23/04/2024 - Edição 540

Brasil

Os índios enfrentam o fantasma do coronavírus

Publicado em 23/04/2020 12:00 -

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A disseminação acelerada do novo coronavírus tem provocado temor em aldeias do Brasil. Boletins epidemiológicos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, apontam que o número de casos confirmados de covid-19 entre índios praticamente dobrou no intervalo de uma semana, comportamento que preocupa infectologistas e desafia estratégias de prevenção dos governos.

Segundo os dados da Sesai, as infecções em indígenas, grupo considerado mais vulnerável à doença, saltaram de 16 para 31 diagnósticos, ou 93,7% a mais, desde a última segunda-feira, 13. Oficialmente, o País também registrou três mortes – duas delas em Manaus, onde o sistema de saúde já entrou em colapso, e outra em Roraima.

De acordo com o Censo IBGE 2010, existem ao menos 305 etnias e 896,9 mil indígenas no Brasil, a maioria habitante de áreas rurais. O jornal O Estado de SP procurou tribos das cinco regiões brasileiras, com realidades distintas, para abordar medidas preventivas e os efeitos da pandemia nas aldeias. Em comum, os povos relataram que tentam seguir o isolamento social, recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mesmo aqueles que vivem em contexto urbano.

“Se um vírus desse entra na comunidade, é o extermínio de um povo”, afirma Sonia Ara Mirim, líder Guarani e moradora da Terra Indígena Jaraguá, na cidade de São Paulo. Encravada no epicentro do coronavírus, a aldeia tem sobrevivido à base de cestas básicas, doadas por parceiros, para conseguir se manter longe de aglomerações. “O principal desafio é preservar as vidas na comunidade, são muitas crianças e velhos.”

Desde o dia 17 de março, portaria da Fundação Nacional do Índio (Funai) proíbe não índios de entrar nas aldeias. Pelo Brasil, caciques e lideranças mandaram fechar acessos e espalharam faixas de alerta. Em algumas regiões, há registros de estradas bloqueadas por troncos e até grupos que fazem campana nas matas contra invasores. Os povos, no entanto, relatam dificuldades diversas: desde escassez de equipamentos de proteção, falta de testes e ausência de rede hospitalar, ao risco de passar fome por desabastecimento.

O grau de adesão ao isolamento varia de acordo com o povoado, já que há comunidades que precisam deixar as terras em alguma hora, seja para comprar mantimentos, receber o valor da aposentadoria ou retirar benefícios como Bolsa Família. Embora muitas aldeias tenham desistido de realizar eventos, ainda há povos que mantêm festas e ritos ancestrais.

Pesquisadores afirmam que as estratégias contra a covid-19 devem considerar tanto a tradição do povo quanto características de cada território indígena, como estrutura de saneamento básico, oferta de atendimento médico e acesso à alimentação. Hábitos culturais, a exemplo de compartilhamento de utensílios ou existência de casas coletivas, também se somam aos desafios.

Garimpo, grilagem e missionários religiosos representam risco às tribos

Boletins da Sesai apontam que os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei) Alto Solimões e Manaus, ambos na região amazônica, são responsáveis por 25 dos 31 casos de covid-19 — ou 80,6% dos diagnósticos entre indígenas. Com histórico de invasão de garimpeiros, essas áreas abrigam aldeias isoladas, cujo acesso só é possível por aeronaves ou embarcações.

Baseado no cruzamento de dados epidemiológicos com indicadores sociais, estruturas de saúde disponíveis e mobilidade nos territórios, o Instituto Socioambiental desenvolveu um índice para medir o grau de exposição de tribos ao coronavírus. Nas dez primeiras posições de mais risco, cinco terras indígenas ficam na região Norte, quatro em São Paulo, Estado com maior número de casos gerais no País, e uma no Rio Grande do Sul.

Coordenador do Programa de Monitoramento do ISA, Antonio Oviedo avalia que, em geral, o sistema de saúde em terras indígenas não está à altura da pandemia – para alguns povoados, o socorro a hospitais pode demorar dias só no deslocamento. “Existem municípios que não dispõem de leito hospitalar e respirador, mas lá têm duas ou três terras indígenas com 5 mil, 6 mil habitantes”, diz. “Esses dados mostram o quão vulnerável e em risco essas populações estão no território nacional.”

A primeira morte de indígena por covid-19 foi confirmada pela Funai no dia 10. O caso, de um jovem Yanomami, de 15 anos, envolve suspeita de atividade ilegal de extração de minério próximo à aldeia em Roraima. Também morreram um indígena Tikuna, de 78 anos, e uma indígena Kokama, de 44, em Manaus.

“Seja por garimpeiros, madeireiros ou grileiros, a invasão de terras é uma realidade de várias regiões, não só dessas áreas em que já houve registro de morte”, afirma Oviedo.

Em janeiro, os Guarani Kaiowá da comunidade Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante (MS), denunciaram que criminosos atearam fogo na Casa de Reza. Na ocasião, pistoleiros teriam invadido a aldeia, agredido e feito ameaças à tribo, segundo a comunidade. Agora, além da violência dos invasores, o povo se sente sob perigo por causa do coronavírus.

“Os rezadores têm rezado todas as noites, invocando os espíritos de proteção”, relata a liderança Clara Almeida. Na aldeia, ainda sem casos suspeitos da doença, ela reclama de falta de equipamentos de proteção e de orientação por parte de equipes da Sesai. “De saúde, não recebemos nada. De alimentação, só cesta básica da Funai e do município”, diz. “Estamos evitando sair para a cidade. Com a bênção do Nhanderu, nós vamos passar essa fase crítica.”

Pesquisador de saúde indígena do Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o médico sanitarista Douglas Rodrigues vê com preocupação os casos por disputa de terra, mas também alerta para a presença de missionários religiosos que buscam índios sem contato com brancos. “Hoje há pelo menos 28 grupos isolados reconhecidos pela Funai, a maioria na Amazônia. Essas missões de evangelização ferem a política de proteção, que é deixá-los em isolamento. É uma ameaça aos povos.”

Segundo explica, a maior vulnerabilidade dos povos indígenas a epidemias é constatada pela literatura médica e reconhecida pela OMS. “Pela dificuldade histórica de acesso à saúde, muitos já têm uma carga grande de doenças, como tuberculose ou diabetes”, afirma. “Se entrar nessas terras, o coronavírus pode levar a um sofrimento desproporcional.”

Em março, a Sesai elaborou um plano de contingência para coronavírus em povos indígenas, com diferentes níveis de resposta para cada situação: “alerta”, “perigo iminente” e “emergência em saúde pública”. Entre as medidas, o plano prevê desde orientar sobre “etiqueta respiratória” (ou seja, cuidados com a higiene e formas adequadas de tossir e espirrar) a fazer avaliação médica antes de entrar na aldeia.

No documento, a secretaria reconhece “maior vulnerabilidade biológica dos povos indígenas a viroses, em especial às infecções respiratórias”. “As epidemias e os elevados índices de mortalidade pelas doenças transmissíveis contribuíram de forma significativa na redução do número de indígenas que vivem no território brasileiro”, escreve.

Por nota, o Ministério da Saúde diz orientar tribos, gestores e colaboradores desde janeiro, antes de a OMS decretar estado de emergência pela covid-19. Cada Dsei elaborou um plano de ação específico à realidade do local, segundo a pasta.

O foco das ações de saúde é monitorar sinais de doenças respiratórias e atuar em casos suspeitos de coronavírus, antes que aumentem os riscos de a infecção se espalhar. “As equipes multidisciplinares de saúde indígena estão sendo orientadas a priorizar o trabalho de busca ativa domiciliar de casos de Síndrome Gripal (SG) e Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).”

Foram distribuídos até o momento cerca de 8,9 mil máscaras de proteção, 96,4 mil luvas e 10,4 mil testes rápidos para covid-19, de acordo com o ministério. “Todos estes insumos complementam os estoques próprios dos 34 DSEI, que também mantém processos permanentes de aquisição de equipamentos.”

Já a Funai afirma ter distribuído 4,2 mil cestas básicas para tribos em situação de vulnerabilidade nas regiões de Cacoal (RO), Madeira (AM), Macapá (AP), Dourados (MS), Cuiabá (MT) e no Estado de Alagoas. “A intenção é garantir a segurança alimentar desses povos, já que eles estão impedidos de sair das aldeias”, diz a fundação. “Além disso, investiu cerca de R$ 130 mil no transporte de indígenas que estavam na cidade e precisavam voltar com urgência para as aldeias.”

Na nota, o órgão diz fiscalizar territórios indígenas contra invasores e também que teria identificado áreas mais críticas. “Historicamente as frentes de ilícitos ambientais/territoriais constituem frentes de contágio”, afirma. “Assim, já foram definidas estratégias para articulação interinstitucional com os entes responsáveis pelas forças de segurança pública, visando atuação prioritária nessas terras.”

Há duas semanas, a Funai recebeu aporte financeiro de R$ 10,8 milhões para ações contra o coronavírus. Segundo a fundação, a verba deve ser aplicada com base nas “especificidades dos diferentes povos”, mas o investimento ainda não foi executado por respeito a “procedimentos fixados em lei”. Entre as medidas previstas, há compra de alimentos, além de de veículos e embarcações para transportar servidores às aldeias.

O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, também destinou cerca de R$ 6 milhões à Funai, com a promessa de distribuir 300 mil cestas básicas para 154 mil famílias indígenas. Os itens, contudo, ainda estão em processo de aquisição pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

No último dia 17, o subprocurador-geral da República, Antonio Carlos Alpino Bigonha, questionou a Funai e ministério sobre o motivo de as verbas ainda não terem sido empenhadas. Na avaliação da procuradoria, a ausência de investimento para combater o coronavírus em povos indígenas não seria “questão financeira”.

‘Toda doença é um espírito. Dizer ixtiwa é uma maneira de reverenciá-la’

Em ia-tê, a linguagem da tribo Fulni-ô, “novo coronavírus” se diz “ixtiwa”. A pronúncia começa por um chiado prolongado, quase como um sopro: Ishh. Em seguida, a língua se põe entre os dentes e – de um golpe curto – forma a sílaba tônica: . Só então os lábios articulam um círculo pequeno que vai se abrindo rapidamente: Uáá. Não mais do que isso. Ishh-Tí-Uáá. Entre os falantes de ia-tê, a palavra equivale a esse tal coronavírus – ou catapora, enxaqueca, amigdalite, insuficiência renal, diabetes, lepra, frieira, piriri. Tanto faz. Para os Fulni-ô, todas as doenças têm um nome só.

Presente em registros etnográficos desde 1749, os Fulni-ô vivem no sertão de Pernambuco, no chamado polígono das secas, em assentamentos de terra batida que contornam a cidade de Águas Belas, lugarejo com 43 mil habitantes e IDH de 0,526, inferior ao do Quênia. Entre estudiosos, a tribo ganha destaque por manter rituais religiosos e a língua nativa imunes à passagem do tempo. “Na nossa crença, toda doença é um espírito. Dizer ‘ixtiwa’ é uma maneira de reverenciá-la”, explica o índio Ubiran Fulni-ô, de 36 anos, que atua como agente de saúde no território.

Embora ainda não haja notícia de infectados por covid-19 na aldeia ou em seus arredores, é errado pensar que a doença não forçou a tribo a repensar medidas de prevenção. “Nosso povo vê o que o jornal mostra o tempo inteiro, cada dia mais. Somos seres humanos e temos receio de alguma pessoa da comunidade venha a adoecer”, diz Ubiran. No povoado, por mais respeito à entidade, a ordem é não deixar o coronavírus entrar.

No início da crise, os Fulni-ô que moravam longe foram convocados a voltar – hoje, cerca de 7 mil pessoas se encontram reclusas no povoado, segundo estimam os locais. Eventos costumeiros, como palestras ou apresentações de dança fora da aldeia, também foram cancelados para reduzir riscos de contágio.

Diariamente, Ubiran visita 88 famílias, confere o isolamento social e orienta sobre cuidados com a higiene. “A Sesai fez as orientações e nós repassamos ao povo: queremos multiplicadores de saúde”, afirma. Escasso no sertão, o álcool em gel é dividido entre todos. Rende pouco. Também é incomum encontrar máscara de proteção – basicamente só médicos e enfermeiros estão “cobertos”, como se fala na tribo. “Vivemos em um lugar quase sem água, de quentura, muita poeira, fogueira e fumaça”, descreve. “Para prevenir, o mais fácil é usar sabão e lavar a mão bem direitinho.”

Com base no trabalho de campo, o agente de saúde indígena calcula que ao menos 10% da tribo têm mais de 60 anos – grupo expressamente proibido de deixar suas casas até para comprar comida. Em tempos normais, a agricultura já não é suficiente para subsistência. Para evitar desabastecimento, os mais jovens agora se revezam para buscar mantimentos em Águas Belas apenas uma vez por semana, conforme combinado com comerciantes da cidade.

Na semana passada, os idosos da tribo foram vacinados contra gripe influenza, após a campanha do governo ser antecipada por causa da covid-19. Para fechar o corpo contra o coronavírus, contudo, sábios Fulni-ô têm recomendado chá de quina-quina, tipo de arbusto comum na região. Conhecedores da medicina ancestral afirmam que é preciso tirar a casca e pôr para secar desde o primeiro sol da manhã até o meio-dia. Pela receita, a infusão se prepara com duas lascas e um litro de água. “Aquele cheiro de planta entra na casa todinha: é uma nebulização”, diz Ubiran. Crianças, adultos e idosos bebem três xícaras a cada 24 horas. Para bebês, são três colherzinhas. “Isso fortalece os pulmões.”

Presas em casa, as famílias rezam pelo restabelecimento dos infectados pela covid-19 mundo afora. Na aldeia, é impossível dissociar a religião da pandemia. “É verdade que o espírito maltrata, danifica e fere o corpo, mas depois o torna mais forte. Vai purificando. Às vezes, também serve como alerta para que a gente entenda o mundo de maneira diferente, com os olhos de uma criança”, diz Ubiran. “Quando Eedjadwa – o grande deus, quem rege a terra, a água, o fogo e os ventos – libera essas doenças, as pessoas sentem medo. Não vê agora?! Hoje, estamos em um mundo mais solidário do que antes.”

Em meio à ameaça do vírus, só a cerimônia mais importante da tribo, o ritual Ouricuri, permanece inegociável. Por três meses, de setembro a novembro, os índios tradicionalmente deixam suas casas; os homens são separados das mulheres e os grupos ficam isolados em um terreno ainda mais ermo, sem energia elétrica ou internet, sob regime de rezas e abstinência sexual.

“Todo mundo já pensou na hipótese de precisar remarcar, mas a data não pode mudar por nada que aconteça no mundo”, diz Ubiran. Segundo afirma, alterar o calendário seria como afrontar o sagrado. “Se nós decidíssemos mudar, era capaz de o coronavírus vir aqui e entrar na nossa aldeia”, justifica. Por lá, não se brinca com ixtiwa.

Kisêdjê (MT)

‘Ninguém sai, ninguém entra’

Entre o povo Kisêdjê, uma das 16 etnias que habitam o Parque Indígena do Xingu, ao norte do Mato Grosso, a campanha de prevenção é transmitida por mensagem de Whatsapp. No plano de fundo do folder, elaborado pela tribo, aparece uma índia de cocar e olhos pintados de vermelho. À frente, as letras são ordenadas em português: “Atenção, parentes! Vamos manter a covid-19 longe das nossas comunidades. Fiquem nas aldeias”.

Por smartphone, os Kisêdjê permanecem atentos aos acontecimentos fora das suas aldeias. Notícias de contaminação em massa em grandes cidades e especialmente das primeiras mortes de indígenas no Brasil, vítimas do novo coronavírus, também chegam pela TV. Alarmado com o cenário, o povoado tomou uma decisão, exposta em cartazes nos assentamentos situados em 2,6 mil hectares de terra: “Ninguém sai, ninguém entra”.

Para barrar a presença de estranhos, líderes locais, literalmente, mandaram passar o cadeado no acesso ao território, de acordo com o fotógrafo e cineasta Kamikia Kisêdjê, de 36 anos. “A estrada foi fechada pela comunidade e a chave fica na aldeia com o representante da Funai”, diz. Na região, também há relatos de vias bloqueadas por troncos de árvores pelos índios. “Na aldeia é um portão, que só abre para alguma coisa muito urgente, como um acidente ou atendimento médico.”

A rotina de isolamento físico contrasta com o histórico da tribo, conhecida por incorporar aspectos da cultura de outros povos desde o século 18. Em tempos normais, Kamikia costuma rodar o País e fazer viagens ao exterior para dar aulas e palestras de documentário indígena. Com o coronavírus à porta, precisou desmarcar agendas que iria cumprir neste mês no Pará e no Maranhão. “Pensando bem, não tem atrapalhado em nada. Acho que até ajudou: a gente acaba passando mais tempo na aldeia com a família.”

Pelos cálculos de Kamikia, os assentamentos Kisêdjê abrigam mais de 600 pessoas, distribuídas por uma aldeia principal e outras três menores. Os aglomerados ficam nas imediações da cidade de Querência, às margens leste do Rio Xingu, área de transição entre o cerrado e a Amazônia.

É na aldeia central, chamada Kikatxi, que os índios aproveitam o sinal oscilante de wi-fi.Pelo território, Kamikia fotografou recentemente amigos circulando com máscaras de proteção, fornecidas pela Sesai. Em uma das imagens, um índio aparece vestindo uma camiseta de La Casa de Papel, sucesso da Netflix.

O cineasta mantém, ainda, um canal no Youtube, com 1,5 mil inscritos, usado para compartilhar vídeos de rituais e festas de dança, talvez a principal expressão do povo. Também há pílulas do cotidiano do povoado. No vídeo mais recente, Kamikia conta sobre um projeto da Associação Indígena Kisêdjê (AIK), da qual faz parte, que venceu o Prêmio Equatorial, da ONU, no ano passado. O projeto produz óleo de pequi, em larga escala, em terrenos que antes estavam invadidos por fazendeiros e pecuaristas e, agora, foram reflorestados pelos índios. O produto é vendido em grandes redes de supermercado.

Por recomendação do governo federal, a escola da aldeia está com as portas fechadas para evitar aglomeração de estudantes, mas as crianças Kisêdjê continuam participando de aulas práticas. No caso das meninas, significa dizer que seguem acompanhando as mães na colheita de mandioca. Já os meninos aprendem a cantar, a dançar e a caçar com arco e flecha.

Na avaliação da tribo, o perigo de infecção está lá fora e não dentro da aldeia. Por isso, o convívio nas áreas comuns segue normal. Para o fim de semana, por exemplo, programaram a festa dos 15 anos da fundação da AIK, com objetivo de celebrar uma série de feitos da associação.Entre eles, os organizadores listam desde projetos de recuperação de mata ciliar e programas para produzir gêneros alimentícios no território a incentivos esportivos e culturais, como corrida de tora. Um dos destaques, dizem os indígenas, foi um acordo, firmado com uma grande fabricante de sandálias em 2006, para que desenhos Kisêdjê decorassem uma linha estrelada por Gisele Bündchen.

Kamikia não vê problema se esse tipo de evento na tribo acabar provocando aglomeração maior do que o recomendável em tempos de pandemia: “Vamos aproveitar que estão todos de quarentena para festejar e ir contra esse novo coronavírus”.

Xakriabá (MG)

‘Sem ajuda, metade vai passar fome’

Nas aldeias Xakriabá acontece assim: em se plantando, nada dá. Castigado pela falta de chuva em São João das Missões, município no norte de Minas, o povoado pré-colonial testemunhou nas últimas décadas gerações de índios desistirem da lavoura para tentar a vida nas cidades. Faz pouco mais de um mês que o cenário mudou. Por causa do coronavírus, postos de trabalho minguaram. Sem emprego ou perspectiva de renda, centenas de membros da tribo, enfim, retornaram às terras dos seu ancestrais.

Pelo registro de moradores, a população aumentou de 9,1 mil para mais de 10 mil pessoas no período – cenário que preocupa o coordenador de equipes de saúde indígena, Marciel Bispo, de 34 anos. Segundo relata, as famílias apareciam aos montes, às vezes até de madrugada, para aflição dos grupos sanitários empenhados no combate à covid-19. “Se a doença chegar, muita gente vai sofrer”, afirma.

Distribuídas por 34 aldeias, a maioria das casas é simples, com gente demais e cômodos de menos, descreve o enfermeiro Xakriabá. Algumas, de pau a pique, nem janela têm. “As moradias são escuras, quase sem ventilação. Você chega a ver quatro ou cinco crianças em um quarto pequeno, dormindo emboladas. As famílias correm risco maior nessa situação”, diz.

A escassez de alimentos e de itens básicos de higiene também começa a dar os primeiros sinais de alerta. “Quem saía para ganhar o pão de cada dia não está recebendo. Muitas pessoas já sentem dificuldade para comprar”, afirma Bispo. Segundo relata, foi solicitado à Funai distribuição mensal de cestas básicas – hoje o auxílio ocorre duas vezes por ano. “Recentemente, um diretor de escola me procurou perguntando se a gente não poderia fornecer creme dental, porque havia um pessoal precisando… Se não tiver ajuda, metade da população vai passar fome.”

Formado em enfermagem em 2009, Bispo foi o primeiro Xakriabá a pisar em uma universidade, após ter sido beneficiado por cota étnica, segundo conta. Hoje, atua na prevenção da aldeia contra a covid-19. Parte do seu trabalho é organizar a avaliação clínica e cadastro, com informações como cidade de origem e histórico de doenças, dos índios que voltaram para a tribo. No território, se alguém apresentar sintoma da doença, a ordem é ficar 14 dias de quarentena. “A tribo inteira está com medo. É uma questão de segurança: quem não seguir as regras vai ter de sair da aldeia.”

“Por tempo indeterminado fica expressamente proibida a entrada de pessoas não indígenas”, diz uma faixa pendurada na entrada do território, habituado a receber vizinhos, turistas e pesquisadores. Neste ano, não houve a festa do Dia do Índio, com suas tradicionais disputas de arco e flecha e lutas na lama. Por lá, também não sabem dizer quando voltam os torneios de futebol, que costumam reunir até times de brancos. Mesmo caminhões, que abastecem os comércios nas aldeias, agora são barrados.

Um episódio no início do mês causou revolta entre os Xakriabá. Tentando fechar o cerco contra a doença, os índios denunciaram uma operação policial em que os agentes, em busca de veículos roubados, entraram no território com armas à vista, mas nada de álcool em gel ou equipamento de proteção. “Causou terror nas aldeias. Não só pela ação que realizaram sem nenhum comunicado às lideranças da aldeia. Mas também pelo coronavírus, esse perigo que pode vir com os policiais que são de diversas cidades da região”, diz documento assinado por líderes das aldeias.

Embora o povoado tenha dez postos de saúde, o hospital de referência fica a mais de três horas de viagem, em Montes Claros, cidade a 256 quilômetros de distância. Na avaliação de Bispo, a malha de atendimento está aquém do necessário para lidar com pandemias. “Se sair indígena doente daqui, não há garantia de que vai conseguir vaga em CTI”, afirma. “Não existe estrutura para lidar com casos graves.”

Por enquanto, a única suspeita de covid-19 aconteceu com um jovem de 21 anos, morador de Goiânia, que teria vindo de uma escola com registro de uma morte de aluno e de infecção de um professor. De volta à tribo, ele tinha febre alta e tosse. Passou duas semanas em casa, sendo obrigado a usar máscara e recebendo visita de equipes de saúde. A quarentena já acabou mas, até hoje, ninguém sabe confirmar se ele estava ou não com coronavírus. O teste solicitado ao governo, segundo Bispo, nunca chegou à aldeia.

Guarani Mbya

‘Com isolamento, fortalecemos nossa cultura’

Por esses dias, as águas do Rio Inhacapetum baixaram como há anos não se via. Impedido de sair da comunidade diante da ameaça do novo coronavírus, o escultor e cineasta Ariel Kuary Poty, de 34 anos, do povo Guarani Mbya, decidiu aproveitar a mudança inesperada e, como antigamente, voltou a preparar armadilhas para peixe – tradição que andava esquecida entre os jovens da aldeia Tekoa Koenju. Proveitosa, a pescaria ajuda a alimentar as cerca de 30 famílias locais, segundo conta. “Pega bastante lambari, jundiá, dourado, piaba…”, diz. “Tem muito cascudo também: assado fica muito gostoso.”

Com 234 hectares, incluindo córregos e áreas de mata, as terras Guarani Mbya abrigam mais de 200 indígenas e estão localizadas em meio às ruínas de São Miguel das Missões, no noroeste do Rio Grande do Sul, já perto da fronteira com a Argentina. Conforme contam os livros de História, a cidade nasceu de reduções jesuíticas, com objetivo de catequizar povos nativos, e foi palco das guerras guaraníticas no século 18. Após ser dispersado pelo sul do Brasil e por países vizinhos, grupos indígenas retornaram à terra, considerada sagrada, na década de 1990.

Ante a iminência de um novo invasor – desta vez, um vírus invisível -, o povo Guarani Mbya avaliou que esta era também a oportunidade de incentivar o resgate à ancestralidade na tribo, reforçando costumes antigos e práticas religiosas. Nas refeições, por exemplo, fazem oferenda a Karaí Ru, deus do fogo e encarregado de purificar os alimentos: e continuam fazendo durante a quarentena. Até o momento, não há caso suspeito de covid-19 na aldeia.

“Com as pessoas ficando em casa, conseguimos fortalecer algumas práticas culturais, como os nossos próprios remédios e a comida típica, em vez do alimento que se compra no mercado”, relata Kuary Poty – ou “Raio do Sol”, em guarani. “Nesse período, eu mesmo quero voltar a me conectar mais com a natureza.”

As primeiras informações sobre o coronavírus chegaram ao povoado pela internet, difundida especialmente entre os jovens. “Obviamente foi um pouco chocante para nós, assim como foi para qualquer outra cultura, mas os mais velhos já nos alertavam sobre a chegada dessas tragédias cada vez com mais frequência”, diz o cineasta. “Para a cultura guarani, este mundo já é o segundo mundo que, como um corpo vivo, foi feito perecível e falho. O corpo está cansado e a sociedade ocidental, claro que não em geral, tem maltratado demais a terra.”

Sem oferta de ônibus ou outro tipo de transporte público já em dias normais, a distância de cerca de 30 quilômetros para o centro urbano é uma barreira natural entre os Guarani Mbya e as pessoas de fora do território, segundo Kuary Poty. Para fazer o deslocamento, os indígenas ou têm veículo próprio ou pegam carona. Em contrapartida, os sítios arqueológicos de Sete Povos das Missões costumam receber caravanas de turistas, que também compram artesanato da aldeia, famosa pelos colares e pulseiras.

Sob isolamento social, as idas a cidade diminuíram ainda mais – recentemente, um boato sobre um caso suspeito no meio urbano também preocupou o povoado. “Se alguém precisar comprar algo de necessidade básica, como sal ou leite das crianças, tem de avisar a todos. Então sai um carro uma vez por dia e faz a compra coletiva”, afirma.

Para deixar o território, as lideranças recomendam uso de luva e máscara descartável, além de evitar contato com outras pessoas. No início da crise, os materiais eram distribuídas no posto de saúde indígena mas hoje estão em falta, segundo o cineasta: “Enquanto não chegar mais, a gente vai substituir por bandana”.

Placas avisam sobre o fechamento a visitantes nas duas entradas da aldeia Tekoa Koenju – a exceção é para as equipes de saúde, conta o cineasta. Por protocolo, também há orientação para que os indígenas só procurem o posto em caso de urgência. “As receitas médicas diminuíram, isso foi bom para a medicina do povo, com remédios feitos pelos mais velhos e por nossas mães, usando milhares de raízes e ervas”, diz.

Com papel central na sociedade, os idosos são vistos como detentores da história e do conhecimento do povo Guarani Mbya. Mesmo em tempos de covid-19, por lá se entende não haver necessidade de fazer recomendações ao grupo. “Eles já ficavam mais retirados, no mato, e não andando por aí. Continuam seguindo a rotina normalmente”, afirma Kuary Poty. “E eles sabem se cuidar melhor do que qualquer pessoa da nossa geração.”

Krahô (TO)

‘Eu, por acaso, tenho o nariz para trás?’

Com a luta deflagrada, líderes Krahô convocaram onze guerreiros e, aos escolhidos, deram a missão de guardar os portais da aldeia. Fiéis ao chamado, eles ficam 24 horas por dia em alerta, sem arredar o pé das guaritas, revezando-se apenas para dormir por lá mesmo. Têm ordem de não deixar ninguém passar – embora o problema, em si, não sejam os visitantes. É o que os visitantes podem trazer com eles: o novo coronavírus. O cacique confirma que estão todos alarmados: “Quando essa doença aparece na TV, assusta. A figura que montaram é uma coisa horrível, toda cabeluda, o povo fica muito preocupado”.

Conhecidos como guardiões do cerrado, os cerca de 3,6 mil Krahô vivem em 38 aldeias situadas em uma área de 303 mil hectares em Itacajá e Goiatins, municípios às margens do Rio Tocantins, na região nordeste do Estado. Com a história de interação com brancos marcada por reviravoltas, o grupo indígena já foi alvo de massacre de fazendeiros na década de 1940 e hoje mantém boa relação com comerciantes e turistas – atividade, aliás, provedora de parte considerável da renda do povoado e que precisou ser interrompida por causa da covid-19.

Uma das lideranças da aldeia, Getúlio Krahô, de 76 anos, diz que a tribo tem levado a sério a ameaça da pandemia e se mantido em isolamento social. “Por causa dessa gripe, o povo ficou sem jeito, ficou preso. Existe muita preocupação. Toda hora discutimos o problema, quando vai acabar, o que precisa ser feito”, relata. “Não posso mais chegar na cidade, fazer minhas compras e voltar. Pediram e eu tenho de obedecer. Tem de respeitar.”

Foi de discussões na tribo que nasceu a estratégia de deixar guerreiros em vigília, enquanto os demais ficam nas casas. Em guaritas, os homens destacados controlam não só a chegada de não indígenas – ou “cupen”, para os Krahô – mas também a saída dos aldeados, só autorizados a ir ao centro urbano, a cerca de oito quilômetros de lá, diante de extrema urgência, como atendimento médico ou saque de benefícios sociais.

As poucas máscaras de proteção que chegaram às aldeias foram destinadas aos sentinela, por estar mais suscetíveis ao contato externo. Fogueiras, em volta das quais a comunidade se reúne para contar histórias, agora são acesas com intuito de ajudar a iluminar locais ermos e deixar a fiscalização mais fácil.

Os indígenas se mobilizaram, ainda, para fazer uma vaquinha na comunidade e comprar celulares para os vigilantes. “Quando alguém da aldeia precisa de alguma coisa, eles ligam para os comerciantes da cidade, que vêm trazer a mercadoria até a guarita”, relata o cacique Roberto Krahô. “Antes de entrar, todo material passa por limpeza com sabão, sabonete, lencinho.”

Famosos por celebrar períodos de alegria, o povo Krahô cancelou festas e atividades coletivas pelo risco de infecção por coronavírus, sem expectativa de serem retomadas neste ano. No último fim de semana, por exemplo, deveria ter ocorrido um dos rituais mais importantes da comunidade, o Ketumayê, que é responsável por marcar o início da educação tradicional das crianças e o ingresso no ordenamento social da tribo.

Como manda a liturgia Krahô, crianças seriam enfeitadas por plumas e desfilariam pela aldeia – edição que estava prevista para acontecer às vistas de turistas, com presença já confirmada na celebração. Diante o cenário de perda de receita com etnoturismo e aumento de despesas no enfrentamento à covid-19, a Associação Hotxwa Cia Hike lançou uma campanha para arrecadar doações para a tribo.

Considerado sábio no povoado, Getúlito Krahô afirma que, em momento de pandemia, a prioridade deve ser preservar vidas. Segundo avalia da questão indígena, o Brasil precisa corrigir políticas públicas e alterar a maneira de enxergar os povos, garantindo-lhes segurança, sem distinção. “No chão desta terra, a gente aprende assim: você, meu irmão, tem o nariz para frente. E eu, por acaso, tenho o nariz para trás?”


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