. É como se ele criasse a TV Bolsonaro, como se ele tivesse o canal estatal soviético na mão dele para o público dele. O trabalho que o Bolsonaro faz é de uma fidelização tão grande que vai ‘descredibilizar’ todos atores que possam vir a criticá-lo”, analisa Lago.

Esses atores incluem de partidos políticos à imprensa e uma dinâmica que isola o eleitorado progressivamente. É a ideia da bolha ideológica, que pensa parecido com você. “O Bolsonaro é o denominador comum de várias bolhas, é como se ele fundisse essas bolhas e criasse um canal, e todas essas informações passam por ele para esse grupo. E ele vai distanciando cada vez mais esse grupo de outros canais de informação e de formação que eles poderiam ter e vai monopolizando essa audiência”, completa o cientista político.

A entrevista de Lago foi concedida antes de o ministro Sergio Moro anunciar sua demissão do Ministério da Justiça e acusar Bolsonaro de interferir nas investigações da Polícia Federal. Questionado no último dia 24 se esse fato novo poderia erodir a popularidade do presidente, Lago confirmou a possibilidade e disse que as próximas semanas serão de uma disputa entre Moro e Bolsonaro por parte do eleitorado bolsonarista. “Se a popularidade do Bolsonaro cair pela metade, talvez existam mais condições de um impeachment. Mas sempre devemos lembrar que a base mais fiel ao bolsonarismo são os cidadãos brasileiros armados: os policiais, os militares de baixa patente, e todos os portadores de armas”, argumenta.

 

No dia seguinte à manifestação em frente ao quartel-general do Exército, o presidente repetiu o roteiro de minimizar o discurso autoritário e dizer que defende a democracia. O quanto esse ciclo dificulta a preservação da democracia no Brasil? O que é preciso para dizer que vivemos ou não uma democracia? Fechar o Congresso?

O coronavírus dá uma oportunidade muito grande para esses governos intensificarem a erosão democrática porque, quando a gente está numa situação excepcional, você toma medidas excepcionais para combater a crise. Você acaba dando legitimidade para uma série de tomadas de decisão que em tempos normais não seriam apoiadas porque tem de combater uma pandemia.

Na Venezuela, que já passou por esse processo de erosão democrática nos últimos anos, o Nicolás Maduro aproveitou o coronavírus para fazer uma quarentena super-rápida e usar esse momento como oportunismo para intensificar o avanço autoritário dele. A gente viu a mesma coisa acontecer com o Viktor Orbán na Hungria. Nas Filipinas, você tem medidas repressivas ainda maiores se desrespeitar a quarentena. Você vê que essas lideranças antiliberais que estão erodindo a democracia pouco a pouco estão aproveitando o coronavírus para intensificar esse discurso, mas tomando as medidas corretas do ponto de visto epidemiológico. Eles estão fazendo a coisa certa, mas politizando em cima disso.

O Bolsonaro é exceção a esse grupo. Ele faz parte desse grupo de líderes que se colocam fundamental contrários à democracia liberal e todos os valores que nela circundam, mas está fazendo um outro jogo. A gente está numa situação que paradoxalmente não teve uma aceleração da erosão democrática, como em outros países está acontecendo diante da crise do coronavírus.

Um segundo elemento é que não é necessário fechar o Congresso para você sentir que está numa situação menos democrática. O que acho que o Bolsonaro tenta fazer não é necessariamente erodir a democracia. O Bolsonaro precisa da democracia e das instituições funcionando e limitando o poder dele para poder intensificar a popularidade que ele tem com seus seguidores. É quase como se ele fossem dois mundos paralelos. Ele na realidade é um guia de uma revolução. Uma revolução que certamente tem valores que não condizem com a democracia liberal, mas ele precisa de alguma maneira desse conflito perpétuo com as instituições para poder fidelizar a base dele.

Toda ação mais dura de outros poderes é usada por bolsonaristas para “provar” perseguição a ele. Como lidar com isso?

Esse é o grande dilema que o Bolsonaro coloca às instituições constantemente. Ou você responde e, ao responder, fortalece o discurso de perseguição que ele criou junto à base dele. Ou, se deixa tudo passar, você está enfraquecendo o vínculo dele com a base, mas está deixando passar declarações e até ações totalmente anti-republicanas.

Não é uma situação óbvia para quem está liderando as instituições. Você pode querer simplesmente responder para mostrar que com certos valores não se mexe, certos tipos de discurso não são aceitáveis num Estado democrático de direito, mas está fortalecendo a base. Acho que as instituições variam muito de estratégia. Às vezes dão uma resposta, às vezes deixam passar. É complicado mesmo. Não acho que é um jogo fácil.

É quase como se o Bolsonaro obrigasse as instituições a terem que reagir contra ele. Ele vai sempre esticando a corda ao máximo. Quando são declarações, a estratégia das instituições parece clara: deixa ele falar e não deixa ele agir. Mas quando ele começa a querer colocar, por exemplo, o filho [Eduardo Bolsonaro] como embaixador do Brasil nos Estados Unidos, ele está ferindo uma série de princípios. É muito malvisto dentro do Itamaraty você ter um embaixador político. Ainda mais um político com nenhuma experiência ou qualificação para esse tipo de trabalho. Além do mais você tem um elemento  ligeiramente nepotista. Não tem como as instituições não reagirem a isso.

Não acho que houvesse uma estratégia do Bolsonaro para valer de colocar o filho como embaixador. Acho que ele queria simplesmente ir testando os limites. A reação dele aos incêndios na Amazônia no ano passado também vai nessa linha, assim como a reação ao coronavírus. É como ele tivesse constantemente pedindo para que fosse parado. Fica essa dificuldade das instituições saberem ‘será que paro ele ou deixo seguir falando sozinho?’.

Há uma intenção clara de Bolsonaro em desestruturar as instituições ou há uma pauta diversionista? Ou os dois?

Não vou saber avaliar. Pode ser uma delas ou nada disso. Pode ser que o Bolsonaro é uma pessoa muito intuitiva e é o jeito dele responder. Ele fala o que vem à cabeça. É possível também. Mas eu acho que existe inteligência política no que ele faz. Mas a estratégia dele não está muito clara.

Pela primeira vez após um ato antidemocrático do presidente houve uma reação mais dura dos outros poderes, com a abertura do inquérito no Supremo Tribunal Federal, ainda que Jair Bolsonaro não seja formalmente investigado. De fato houve um ruptura por parte do presidente ou o que foi diferente dessa vez foi a reação?

Acho que a reação foi o que fez a diferença. Claro que o Bolsonaro subiu mais um degrau nessa manifestação, acho que mais do que pelo conteúdo do discurso e por ser na frente do quartel-general porque ele já tinha feito discursos profundamente antiliberais diversas vezes, com manifestações explicitamente contra as instituições. Ele está subindo um pouco o tom, mas num discurso que a gente já ouviu.

A diferença agora foi a reação das instituições. Ele subiu um degrau e as instituições subiram alguns degraus a mais. Para além do conteúdo do discurso o fato inovador é o enfrentamento às políticas de enfrentamento ao coronavírus. Em plena crise, em plena quarentena, você desafiar nesse nível… Mais do que o conteúdo das palavras, o gesto de estar presente no meio da população é um elemento que explique a reação. Virou um problema sanitário mesmo. Não é apenas um problema de instituições.

Em artigo publicado na revista piauí, o senhor afirma que o bolsonarismo não pode ser esclarecido recorrendo às ferramentas clássicas da ciência política e que é preciso analisá-lo pelo ativismo digital. Pesquisa Datafolha de 9 de abril mostra que entre os eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018, 83% não estão arrependidos do voto. Há pessoas fazendo manifestações em frente a hospitais em uma pandemia. Há um núcleo duro de apoio que nunca irá mudar?

Na minha opinião, ele [Bolsonaro] é o primeiro candidato realmente eleito pelas redes sociais, muito mais do que outras figuras porque ele não tinha as estruturas clássicas que a ciência política chama de determinantes de sucesso numa eleição. Ele não tinha tanto financiamento, estrutura partidária, tempo de televisão, aliados regionais como outros candidatos. Ele deixou de ser um deputado do baixo clero para virar uma grande liderança nacional em 4 anos. É uma coisa totalmente explicada pelo bom uso das redes sociais pelo ex-capitão. 

O fato de ele ter se tornado uma figura presente nas redes sociais o tempo todo, falando, dando entrevista, isso tudo é muito bom porque gera buzz, traz seguidores etc, mas o que o Bolsonaro faz brilhantemente é que ele consegue transformar esse seguidores num canal para ele. É como se ele criasse a TV Bolsonaro dele. É como se ele tivesse o canal estatal soviético na mão dele para o público dele. O trabalho que o Bolsonaro faz é de uma fidelização tão grande que vai ‘descredibilizar’ todos os atores que possam vir a criticá-lo. Os partidos de esquerda, de centro, aí tudo é de esquerda, os partidos de direita mais tradicionais é velha política, tudo corrupto. A imprensa é toda de esquerda e corrupta. As ONGs [organizações não governamentais] nem se fala. 

Ele vai determinando quem são os inimigos e vai consolidando um canal que depende cada vez mais exclusivamente dele. É a ideia da bolha que pensa parecido com você. O Bolsonaro é o denominador comum de várias bolhas, é como se ele fundisse essas bolhas e criasse um canal e todas essas informações passam por ele para esse grupo. E ele vai distanciando cada vez mais esse grupo de outros canais de informação e de formação que eles poderiam ter e vai monopolizando essa audiência.

Quanto mais atos radicais ele tomar, mais ele requer uma fidelização mais séria desses seguidores. 

Se você fosse pensar na época do impeachment da Dilma Rousseff em que você tinha diversas forças antipetistas… O antipetismo não era só o bolsonarismo. Tinha desde um centro tipo PSDB ou PPS [atual Cidadania], um movimento anticorrupção que não necessariamente era de direita ou de esquerda na época e foi para direita depois, os evangélicos que começam a romper com os governos do PT, militares, forças policiais. São grupos muito diferentes mas ele conseguiu reunir todo mundo na eleição dele e soube fidelizar parte desse eleitorado mesmo. 

Antigos apoiadores do presidente, como o governador João Doria (PSDB), afirmam que não tinham perspectiva de que o presidente seria tão irresponsável. É genuíno esse espanto ou essa é uma retórica de olho nas eleições?

Para quem está na vida política e sabia da história do Bolsonaro, nada nas ações dele tem impressionado. Acho que o que tem impressionado é que muita gente siga o Bolsonaro nas suas posições que seriam absolutamente impensáveis há anos. É uma surpresa para todo o sistema político que achava que ia conseguir domar a figura do Bolsonaro ele conseguir tomar posições drásticas e radicais e ter apoio muito grande.

Evidentemente existem disputas políticas e a aliança ‘BolsoDoria’ era insustentável. São candidatos que disputam um eleitorado muito parecido, têm atributos parecidos em muitos aspectos. São bons comunicadores em redes sociais, ainda que com estilos diferentes.

Escrevi um artigo em abril de 2019 em que disse que quem realmente faria oposição ao Bolsonaro seria o Doria, Wilson Witzel (governador do Rio de Janeiro) e o Sergio Moro (ex-ministro da Justiça), que no fundo disputavam parte do eleitorado do Bolsonaro. Acho que isso é um pouco o que está acontecendo, essa divisão nesse campo.

Os outros presidentes que negavam o impacto da pandemia, como Donald Trump, recuaram, diante do avanço do número de doentes e mortos. Só os presidentes da Nicarágua, Belarus e Turcomenistão, consideradas ditaduras, têm postura semelhante à de Bolsonaro. No Brasil, temos estados no limite de leitos de UTI e abertura de valas comuns em Manaus. É sustentável Bolsonaro continuar crítico do confinamento?

Os economistas vão dizer que não é sustentável porque a economia vai tomar um tombo. Está muito estudada essa relação causal quando acontece algum tipo de tragédia ou evento catastrófico e o governo sempre sofre consequências eleitorais ou de popularidade, mesmo que tenha reagido bem. As pessoas tendem a culpar o governo incumbente pela catástrofe.

O Bolsonaro, ao se posicionar contrário ao remédio da catástrofe, o que ele conseguiu fazer foi se esquivar do problema. Se o coronavírus não for bem combatido, é por causa dos governadores. E as medidas que os governadores estão tomando são profundamente responsáveis com a economia. É como se o Bolsonaro estivesse antecipando o drama de daqui a dois meses das pessoas estarem desempregadas.

É possível que essa estratégia dê errado e ele ser responsabilizado?

Acho que sim. É superpossível. Em algum nível, ele perdeu popularidade com segmentos do eleitorado dele por causa da crise. Diante das mortes, isso pode pegar forte na popularidade dele.

Mas me preocupa que ele tem falado que os números estão inflados pelos governadores. A gente sabe que tem subnotificação no Brasil. Me preocupa se vai haver algum tipo de contestação a esses números e talvez para o público dele todo mundo está mentindo, os governadores estão mentindo, a imprensa está mentindo, são números de mortes de outras doenças e não de covid-19. É possível que ele adote uma narrativa dessas para tentar se esquivar e com o público dele funciona. Ele é a fonte de verdade e legitimidade para a parte mais fidelizada do bolsonarismo, que é uma parcela importante da população.

O Congresso tem se concentrado em propostas de resposta à pandemia, o mandato do Rodrigo Maia na presidência da Câmara acaba em fevereiro, o Planalto tem se aproximado do centrão e a classe empresarial ainda apoia o governo. Qual a viabilidade de um impeachment?

Um impeachment é viável a partir do momento em que você tem aliados necessários institucionalmente bem como o número de votos, mas precisa de muito mais coisa. Precisaria de um rompimento do [vice-presidente] Hamilton Mourão com Bolsonaro, que não está claro. Mas, além da articulação política, tem um elemento essencial que não há como tirar do poder um presidente que tem um terço de aprovação constante. Tem um terço do País que vai ficar revoltado, sem entender por que tiraram o presidente da República. 

Acho que não é nem tanto por uma questão de sucessão ou de quem está no comando da Casa, mas não vejo timing político para o impeachment. Não acho que o Bolsonaro é ‘impichável’. A Dilma era ‘impichável’ porque tinha 8% de popularidade. O Temer foi ‘impichável’ porque tinha 3%. O Bolsonaro tem uma popularidade forte e mantém. E não é uma popularidade de gostar do governo, achar que está fazendo um bom trabalho. É de amar o governo e amar o presidente. É uma fidelização muito grande. Ele é uma liderança muito forte para muita gente.

É mais difícil desconstruir o apoio popular dele do que foi na época da Dilma ou do Temer?

Sim, por mais que houvesse a mesma vontade do estamento político. Não que se tenha agora o mesmo nível de estratégia, um vice-presidente que faz o distanciamento maior. O Temer fez o distanciamento no momento preciso para permitir o impeachment. Foi uma coisa trabalhada, que levou tempo. Não vejo o Mourão fazendo isso. Mas por mais que houvesse uma maioria que votasse a favor do impeachment, não acho que é viável um impeachment de um presidente que tenha 30% de popularidade.

Muitas vezes após atos ou falas antidemocráticas do presidente, há uma certa contenção por parte de alguns militares no governo. Os militares também têm recebido elogios de nomes da esquerda, como o governador Flávio Dino, e o presidente do PSB, Carlos Siqueira. Ao mesmo tempo, a última ditadura no Brasil foi militar. Como o senhor vê esse fenômeno? 

Sempre que você teve fase autoritárias no Brasil, o Exército foi parte protagonista e também de tentar derrubar democracias populares, com tentativas de golpes. A gente tem um histórico de muitas tentativas de intervenção militar em períodos de democracia de massa no Brasil. Nesse sentido, não vejo os militares como sendo os fiéis da balança no governo Bolsonaro.

Vejo eles um pouco sem opção porque nenhum governo valorizou tanto eles nos últimos anos. Eles estão em vários cargos importantes. Acho que o Exército tem uma tentativa de estruturação do governo para que as políticas públicas aconteçam. Estão mais preocupados que esse governo seja funcional e que não seja só uma ‘bateção’ de cabeça. Mas não vejo uma preocupação com democracia.


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