26/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Era uma vez Osmar

Publicado em 15/04/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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Era uma vez um jovem estudante de medicina. Vamos chamá-lo de Osmar. Durante a ditadura militar, ele e sua namorada, Mônica, envolvidos no ativismo dos diretórios estudantis, foram perseguidos pela polícia. Numa madrugada, soldados invadiram a casa de Mônica e a levaram para interrogatórios. Durante os dias de cárcere, Mônica foi torturada, estuprada. Quando finalmente deixou a prisão, ela e Osmar passaram a viver em fuga. Tiveram que optar pelo auto-exílio na Argentina. 

Eu só posso imaginar as cicatrizes físicas e psicológicas que a perseguição política deixou nestes jovens. O número de vezes que Osmar teve que consolar Mônica, acordada aos gritos por pesadelos incessantes. Deve ter sido horrível. Quiçá inesquecível. 

Cerca de dois anos depois, regressaram ao Brasil. Ainda traumatizados, optaram por um esconderijo numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, Santa Rosa. Lá, Osmar abriu um consultório e estabeleceu-se como um dos poucos médicos da cidade. Logo, fazia parte da elite local. Quando o MDB procurou candidatos locais na redemocratização, encontrou em Osmar uma figura conhecida e respeitada. Tornou-se prefeito da cidade. Depois, virou suplente na Câmara Federal. 

De lá para cá, foi deputado federal, ministro exonerado em duas das três vezes em que ocupou o cargo e completou a transição de manifestante de esquerda para conselheiro do Presidente que é fã declarado de Brilhante Ustra, o homem que torturou sua namorada.

Como escritor e dramaturgo, me interessam estes arcos de personagens. Como alguém que sofreu perseguição e tortura pode se colocar do lado de quem vangloria os próprios torturadores? Como alguém com treinamento científico pode se tornar um dos maiores divulgadores de fake news do governo? 

Fosse Osmar um personagem criado por mim, diria que se trata da história de um jovem que aprendeu que só há segurança no seio do poder. Que o pragmatismo cínico é o único caminho real para o progresso, ainda que não se trate de progresso para todos. Meu Osmar hipotético teria se acostumado a engolir sapos. Aprendera que a lealdade incondicional vale ouro para políticos menos hábeis. 

Esse Osmar imaginário teria encontrado num governo de um presidente incompetente e paranoico um verdadeiro celeiro de oportunidades. A ponto de ocupar dois ministérios em dois anos. 

Osmar sonhava mesmo era com o terceiro: o da saúde. Mas parece que a ala militar do governo não deixou depois do desempenho pífio de Osmar como ministro. Fora considerado "tecnicamente raso".

Dizem que Osmar ficou sentido pelo presidente ter acatado a orientação do "comitê presidencial de fato". Imagino a dor e frustração ao ser traído por um aliado. Alguém que preferiu decepcioná-lo a indispor-se com seus senhores poderosos. 

Imagino se este Osmar hipotético, ao se lembrar do que fizera com Mônica, apreciaria a ironia da situação que agora vive. 

Hipoteticamente falando, claro.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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