29/03/2024 - Edição 540

Especial

Candidato a caudilho

Publicado em 21/04/2020 12:00 -

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O presidente Jair Bolsonaro assumiu de vez que é candidato a caudilho. Em comício para seus simpatizantes, de caráter escandalosamente golpista, anunciou: “Nós não queremos negociar nada. Queremos é ação pelo Brasil. Chega da velha política. Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no poder. Lutem com o seu presidente”.

Não é possível dizer que Bolsonaro desta vez passou dos limites, pois, a rigor, ele já os havia ultrapassado quando, ainda militar, se insubordinou ou então, quando deputado, violentou o decoro parlamentar seguidas vezes. No primeiro caso, recebeu uma punição branda; no segundo, nem isso. Ou seja, a pusilanimidade das instituições ao lidar com Bolsonaro deu-lhe a segurança de que, para ele, não há limites, salvo os ditados por seu projeto autoritário de poder.

É reconfortante, no entanto, observar que, desta vez, integrantes de todas as instituições da República se manifestaram com firmeza contra mais essa afronta de Bolsonaro e de seus seguidores à democracia. Até mesmo o procurador-geral da República, Augusto Aras, que vinha se omitindo ante a escalada bolsonarista, anunciou a abertura de um inquérito para investigar “fatos em tese delituosos envolvendo a organização de atos contra o regime da democracia representativa brasileira”. O presidente não está entre os investigados, porque não há indícios de que tenha ajudado a organizar o comício, mas o simples fato de o procurador Aras ter qualificado como atentatório à democracia um ato que teve como sua estrela o presidente da República deveria ser suficiente para embaraçar Bolsonaro.

Mas será difícil constranger o presidente, cuja desconsideração pela opinião alheia, salvo quando é a dos filhos ou dos bajuladores que o cercam, é notória. Diante da repercussão negativa de seu discurso autoritário, o presidente, como sempre, tratou de minimizar o fato, insultando a inteligência de todos. No dia seguinte à afronta, Bolsonaro negou que tivesse atacado os demais Poderes e disse que, “no que depender do presidente Jair Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo”.

Felizmente, nem a democracia nem a liberdade dependem de Jair Bolsonaro. Dependem, exclusivamente, do cumprimento da Constituição. Num arroubo à Luís XIV, Bolsonaro chegou a dizer: “Eu sou realmente a Constituição”. Não é. A Constituição é a materialização do pacto democrático, aquele ao qual todos se submetem, do mais humilde cidadão ao presidente da República.

Mas Bolsonaro, como sempre fez em sua trajetória política, está testando a disposição da sociedade de defender a ordem democrática por ele sistematicamente ameaçada. Pode-se quedar inerte diante das bravatas bolsonaristas, permitindo que se instaure um clima golpista, mas também se pode riscar uma linha no chão e dizer que, deste ponto em diante, é o terreno do intolerável.

Por isso, espera-se que o até agora silente ministro da Justiça, Sérgio Moro, faça jus à sua fama de inflexível cruzado da moralidade e da lei no exercício do serviço público e manifeste pelo menos desconforto diante do comportamento acintosamente impróprio de Bolsonaro na chefia da Nação. O mesmo se espera dos tantos ministros do presidente, militares reformados e da ativa, tidos como bedéis do governo, responsáveis por conter os muitos excessos de Bolsonaro. Até agora, contudo, predomina o silêncio – tão mais embaraçoso quando se recorda que o ato golpista protagonizado pelo presidente Bolsonaro, que é o comandante em chefe das Forças Armadas, ocorreu no Dia do Exército e diante do QG do Exército.

Consta que a afronta bolsonarista gerou mal-estar nas Forças Armadas, que não querem se ver vinculadas a movimentos que pedem a volta da ditadura militar e de medidas de exceção, como o famigerado AI-5, em franco desafio à Constituição. Para os generais, a guerra a ser vencida hoje não é contra os inimigos que Bolsonaro inventa todos os dias, mas contra o coronavírus.

Mas a guerra de Bolsonaro, já está claro, é contra as instituições da República e contra a maioria absoluta dos brasileiros, afrontados por um presidente que só se importa com o poder. Quem estiver na trincheira com Bolsonaro, seja no governo, seja em movimentos golpistas, vai se desmoralizar junto com ele.

Rei Sol?

"Eu sou, realmente, a Constituição", disse. "E eu tenho conduzido o Brasil orientado e fiel aos interesses do povo brasileiro. Nada eu faço que não esteja de acordo com eles."

O conceito de povo que ele adota, aliás, é o do Velho Testamento, o de um povo escolhido. No seu caso, é os 12% da população que aceita fazer carreata que buzina em frente a hospital e protesto que impede passagem de ambulâncias.

A declaração é uma paráfrase da célebre citação atribuída a Luís 14 (1638-1715), monarca absolutista francês: "o Estado sou eu".

Dado o limitado conhecimento de História do presidente, é possível que alguém tenha entregue a frase como um caco a ser inserido em seu discurso e criar mais uma polêmica. Ou ele realmente chegou até isso sozinho – o que é politicamente e psicologicamente preocupante, pois demonstra que sua personalidade, com manias de grandeza e viés autoritário, é mais perigosa do que o imaginado.

Essa forma de agir, como se estivesse acima de tudo e de todos, desfrutando de um poder absoluto que ele não tem, com sua palavra sendo lei como o "Rei Sol" francês, pode ser comprovado na forma anti-republicana através da qual trata o país.

Bolsonaro acredita que pode fazer e falar o que bem entender, quando bem entender, da forma que bem entender. As instituições que deveriam proteger a democracia frente aos ataques perpetrados não só pelo presidente, mas por toda família, resumem suas ações, por vezes, a notas indignadas. E o procurador-geral da República, de olho em uma cadeira no STF, faz tudo ao seu alcance para proteger o Rei Sol.

Não há possibilidade de golpe por parte de Bolsonaro ou de impeachment pelo Congresso, neste momento, seja pela popularidade do presidente, seja pela conjuntura. Mas corremos o risco de normalizar esse tipo de comportamento. Primeiro passo para que um governo autoritário seja internalizado como possibilidade real para muita gente cansada da bagunça que o próprio presidente criou.

Cúpula militar precisa se manifestar com franqueza

Enquanto Jair Bolsonaro fazia discurso inflamado em manifestação não só contra o Supremo e o Congresso, mas a favor de um golpe militar e a volta do famigerado AI-5, um de seus filhos divulgava o vídeo de uma fila de sujeitos praticando tiro, alguns metidos em camisetas pretas com o rosto do presidente e todos gritando: Bolsonaro!

No mesmo domingo (19), o presidente e seus três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado, postavam a foto do café da manhã familiar com uma curiosidade: o quadro na parede não era de uma natureza morta ou da tradicional Santa Ceia, tão comuns nos lares brasileiros, mas de uma metralhadora AK-47, deveras inspiradora.

No dia seguinte (20), circulava um vídeo em que várias dezenas de soldados corriam num calçadão da zona sul do Rio e no fim se aglomeravam, ainda na praia, à luz do dia, gritando “Bolsonaro” e “mito”. Fariam isso sem orientação de superiores? Esses superiores pediram autorização ao Comando Militar do Leste? O comandante consultou o Comando do Exército em Brasília? Afinal, pode?

O que mais impressionou civis e até militares, porém, foi o local onde Bolsonaro discursou para militantes pró-golpe e AI-5: o Setor Militar Urbano, com o Quartel-General do Exército ao fundo. Um oficial pergunta: e se os políticos decidirem fazer protesto ali? Eu acrescento: e se a CUT e o MST também?

Aboletado na carroceria de uma caminhonete, vestido e agindo como vereador em campanha para a prefeitura de Cabrobó e liderando um ato ostensivamente antidemocrático, Jair Bolsonaro esquecia-se de que, além de presidente da República, eleito por 57 milhões de brasileiros, ele é também comandante em chefe das Forças Armadas – ambas as funções exigem decoro e compostura.

O episódio – que estressou o domingo e que o ministro do STF Luís Roberto Barroso chamou de “assustador” – deixou uma dúvida perturbadora: os comandos militares compactuam com pedidos de golpe e AI-5? Acham normal o uso do SMU e do QG – ou seja, da imagem das FFAA – para atos golpistas? Na primeira reação, generais do governo demonstraram “desconforto”, depois falaram em “saia-justa” e no fim do dia passaram a admitir “irritação”, enquanto discutiam como “reduzir danos”.

E os danos são muitos. As Forças Armadas, instituições de Estado, não de governo, durante décadas mantiveram-se profissionais e imunes à política e a governos que vêm e vão. Consolidaram-se assim no primeiro lugar de prestígio junto à sociedade, sem concorrentes. Vão jogar tudo fora em favor de um presidente, e logo de um que só faz o que lhe dá na veneta?

Há, ainda, a questão da hierarquia. Bolsonaro expõe Exército, Marinha e Aeronáutica a um velho fantasma: as divisões internas. Como já me ensinava o general Ernesto Geisel, quando a política entra por uma porta nos quartéis, a hierarquia se vai pela outra. Tendo como fato que a cúpula militar realmente considerou “péssimo” o teatro antidemocrático de Bolsonaro no domingo, a pergunta seguinte é: e as bases, os capitães, majores, sargentos – e suas famílias – acharam o quê?

O vice Hamilton Mourão já disse marotamente que “está tudo sob controle, só não sabe de quem” e nós, meros mortais, ficamos sem entender nada. É uma grande enrascada e remete à entrevista do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, em dezembro de 2016, em que ele relatou como respondia aos civis “tresloucados” que vinham bater à sua porta pedindo intervenção militar: “Chance zero!” Em nota, no dia 20, o Ministério da Defesa foi mais suave, mas disse que as FFAA trabalham pela “paz e a estabilidade”, “sempre obedientes à Constituição”. Logo, contra o golpe. É o que se espera dos líderes militares, diante não apenas da Nação, mas da história.

Bolsonaro transformou o flerte de sua Presidência com o golpismo num processo de corrosão da imagem do Brasil. Cada vez que o capitão dá uma de cachorro louco, confraternizando com apoiadores golpistas, envergonha o país no estrangeiro e constrange a cúpula militar.

As Forças Armadas trabalham para "manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal", sentiu-se obrigado a esclarecer o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, numa nota oficial. A manifestação foi constrangedoramente imprescindível.

A nota é necessária porque o silêncio dos militares poderia soar como um aval para a presença de Bolsonaro na manifestação de domingo em defesa da intervenção militar, da reedição do AI-5 e do fechamento do Congresso e do Supremo. O texto constrange porque todos sabem que ele não deveria existir.

Assim como o perfume não precisaria ser inventado se não existisse o fedor, também a nota do Ministério da Defesa não teria sido redigida se Bolsonaro exibisse um comportamento compatível com o que se espera do chefe de uma nação democrática.

Sem mencionar Bolsonaro, o general Azevedo e Silva sinalizou o que o presidente deveria estar fazendo em vez de desperdiçar o seu tempo em manifestações antidemocráticas. Fez isso ao informar quais são, no momento, as prioridades das Forças Armadas.

O general escreveu que a crise do coronavírus requer o "entendimento e esforço de todos os brasileiros." Realçou que a tropa se equipa para combater o vírus, "inimigo comum a todos", e suas "consequências sociais".

O Brasil não teria sido pendurado de ponta-cabeça nas manchetes da imprensa internacional se Bolsonaro cultivasse os mesmos objetivos das Forças Armadas. O mal de um presidente declara "nós não queremos negociar nada" no meio de apoiadores hidrófobos e de miolo mole é o pessoal que observa de longe não conseguir distinguir quem é quem.


Sombra dos militares

A diretora da Fundação Heinrich Böll (ligada ao Partido Verde alemão) no Rio de Janeiro, Annete von Schönfeld, comenta que o período da ditadura nunca foi devidamente reavaliado no país. "Mas não tenho certeza se os manifestantes desse movimento de protesto se disporiam a uma reavaliação e estariam dispostos a rever suas posições."

Para Von Schönfeld, há método no discurso de Bolsonaro. "Desde que assumiu o cargo, ele tem explorado até onde pode ir. Ele diz coisas indizíveis e volta atrás no dia seguinte. Mas, ao fazê-lo, ele cria um discurso, e isso é perigoso."

Ela aponta para a reação tímida dos militares. "Não se pode mais ter certeza sobre o grau de rejeição a estruturas autoritárias em algumas partes da sociedade brasileira e sobre como os militares se comportariam. Teria sido melhor se eles tivessem adotado um distanciamento mais claro", afirma von Schönfeld.

O fato de Bolsonaro poder testar os limites do que é moralmente permitido sem sofrer consequências tangíveis é uma demonstração deliberada de poder por parte do presidente, afirma Von Schönfeld. Alguns políticos e representantes da sociedade civil protestaram, especialmente por meio das mídias sociais. "Em outras sociedades, haveria pedidos de renúncia. No Brasil, não."

A diretora do escritório da Fundação Konrad Adenauer (ligada ao partido alemão União Democrata Cristã (CDU)) no Rio de Janeiro, Anja Czymmeck, expressa confiança na democracia brasileira. Ela observa que governadores e prefeitos puderam seguir suas próprias políticas em meio à crise do novo coronavírus, e o Congresso trabalha de forma independente.

"A reação do ministro da Defesa mostrou que os militares estão comprometidos com a paz e a estabilidade, sob a Constituição. E os militares no gabinete têm trabalhado nessa direção. As instituições estão funcionando", resume Czymmeck.

Os manifestantes radicais são minoria mesmo entre os eleitores de Bolsonaro, afirma Fico. "Mas há uma dimensão simbólica quando o próprio presidente se reúne, mais uma vez, com manifestantes que seguram tais faixas e cartazes."

A radicalização de Bolsonaro mostra o quão acuado ele está. "Acho que o presidente está muito preocupado com a possibilidade de perder o cargo por meio de um impeachment. Isso é uma possibilidade concreta hoje em dia", opina o historiador o historiador Carlos Fico.

Os generais

“Eu não vejo nenhuma possibilidade de dar um golpe com as Forças Armadas e elas serem apoiadoras de uma ‘ditadura Bolsonaro’. O Brasil tem instituições, tem problemas. Mas as instituições funcionam, precisam e sempre precisarão de aperfeiçoamento. Isso é normal. Tem que apresentar plano de melhoria das instituições”, disse o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo de Bolsonaro.

General de divisão da reserva do Exército, Santos Cruz é uma voz respeitada dentro das Forças Armadas. Antes de virar ministro, foi comandante das forças da ONU no Haiti e no Congo e secretário nacional de Segurança Pública. Foi demitido por Bolsonaro após ataques do chamado grupo ideológico, liderado pelo vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente. 

Aperfeiçoar as instituições, na opinião de Santos Cruz, não é restringir a atuação das instituições democráticas, mas melhorar o nível dos políticos e os critérios para candidatura. Barrar quem tem processos ou condenações na Justiça por mau uso do dinheiro público, por exemplo. Para o general, não se justifica a tese defendida por bolsonaristas de que o presidente tem sido sabotado pelo Congresso e impedido de governar. Tese essa usada para justificar uma intervenção. 

Os problemas que Bolsonaro enfrenta para governar e atribui ao Congresso são produzidos, segundo o ex-ministro, dentro do próprio governo. “Tem como administrar o coronavírus na parte da saúde e suas consequências econômicas, mas não é brigando com todo mundo. É só liderança e calma. Crise política, todo o dia tem um conflito diferente com origem no governo ou nos seus apoiadores mais fanáticos familiares e amiguinhos. A sociedade tem que viver em paz e não nessa esquizofrenia política”, observa Santos Cruz.

Coronel reformado do Exército e chefe de comunicação social do influente Clube Militar do Rio de Janeiro, Ivan Cosme Pinheiro considera que o Congresso tem dificultado a atuação de Bolsonaro, criando dificuldades para a governabilidade e impedindo a aprovação de propostas consideradas importantes pelo Executivo. Mas, a exemplo de Santos Cruz, ele considera que não há condições nem apoio entre os militares para uma eventual intervenção. 

Ressaltando que dava sua opinião pessoal, e não como porta-voz do clube, o coronel disse que a maioria das pessoas que faz esse tipo de pedido desconhece sua complexidade. “Não é botar um carro do Exército na rua e pronto”, afirmou. “O Exército nos livrou do comunismo em 1964. Mas dez anos depois os militares já eram questionáveis. Será que os militares querem se jogar numa empreitada dessa?”, questionou.

Para Ivan Cosme, as consequências de uma eventual intervenção poderiam ser trágicas no Brasil de hoje, dada a polarização política.  “Tem um complicador internacional muito grande. O mundo vive uma época do politicamente correto. Intervenção soa, até pela ideia difundida pela esquerda, como algo errado. O risco imediato é de fuga de capital e de investimento. Outro ponto a se pensar é que, em um país polarizado, como está o Brasil, as consequências de uma intervenção poderiam ser trágicas”, ressaltou. “Quem quiser dar o start disso aí tem de pensar muito”, completou. 

Segundo o coronel, as Forças Armadas são vistas de maneira deturpada por parte da sociedade. “Nossa formação é muito legalista e, a cada dia, mais humanista. Fomos criados dentro do regime democrático e nossa intenção é viver no regime democrático”, disse. “A visão de parte da sociedade é errada. Somos muito mais legalistas. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica talvez sejam as instituições mais democráticas do país. Fiz todos os cursos da carreira militar. Em todos eles, a ideia era justamente democracia, democracia, isso entranha em você”, ressaltou o oficial, ex-professor da Fundação Getúlio Vargas. 

Em seu primeiro mandato de deputado federal, o General Girão (PSL-RN) é amigo do presidente Jair Bolsonaro desde o tempo em que ambos serviram na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), no Rio na década de 1970. Girão postou no Twitter, no domingo, a imagem de uma onça bebendo água na selva com a frase que remetia literalmente à foto, o que levantou questionamentos sobre a posição do deputado em relação a uma possível intervenção militar. 

“Sou contra, sempre fui contra e continuarei sendo contra. Não vejo clima para intervenção”, disse o general reformado de Brigada do Exército. “Apenas considero como justa e legítima a vontade de um grupo de pessoas de ir às ruas e demonstrar sua indignação com o que está sendo feito em relação a alguma uma coisa”, ressaltou. 

Para o deputado, os protestos demonstram que a população, a exemplo de 2018, não aceita uma “governabilidade à base de pressões e indicações”. Girão diz que as decisões na Câmara estão concentradas nas mãos do presidente Rodrigo Maia e dos líderes partidários e que os demais parlamentares não são ouvidos na definição da pauta legislativa. “Pedimos que se pautasse a destinação dos recursos do fundo eleitoral para o combate ao coronavírus. O presidente da Câmara nem colocou em votação. Um absurdo. O que se viu nesse domingo foi uma grita da sociedade”, disse o deputado, citando uma proposta que ganhou corpo principalmente entre os apoiadores de Bolsonaro. 

A crítica feita a Maia por Girão não é compartilhada pelo outro general deputado. Oficial reformado do Exército e coordenador das candidaturas de militares nas eleições de 2018, o General Peternelli (PSL-SP) considera positivo o trabalho feito pela Câmara e o seu presidente. “Vejo que a Câmara desenvolve um trabalho democrático. Gosto do trabalho da Câmara como um todo”, disse o parlamentar paulista ao Congresso.

 “O momento não era para ter aglomerações, no meu ponto de vista, porque a pandemia ainda preocupa. Quanto menos polemizar agora, melhor. Há aqueles que acham que o Rodrigo Maia quer dar o golpe e outros começam a defender o impeachment do presidente da República. Não há motivo nem para AI-5 nem para impeachment”, afirmou. “E não tem respaldo para nenhuma das duas coisas no contexto atual. O momento é de se concentrar no combate ao coronavírus. Falar em medida de exceção [como a volta do AI-5] agora não contribui”, acrescentou o general deputado.

Tática do morde e assopra

Nos últimos dias, Bolsonaro reiterou o comportamento que adota há muito tempo: o morde-e-assopra. Depois de prestigiar manifestantes que, diante de um quartel, em Brasília, clamavam por intervenção militar com Bolsonaro no poder, fechamento do Congresso Nacional e do Supremo, novo AI-5. Não só lhes acenou, mas proclamou que estava ali porque neles acreditava. Disse nada negociar, pois acabou a patifaria da velha política e agora o povo ocupa o poder por meio de seu presidente.

Nem um só gesto a desencorajar clamores por ruptura institucional, golpe militar e encerramento dos demais Poderes. Ao enaltecer os manifestantes, endossou seus anseios; dizendo que acreditavam no Brasil ao lhe prestigiar diante de um quartel, Bolsonaro equiparou-se ao próprio País. Síntese do populismo autoritário.

No dia seguinte, diante do Alvorada, aproveitou o conveniente apelo de um seguidor para repelir ideia que, na véspera, endossara: fechar os demais Poderes. Por que o fez? Pressionado por militares? Assustado com a repercussão? Tendo como parâmetro a longa trajetória de Bolsonaro: recuou porque sempre retrocede taticamente após atacar. Porém, o “mito” se construiu não com recuos, mas com ataques. Segue idêntico, sempre avançando mais que recuando.

“Fez assim com manifestações misóginas, racistas, homofóbicas, autoritárias e desumanas. Questionado, desconversa, sai pela tangente, acusa má interpretação ou distorção – para, em seguida, retomar o estilo que lhe distingue”, afirma o cientista político Cláudio Gonçalves Couto.

Reações

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, disse que o autoritarismo e o fundamentalismo são ‘nefastos’. Ao participar de uma videoconferência com representantes de seis entidades, Toffoli afirmou que não há qualquer solução para o País que não seja dentro da democracia.

Em sua fala, Toffoli frisou ‘quão nefasto é o autoritarismo, o quão nefasto são os fundamentalismos, o quão nefasto é o ataque às instituições e à democracia’. O evento foi organizado em parceria com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Comissão Arns, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Academia Brasileira de Ciências e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

“Neste momento, é bom sempre relembrar a importância que essas seis instituições tiveram na redemocratização do País, no processo constituinte”, discursou Toffoli. “Não é possível admitir qualquer outra solução que não seja dentro da institucionalidade, do Estado democrático de Direito, da democracia.”

Outros ministros do STF manifestaram-se antes de Toffoli. Gilmar Mendes afirmou que invocar o AI-5 é “rasgar o compromisso com a Constituição”. Já Luis Roberto Barroso disse que “é assustador ver manifestações pela volta do regime militar”. Para Marco Aurélio Mello, uma escalada autoritária está em curso no Brasil. “Não sei onde o capitão está com a cabeça”, questionou.

Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, comparou o discurso ao momento em que o general Júlio César violou a proibição do Senado romano e atravessou com suas tropas o rio Rubicão, desencadeando uma guerra civil. Para ele, Bolsonaro “atravessou o Rubicão” e a “sorte da democracia brasileira está lançada”.

Alguns generais do Exército, Aeronáutica e Marinha ouvidos pelo Estadão condenaram a presença de Jair Bolsonaro no ato em Brasília. Para um deles, a manifestação teve uma “simbologia dupla muito forte” por ter acontecido em frente ao QG e no Dia do Exército. Além disso, outros observaram, o presidente é o comandante em chefe das Forças Armadas e sua participação em um ato que pede intervenção militar tem “gravidade simbólica”. O jornal ouviu sete fontes militares anônimas. Três delas contemporizaram o episódio, apesar de manifestarem “desconforto”.  

O Fórum Nacional dos Governadores havia divulgado no sábado uma carta de apoio ao Congresso, quando a crise política se restringia aos ataques feitos nos últimos dias por Bolsonaro a Rodrigo Maia. “A saúde e a vida do povo brasileiro devem estar muito acima de interesses políticos, em especial nesse momento de crise. Não julgamos haver conflitos inconciliáveis entre a salvaguarda da saúde da população e a proteção da economia nacional, ainda que os momentos para agir mais diretamente em defesa de uma e de outra possam ser distintos”, diz o documento assinado por 20 governadores, dentre eles políticos de direita como Ronaldo Caiado (Goiás) e Carlos Moisés (Santa Catarina).  

"Lamentável que o presidente da República apoie um ato antidemocrático, que afronta a democracia e exalta o AI-5. Repudio também os ataques ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal. O Brasil precisa vencer a pandemia e deve preservar sua democracia", disse o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

"Em vez de o presidente incitar a população contra os governadores e comandar uma grande rede de fake news para tentar assassinar nossas reputações, deveria cuidar da saúde dos brasileiros. Seguimos na missão de enfrentamento da covid-19", escreveu o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC).

"Democracia não é o que o presidente Bolsonaro pratica: mandar o povo brasileiro para as ruas, correndo riscos de se contaminar, de tornar o nosso Brasil um país doente, em meio a uma grave crise de saúde mundial", seguiu Witzel. "Democracia é ter responsabilidade com o que se fala. Democracia é respeitar o Congresso, as instituições e ter uma postura condizente com o cargo que se ocupa."

Joice Hasselmann, deputada e líder do PSL (ex-partido de Bolsonaro) na Câmara, também repudiou a atitude do presidente. "Depois diz que o Congresso é que provoca o caos. @jairbolsonaro não respeita a democracia, as instituições e as liberdades. Você é a favor da democracia ou do AI-5?", escreveu no Twitter.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso classificou a participação de Bolsonaro no ato de "lamentável". "É hora de união ao redor da Constituição contra toda ameaça à democracia. Ideal que deve unir civis e militares; ricos e pobres. Juntos pela liberdade e pelo Brasil", disse.

A organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) no Brasil emitiu uma declaração na qual classifica a participação de Bolsonaro na manifestação de "irresponsável e perigosa" e um "flagrante desrespeito às recomendações do seu próprio Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde".

"Além disso, ao participar de ato com ostensivo apoio à ditadura, Bolsonaro celebra um regime que causou sofrimento indescritível a dezenas de milhares de brasileiros, e resultou em 4.841 representantes eleitos destituídos do cargo, aproximadamente 20 mil pessoas torturadas e pelo menos 434 pessoas mortas ou desaparecidas", escreveu a organização.

A Anistia Internacional também chamou de "grave" a presença do presidente na manifestação. "A Anistia Internacional repudia qualquer manifestação pública que tenha como objetivo pedir a volta do regime militar, pedir a volta do AI-5, pedir a volta de um regime político que trouxe para o Brasil tanto sofrimento, trouxe tortura, trouxe desaparecimentos."

A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) divulgou carta aberta ao Congresso Nacional em defesa na democracia (íntegra). No documento, o movimento municipalista elogia a condução “responsável, ágil e republicana” dos chefes do Legislativo durante a crise sanitária e afirma que não concorda com ações que coloquem em risco a democracia.

A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e outras cinco entidades da magistratura federal afirmaram que ‘não admitirão qualquer retrocesso institucional ou o rompimento da ordem democrática’. Em nota, as associações pedem união das autoridades públicas, ‘evitando polêmicas desnecessárias que possam gerar sérias crises institucionais’.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) também se posicionou sobre as manifestações contra o Supremo Tribunal Federal, a Câmara e o Senado, ‘além de outras medidas ilegais e que agridem a Constituição Federal’ pontuando que está pronta ‘para atuar em defesa da Constituição, da magistratura e do sistema de Justiça’.

A entidade sinalizou ainda que no atual momento de crise, ‘o caminho correto para a busca das soluções é o cumprimento rigoroso da lei e o trabalho em conjunto das instituições em prol da construção de soluções’.

A posição foi de encontro a dos juízes federais, que destacaram que o único caminho para o desenvolvimento de uma sociedade livre, justa e solidária é o respeito à democracia, à independência dos poderes e à Constituição Federal.

“A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e o pluralismo político”, afirmaram em nota

A força-tarefa da operação Lava Jato em Curitiba também comentou os atos antidemocráticos: "A força-tarefa da operação Lava Jato, como parte do Ministério Público brasileiro, defende e sempre defendeu a Constituição, a ordem jurídica, o regime democrático e o interesse público, na esfera de suas atribuições", disse em nota.

O ataque à democracia, patrocinado pelo presidente, também alarmou lideranças de movimentos sociais, governadores e parlamentares. “Bolsonaro participou hoje de manifestação em defesa do AI-5 em frente a um quartel. Todos os limites já foram ultrapassados. E sobram razões jurídicas para retirá-lo da presidência: fraude eleitoral, crimes de responsabilidade e contra a saúde pública. Tem que sair com urgência!”, escreveu o líder do MTST e candidato do PSOL em 2018, Guilherme Boulos.

Fernando Haddad, candidato do PT às eleições de 2018, afirmou que já é hora de pedir o “Fora Bolsonaro”. “O verme, mais uma vez, diz a que veio. Até quando os democratas suportarão tanta provocação, sem nada fazer? O dia do fora já chegou!”, escreveu.

Para o governador do Maranhão, Flavio Dino (PCdoB), o presidente tenta desviar o foco do coronavírus. “Para desviar o foco de suas absurdas atitudes quanto ao coronavírus e a sua péssima gestão econômica, Bolsonaro resolve atiçar grupelhos para atacar a Constituição, as instituições e o regime democrático. Bolsonaro não sabe e não quer governar. Só quer poder e confusão”, declarou.

O presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, também se manifestou pelo Twitter. “É inadmissível que o Presidente da República discurse em tom de apoio para manifestantes com cartazes que pedem volta da ditadura militar e do AI-5. O apóstolo da ignorância avança em seu projeto de destruição da democracia”, escreveu.

Investigação

Na terça (21), o STF decidiu autorizar a abertura de um inquérito para investigar a organização de atos inconstitucionais pelo país, incluindo as manifestações do último domingo que pediram o fechamento do Congresso.

A decisão foi tomada pelo ministro Alexandre de Moraes e atendeu a um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, que apontou na segunda-feira (20) que os atos podem ter violado a Lei de Segurança Nacional.

No pedido encaminhado ao STF, Aras afirmou que os protestos contaram com a participação de deputados federais, "o que justifica a competência do STF", em referência à prerrogativa de foro privilegiado dos parlamentares.

Interlocutor direto de Jair Bolsonaro na Câmara, o deputado Cabo Junio Amaral (PSL-MG) é um dos principais alvos do inquérito aberto no Supremo.

Investigadores ouvidos pela coluna Radar, da revista Veja, dizem que há “indícios veementes de autoria” contra Junio, que não está sozinho na mira da Procuradoria-Geral da República. Outro conhecido nome do bolsonarismo em situação igualmente grave nas investigações é do Rio de Janeiro.

Subcelebridade política desde que quebrou a placa de Marielle Franco, Daniel Silveira (PSL) vem capturando as atenções dos investigadores, que passaram a monitorar seus passos nas redes com especial interesse.

“O caso dele é de prisão preventiva. Eu realmente acho que esse cara quer ser preso”, diz um investigador, observando que Silveira continua agindo nas redes mesmo depois da abertura do inquérito no STF, onde ameaça as instituições e chega a nominar autoridades.

Apesar de ter participado do protesto e até realizado um discurso incendiário para os participantes, Bolsonaro não foi citado por Aras no pedido encaminhado ao STF.

Na quarta, 22, no entanto, partidos da oposição apresentaram no STF uma notícia de fato contra o presidente para que a Corte inclua o chefe do Planalto no inquérito que apura “fatos em tese delituosos” envolvendo a organização de atos antidemocráticos. São eles: PSB, PDT, PT, PCdoB, PSOL, Rede e PCB.

“Bolsonaro esteve presente nas manifestações antidemocráticas no domingo, mas não se encontra no rol de investigados a pedido do procurador-geral da República (…) São reiterados os discursos e manifestações do presidente que afrontam a democracia e endossam ideias hostis às instituições da República”, diz o recurso. “O discurso (…) contou com palavras de apoio aos manifestantes como ‘não queremos negociar nada’ e ‘acredito em vocês’, enquanto proferiam palavras de ordem contra o presidente da Câmara, o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, ostentando faixas com pedidos de fechamento de outros poderes e reestabelecimento do famigerado AI-5″.

Essa sequer foi a primeira vez que o presidente tomou parte em manifestações ditas anticonstitucionais. Em 15 de março, ele já havia cumprimentado manifestantes em Brasília que pediam o fechamento do Congresso e do STF.

Bolsonaro não foi citado no pedido de abertura do inquérito porque não há no momento indício de participação dele na organização dos atos. No entanto, em março, durante uma escala em Boa Vista, ele pediu que a população fosse às ruas e defendeu atos convocados por defensores do governo em protesto contra o Congresso. Na ocasião, disse que os movimentos "espontâneos e legítimos" atendiam aos "interesses da nação". 

Aras, que foi indicado para o cargo por Bolsonaro no ano passado sem que seu nome estivesse incluído na tradicional lista tríplice do MPF, vem sendo criticado nos últimos meses por sua inércia diante dos seguidos excessos do governo Bolsonaro.

Recentemente, ele chegou a pedir ao STF a rejeição de ações contra o governo por causa da campanha "O Brasil não pode parar", argumentando que a existência das peças publicitárias não foi comprovada, mesmo com o material permanecendo três dias no ar nas redes do governo.

Ao encaminhar ao STF o pedido de inquérito sobre os atos anticonstitucionais, Aras tentou aplacar críticas internas sobre sua conduta no Ministério Público, mas sem enfrentar diretamente o governo. Por isso, Bolsonaro não foi citado.

O fato é que, enfim, o procurador-geral da República se mexeu. Vivia-se a impressão de que o cargo ainda estava vago ou de que era ocupado por algum estafeta do Palácio do Planalto. Mexeu-se, sim, mas preguiçosamente ainda, com manha calculada, como se, numa democracia, o estado de direito devesse depender de acochambramento, de práticas entre concertadas — com "c", combinadas — e um tanto escusas para evitar ferir susceptibilidades, como se a ordem democrática devesse andar com chinelos de pelúcia para não despertar alguma fera raivosa.

Sempre será melhor um pouco do que nada. Mas que fique claro logo de cara neste texto: o papel do titular da PGR é fazer cumprir a lei. Ele deve seu cargo de procurador e seu mandato de procurador-geral à Constituição e à institucionalidade, não ao presidente da República. Adiante.

O relator, por sorteio, é o ministro Alexandre de Moraes. Aberta a investigação, ficará a cargo da Polícia Federal. O ministro já relata o inquérito que apura a indústria de agressões ao Supremo. Uma das primeiras providências, entendo, é chegar aos financiadores das manifestações golpistas. Quais os respectivos nomes dos endinheirados afins que dão suporte a atos assim?

O Brasil é o único país do mundo que proíbe as empresas de financiar legalmente partidos também legais — vale dizer: o financiamento da ordem democrática —, mas tolera a doação clandestina a grupos que promovem atos em favor de golpe militar.

É claro que há um arreglo do procurador-geral ao não pedir que se investigue a atuação de Bolsonaro. Mas a investigação, se for feita com seriedade, pode chegar aos pistoleiros que financiam a campanha em favor da ditadura.

Afastamento?

Dois advogados pediram ao STF o afastamento temporário e parcial do presidente. Pelo pedido, Bolsonaro perderia algumas de suas prerrogativas enquanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não iniciar a tramitação de um pedido de impeachment que os mesmos juristas protocolaram no Legislativo.

Entre as prerrogativas que seriam transferidas para o vice-presidente Hamilton Mourão estão a nomeação de ministros, a apresentação de projetos de lei, as relações com chefes de estados estrangeiros e a decretação de estado de defesa ou estado de sítio. Pelo pedido, Bolsonaro poderia continuar, entre outras atribuições, a sancionar e vetar leis, conceder indultos e conferir condecorações.

Com a ação, os advogados pretendem forçar a análise do pedido de impeachment pela Câmara, além de, em seus argumentos, evitar que o presidente siga cometendo crimes de responsabilidade. 

Segundo informações da jornalista Thaís Oyama, do UOL, o pedido dos advogados preocupa o Palácio por estar bem fundamentado do ponto de vista técnico e por ter caído nas mãos do ministro Celso de Mello, decano do STF, visto por aliados de Bolsonaro como um inimigo do presidente.

Entre as ações elencadas pelos advogados Thiago Santos Aguiar de Pádua  e José Rossini Campos do Couto Corrêa como possíveis crimes de responsabilidade estão a aglomeração social em contrariedade às recomendações da OMS; a incitação social da população pelas redes sociais a desrespeitarem as medidas de prevenção e isolamento; a sonegação de resultados de exame médico sobre o possível contágio por Covid-19; e a reiteração da existência falsa de “dossiê” contra os integrantes dos demais poderes. 

Além do afastamento do presidente, os autores pedem ao STF que obrigue Rodrigo Maia a colocar em análise o pedido de impeachment; que determine que o presidente se abstenha de participar de aglomerações; que exija de Bolsonaro a comunicação prévia de suas pretensões de saídas em público e que o presidente apresente seu prontuário médico e os resultados de exames de covid-19. 

Outros 24 advogados e advogadas de vários estados brasileiros apresentaram, no último dia 17, uma notícia-crime ao Supremo, contra o presidente Jair Bolsonaro, em razão da “insistente conduta de inobservância às medidas de isolamento social orientadas pela Organização Mundial de Saúde e pelo próprio Ministério da Saúde, bem assim de descumprimento ao que preceituam os Decretos nºs 40.550 e 40.583, ambos de 2020, editados pelo Governador do Distrito Federal, que proíbem aglomerações durante o período da pandemia causada pela COVID-19”. Os autores da iniciativa integram o Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos (CNASP).

Segundo eles, o crime que teria sido praticado por Bolsonaro está tipificado no art. 268, do Código Penal brasileiro, e consiste em infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. Para os subscritores da denúncia, Bolsonaro, como qualquer cidadão comum, está submetido – e deve cumprimento – às medidas de prevenção à propagação da COVID-19, baixadas pelo Governador do Distrito Federal. Nos últimos dias, acrescentam, o referido cidadão, sem o uso sequer de máscara facial, visitou diversos estabelecimentos comerciais, promovendo a aglomeração de pessoas em torno de si, aproximou-se destas pessoas e cumprimentando-as direta e sucessivamente. “Tais comportamentos não só potencializam a transmissão a COVID-19, como desestimulam o cumprimento pelos demais cidadãos das medidas de afastamento social estabelecidas pelos Decretos em questão”, argumentam.

A notícia-crime foi distribuída ao Ministro Marco Aurélio, a quem compete verificar se ela preenche os requisitos legais e, caso positivo, encaminhá-la à Procuradoria-Geral da República, a quem compete verificar se os fatos denunciados constituem crime, dando então início à ação penal correspondente, que nesta hipótese correrá junto ao próprio Supremo Tribunal Federal, em razão do foro privilegiado de que goza o Presidente da República.

Decano decidirá sobre mandado de segurança

O juiz mais antigo no Supremo ficou fora de serviço por um tempo depois do fim das férias da corte, em fevereiro, devido a uma cirurgia em janeiro. Voltou à ativa em 13 de abril. Tem pouco mais de seis meses de atuação apenas, pois completa 75 anos em 1o de novembro e aí terá de se aposentar. Antes de sair de cena, Celso de Mello implodirá o governo Bolsonaro?

Dois processos no Supremo dão esse poder ao decano. Um sobre o impeachment de Jair Bolsonaro, outro sobre a conduta do ministro da Justiça, Sérgio Moro, quando juiz da Operação Lava Jato. Bronca com o presidente, Mello já mostrou, ao menos verbalmente. Apontou possível “crime de responsabilidade” no incentivo do ex-capitão aos atos de rua bolsonaristas de 15 de março e “atrevimento” na divulgação de um vídeo, por Bolsonaro, que comparava o Supremo a “hienas”.

O futuro do presidente está nas mãos de Mello graças ao mandado de segurança de José Rossini Campos do Couto Correa e Thiago Santos Aguiar de Pádua. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, recebeu do ministro um pedido de informações sobre o pedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro apresentado pelos advogados. “Entendo prudente solicitar, no caso, prévias informações ao Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, que deverá manifestar-se, inclusive, sobre a questão pertinente à cosgnoscibilidade da presente ação de mandado de segurança”, disse Celso de Mello.

O ex-candidato presidencial Ciro Gomes e o presidente do PDT, Carlos Lupi, protocolaram na quarta-feira (22) um pedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Com isso, os casos sob análise do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, chegam a 24, incluindo pedidos de parlamentares do PSOL e um do deputado Alexandre Frota (PSDB-SP), ex-aliado de Bolsonaro.

O documento de Ciro e Lupi acusa Bolsonaro de cometer crime de responsabilidade por ter incentivado atos contra Legislativo e Judiciário na manifestação que pedia intervenção militar. Segundo o pedido, “a incitação de manifestação contra os Poderes constituídos, a presença, apoio e endosso do presidente da República a pedidos de ruptura da ordem constitucional, do fechamento do Congresso Nacional e do STF” e a adoção de atos institucionais autoritários são uma “afronta ao princípio da separação dos Poderes, sendo, portanto, crimes de responsabilidade”.

O texto afirma ainda que Bolsonaro descumpriu orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), do Ministério da Saúde e de normas de estados e municípios quanto à adoção de medidas de prevenção de contágio do coronavírus.

O pedido lembra que a experiência em outros países demonstra que grande parte da população terá contato com o vírus, mas que, ainda assim, é preciso tomar medidas para reduzir a velocidade de contágio, de forma a impedir que o sistema de saúde entre em colapso. “As atitudes mesquinhas do denunciado resguardam apenas os interesses escusos do capital, no que se olvida que a fatura da pandemia da Covid-19 não pode ser paga com vidas alheias, em patente desrespeito a direitos individuais e sociais”, afirma o texto.

O documento estabelece que as condutas de Bolsonaro “encerram um atentado contra o exercício dos direitos individuais e sociais, ao passo que também violam patentemente as garantias individuais e os direitos sociais assegurados pela Constituição Federal de 1988".

O pedido se soma aos demais que estão na Câmara. Maia, hoje rompido com Bolsonaro, é o responsável por analisar de forma monocrática se dá ou não sequência aos pedidos de impeachment. Ele não tem prazo para tomar essas decisões.

Caso seja dada sequência, o caso é analisado por uma comissão especial e, depois, pelo plenário da Câmara. Somente com o voto de ao menos 342 dos 513 deputados é autorizado que o Senado abra o processo.

Nesse caso, Bolsonaro seria afastado até a conclusão do julgamento —ele perderia o mandato caso pelo menos 54 dos 81 senadores votassem nesse sentido.

O Brasil já teve dois episódios de impeachment: o de Fernando Collor (1992), que renunciou antes da decisão final do Senado, e o de Dilma Rousseff (2016).

Celso e os arroubos do presidente

Quando o bolsonarismo realizou uma passeata antidemocrática em 15 de março, com o incentivo do presidente, Celso de Mello emitiu uma dura nota contra o ex-capitão. A convocatória, escreveu, “revela a face sombria” do presidente e “demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo”. Mais: o presidente pode muito, mas não pode tudo, “sob pena de incidir em crime de responsabilidade”.

O decano ergueu-se também contra Bolsonaro em outubro de 2019, quando o ex-capitão divulgou nas redes sociais um vídeo que listava seus inimigos, entre os quais estava o Supremo, comparado a “hienas”. “Expressão odiosa”, disse Mello em outra nota, “atrevimento presidencial [que] parece não encontrar limites na compostura que um Chefe de Estado deve demonstrar”.

Diante do mandado de segurança, Mello pode dar uma liminar a favor do que pedem os advogados ou pode negá-la. Nas duas hipóteses, terá de levar em algum momento o caso ao plenário do Supremo. Se não levar até se aposentar, o processo será herdado por seu sucessor na corte, uma pessoa que será indicada por Jair Bolsonaro.

E quanto a Sérgio Moro, que um dia foi o favorito para a vaga? Mello será o voto de desempate em um julgamento que o juiz Gilmar Mendes proporá assim que o Supremo puder realizar sessões com os togados presentes fisicamente – por causa do coronavírus, as decisões têm sido à distância, via internet. “Temos que decidir isso logo”, declarou Mendes numa entrevista em 6 de abril.

O caso em questão é uma alegação dos advogados do ex-presidente Lula de que Moro não foi imparcial nos processos contra o petista na Lava Jato, como na condenação no caso do triplex do Guarujá. A suspeição do ex-juiz foi requerida ao STF em 2018 e ganhou corpo com a revelação, a partir de junho de 2019, de conversas secretas de Moro com procuradores lavajatistas.

A suspeição será decidida numa das duas turmas de cinco juízes do Supremo. Cabe a Mendes marcar uma data pois foi ele quem interrompeu a decisão com um pedido de vistas. Já há dois votos a favor de Moro, os de Edson Fachin e Carmen Lucia. Mendes e Ricardo Lewandowski são votos certos contra o ministro da Justiça. O desempate caberá Celso de Mello.

Ex-assessores do decano comentam que neste fim de carreira ele tem tomado decisões de olho na História. Como será que Mello vai querer entrar para a História nos casos de Bolsonaro e de Moro?

Impeachment?

A cada ato e declaração de Bolsonaro apoiando a morte da democracia, uma onda de indignação toma conta de uma parte das redes sociais. Ela dá a impressão equivocada de que o impeachment está logo ali, na esquina, e que o Brasil não suporta mais um governante incapaz e autoritário. Enquanto isso, outra parte pequena, a de seus fãs, se incendeia, fazendo crer que é iminente o fechamento do Congresso e do Supremo pelos militares que apoiam Jair Messias, bastando um empurrãozinho. A polêmica torna-se o assunto principal nos dias seguintes, dando energia ao governo e nublando o essencial.

De lado a lado, a impressão é que algo está prestes a acontecer. Mas deixemos as redes sociais por um instante. De acordo com a pesquisa Datafolha, divulgada no último dia 17, 36% da população aprova o governo Bolsonaro em meio à crise da pandemia de coronavírus – era 33%, duas semanas atrás. Os que o reprovam foram de 39% para 38%, enquanto o total de regular saiu de 25% para 23%.

Questionados se Bolsonaro tem capacidade de liderar o Brasil, 52% disse que sim e 44%, que não. A margem de erro é de três pontos para mais ou para menos. Com esses números, não se cassa um governante, mas tampouco se realiza um golpe de Estado.

O presidente coleciona crimes de responsabilidade desde que se sentou na cadeira presidencial. E pior do que suas declarações contra a democracia é o desmonte nas instituições de monitoramento e controle que tem realizado cuidadosamente. Com isso, já digeriu o Coaf, a Receita Federal, a Polícia Federal e, claro, a Procuradoria-Geral da República. O que, consequentemente, torna mais difícil investigá-lo e responsabilizá-lo pelos desvios de conduta.

Como impeachment é julgamento político e não técnico, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, não colocaria em marcha um processo contra Jair nesse contexto. Deve esperar que ele caia para a faixa de 12% a 15% de aprovação – que é o piso do presidente, formado por quem salta no abismo se ele ordenar. Ou, para demonstrar seu apoio ao "mito", quem buzina em carreata em frente a hospitais ou impede ambulância de passar.

As ruas poderiam empurrar o Congresso, mas não há a possibilidade de manifestações de rua neste momento. Dilma Rousseff, que entende de impeachment, pois já sofreu um, lembrou a mim e a Guilherme Maziero, em entrevista ao UOL, que "só bater panela contra Bolsonaro não adianta", mas que "manifestação social no isolamento é uma coisa meio difícil".

E mesmo se houvesse essa possibilidade, é difícil imaginar que esses protestos derrubariam a sua aprovação. Uma queda deve vir do aumento significativo na contagem de mortos do coronavírus – de quem ele, primeiro, menosprezou a gravidade, depois, sabotou as políticas de combate. E, mais provavelmente, da dificuldade de retomada nos empregos pós-crise.

A economia já patinava antes da pandemia, apesar da tentativa do governo de recontar a história. Agora, o presidente sabe que está com lama até o pescoço e busca, desesperadoramente, terceirizar a responsabilidade nas medidas de isolamento social baixadas por governadores, como João Doria e Wilson Witzel. Apesar de sua própria demora em implementar medidas decentes para salvar empregos e empresas, tira a si mesmo da equação.

Não importa de quem é a culpa, a demora em sair de uma economia em ruínas pode levar à perda de paciência e, com isso, queda de popularidade. O que abre uma janela de oportunidade para cassar seu mandato. Ou, se o Brasil aguentar, mantê-lo sangrando, frágil, até outubro de 2022.

Pelo que se escuta entre parlamentares, uma solução não deve ser tomada no meio da crise. Há um impasse: o Congresso não consegue cassá-lo agora e ele não tem força para deixar de lado sua tutela militar e baixar um autogolpe. Isso não significa que não dê azia e angústia, domingo após domingo, vermos o presidente da República queimando a Constituição na frente de um prédio público diferente.

O que vai continuar se repetindo no curto prazo. Como consequência, o esgarçamento institucional é irreparável. Além de mortes e desemprego, Bolsonaro vai entregar uma democracia menor após a pandemia.

Em meio à repercussão negativa do comparecimento do presidente Jair Bolsonaro a um ato de caráter golpista, houve quem tentasse minimizar o gesto, dizendo que nada no comportamento do presidente configurava qualquer ameaça à democracia.

Do mesmo modo, há quem diga e repita que Bolsonaro até agora não fez nada que pudesse ser caracterizado como crime de responsabilidade – passível, portanto, de impeachment. Há até mesmo alguns mais exaltados que desafiam os críticos das atitudes do presidente a apontar um único gesto concreto de Bolsonaro contra o regime democrático.

De fato, a lei que rege o impeachment (Lei 1.079/50) é vaga o bastante para permitir múltiplas interpretações, a depender da disposição política do Congresso de afastar o presidente. Lá está dito, por exemplo, que é crime contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (artigo 9.º). Considerando que Bolsonaro já fez um comediante responder por ele numa coletiva de imprensa para humilhar os repórteres, já ofendeu a honra de mulheres jornalistas e já divulgou um vídeo pornográfico pelas redes sociais, entre outras peripécias, o tal artigo parece sob medida para ele.

Mesmo assim, não parece provável, ao menos neste momento, que Bolsonaro venha a sofrer um processo de impeachment por conta de sua conduta. Também, por ora, são escassas as chances de prosperar o argumento de que Bolsonaro cometeu crime em razão de seu clamoroso desdém pela saúde pública, em plena pandemia de covid-19, ao promover aglomerações em seus comícios fora de hora, como denunciam os autores de uma petição enviada ao Supremo Tribunal Federal para obrigar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a analisar um pedido de impeachment por eles encaminhado. A petição, que arrola vários outros supostos crimes de Bolsonaro, chega a requerer que os poderes presidenciais sejam transmitidos ao vice, Hamilton Mourão, para evitar que “o presidente da República prorrogue a reincidência delitiva de crimes de responsabilidade”.

Em geral, esse tipo de argumento tem sido tratado como exagerado pelos que relativizam a conduta de Bolsonaro. Para estes, a democracia não corre nenhum risco quando o presidente apronta das suas. “O presidente tem o jeito dele”, minimizou, por exemplo, o vice Mourão. Ademais, dizem, Bolsonaro nada fez contra o Congresso, o Judiciário ou a imprensa. “Bolsonaro é um democrata”, concluiu o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Decerto Paulo Guedes, Hamilton Mourão e outros consideram que só há ameaça à democracia quando decretos presidenciais liquidam as liberdades e instauram a ditadura. O problema é que, quando se chega a esse ponto, significa que a democracia acabou faz tempo.

A democracia é uma construção permanente, e há várias maneiras de debilitá-la, muito antes da edição de decretos ditatoriais. A democracia é ameaçada quando um presidente usa a visibilidade e a importância institucional de sua cadeira para fazer carga contra outros Poderes, como faz Bolsonaro; é ameaçada quando militantes virtuais, alguns com assento no Palácio do Planalto, confundem a opinião pública com mentiras as mais diversas para desmoralizar a oposição e o contraditório, imprescindíveis para a saúde democrática; e é ameaçada quando o presidente sistematicamente criminaliza a política, sugerindo que a “vontade do povo” é exclusivamente por ele representada e deve ser atendida sem qualquer discussão.

Nada disso está expresso de modo explícito nos códigos legais brasileiros; logo, em tese, não constituem crime de responsabilidade. Mas tudo isso, quando somado e sistematicamente realizado, envenena aos poucos a atmosfera democrática, tornando aceitáveis até mesmo ideias liberticidas em nome da salvação nacional.

Assim, se e quando o tal crime de responsabilidade for seriamente invocado, será como reação natural à degradação da democracia – que, para o bolsonarismo, deve ser finalmente destruída para impedir que o inimigo continue a se interpor entre o “povo” e seu destino glorioso, anunciado pelo seu líder.

Poderá será tarde demais.


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