25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Coronavírus pode dizimar comunidades indígenas

Publicado em 26/03/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Uma portaria da Fundação Nacional do Índio (Funai) publicada no Diário Oficial da União no último dia 19 causou forte apreensão entre indigenistas. O texto concede autorização para que as 39 coordenações regionais do órgão, que estão repletas de gestores indicados politicamente, possam estabelecer contato com povos isolados por conta da pandemia do novo coronavírus.

Mas, pelo regimento interno da autarquia, as coordenações regionais não têm poder para isso. Somente os técnicos das Frentes de Proteção Etnoambiental estão autorizados a acompanhar esses grupos, em casos de necessidade à sobrevivência deles.

Na portaria, a atual gestão da Funai afirmou que em princípio esses povos seguirão sem contato, mas que esse entendimento “pode ser excepcionado caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado e deve ser autorizada pela CR (coordenação regional)”.

Em entrevista à DW Brasil, o consultor internacional de políticas para povos indígenas isolados Antenor Vaz projeta um cenário de genocídio caso a medida seja colocada em prática. Para o sertanista, com mais de 25 anos de experiência em campo junto a essas populações, o episódio configura mais uma investida de grupos religiosos com representação na autarquia e outras instâncias do governo federal.

Em outubro do ano passado, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, manobrou internamente para exonerar o técnico que estava há nove anos na coordenação que responde pelos isolados e nomeou o missionário evangélico Ricardo Lopes Dias para o cargo — ocupado por um nome externo ao quadro técnico pela primeira vez desde sua criação.

"Duas frentes muito fortes ameaçam os povos isolados. Uma mira o território e tem como agentes o agronegócio, as mineradoras e as grandes empresas de infraestrutura. A outra, liderada pelas missões evangélicas proselitistas e fundamentalistas, quer as almas. Essas duas frentes se aliam e estão dentro do governo”, avalia. "Minha posição é de extrema dor por ver todo um processo de evolução, compreensão e formulação de políticas sendo jogado no lixo”.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), soltou uma nota de repúdio em relação à Portaria.

“Causa-nos perplexidade e repulsa essa possibilidade, colocada pelo órgão indigenista oficial, de haver o contato com povos isolados justamente nesta situação em que a população mundial e nacional está sendo convocada a ficar em isolamento, diante da gravidade e letalidade da doença Covid-19. Os povos indígenas são considerados grupos vulneráveis e de risco diante de uma pandemia de proporções alarmantes. Os grupos indígenas isolados são contemplados por uma política própria dentro do órgão indigenista, e a relevância de sua proteção segue os preceitos garantidos pela Constituição Federal de 1988”, afirma o Cimi.

Entrada ilegal de evangélicos

Lideranças indígenas do Vale do Javari, no Amazonas, estão recorrendo à Funai, ao Ministério Público Federal (MPF) e à Polícia Federal para impedir um missionário já preparado para entrar na Terra Indígena Vale do Javari em direção a aldeias de grupos sem contato. Eles temem a proliferação do novo coronavírus com a entrada de não indígenas que não respeitam os protocolos adotados pelos órgãos de assistência aos povos indígenas.

A Coordenação da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) denunciou que o indivíduo é um missionário evangélico norte-americano, que já entrou na área outras vezes sem comunicar as lideranças e a Funai. Ele estaria organizando uma expedição para ir em busca de indígenas sem contato. “Pelas informações dos próprios indígenas participantes dessas reuniões, já existe uma logística toda elaborada para acessar os isolados do ‘lambança’, um Igarapé localizado no interior do Vale do Javari”, diz a Coordenação da Univaja em documento encaminhado às autoridades.

Em outro trecho do documento, a coordenação da Univaja diz ainda que “o missionário tem cooptado indígenas para realizar as expedições ao interior da Terra Indígena, desafiando todos os protocolos de prevenção, além das próprias diretrizes que orientam essa questão, em detrimento da integridade física e territorial dos índios em isolamento voluntário”.

Governo sem planos

O governo federal ainda não apresentou um plano de ação para proteger os povos indígenas do contágio com o novo Coronavírus. Por isso, o Psol entrou com um requerimento de urgência de informações ao Ministério da Saúde, para saber quais medidas estão sendo tomadas para a prevenção e proteção aos povos indígenas.

Em seu pedido, o partido destaca que a Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus, e declara que o isolamento e a quarentena são medidas principais a serem adotadas. "Entretanto, para populações indígenas são enormes os desafios para garantir o isolamento previsto para casos suspeitos ou confirmado nestes grupos, cujas habitações frequentemente têm grande número de moradores", diz o pedido.

Segundo alerta da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), experiências anteriores mostram que "doenças infecciosas introduzidas em grupos indígenas tendem a se espalhar rapidamente e atingir grande parte dessas populações, com manifestações graves em crianças e idosos". O Psol teme que a chegada do covid-19 em áreas indígenas desestruture "a organização da vida cotidiana desses povos e a manutenção dos cuidados de saúde".

"Considerando esse cenário, a preocupação redobra quando se trata de povos indígenas, a chegada da epidemia do novo coronavírus nos territórios indígenas e suas potenciais consequências para as famílias que ali vivem", diz o requerimento.

A 6ª Câmara do Ministério Público Federal, através do sub-procurador Antonio Carlos Alpino Bigonha, orientou ao governo federal a abstenção de promover ações ou atividades terrestres, fluviais ou em aéreas nas imediações dos povos isolado.

De igual maneira, pediu pela implementação de um plano de contingência para surtos e epidemias e ativação de uma Sala de Situação para subsidiar a tomada de decisões.

Abandono

O sentimento entre os indígenas é de medo e preocupação. “Como lidar com essa situação em um momento em que falta transporte para os pacientes e o governo não apoia a Secretaria Especial de Saúde Indígena [Sesai]?”, questiona Juari Braz Pataxó, secretário de Assuntos Indígenas de Santa Cruz Cabrália. 

Os atendimentos de saúde aos indígenas são realizados pelos Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (Disei), vinculados à Sesai, do Ministério da Saúde. No ano passado, o governo Bolsonaro promoveu cortes orçamentários na Sesai, que, juntamente com a suspensão dos cubanos do programa Mais Médicos, gerou um “apagão de saúde” em comunidades indígenas em todo o país. Não há um balanço oficial de vítimas desse apagão, mas a ONG Repórter Brasil foi ao Xingu e contou a história de três crianças que morreram na aldeia em um intervalo de apenas 11 dias, em abril do ano passado.

No início do mês, uma matéria da BBC News Brasil mostrou que, após saída de médicos cubanos do programa, as mortes de bebês indígenas cresceram 12% em 2019 em relação ao ano anterior. Indígenas e especialistas do setor citam, entre as causas para o aumento da mortalidade infantil, não apenas o fim do convênio com governo cubano, mas também as mudanças na gestão da saúde indígena promovidas pelo governo de Jair Bolsonaro.

Os cortes orçamentários da Sesai podem, agora, colocar ainda mais vidas indígenas em risco ante a pandemia do coronavírus. O problema é que grupos de risco do vírus, como idosos ou pessoas diabéticas, precisam de atendimento rápido em leitos de UTI — situação delicada quando se trata de comunidades indígenas distantes de centros urbanos. Em casos de emergência, a Sesai costumava oferecer deslocamento por barco ou avião a indígenas. Com os cortes orçamentários, no entanto, essa estrutura está comprometida.

“Estamos muito vulneráveis”, avalia o advogado e membro da coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá. Na análise dele, a tentativa de desmonte do sistema de saúde indígena no ano passado deixou claro como o atual governo lida com a questão indígena. “As equipes de saúde não têm máscaras, macacão e os insumos necessários para impedir que o coronavírus se propague em área indígena”, lamenta.

O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Roberto Liebgott, concorda: não há capacidade técnica nem infraestrutura médica para atendimento a comunidades indígenas, pois faltam servidores e equipamentos. “Tanto para o coronavírus quanto para qualquer outra endemia ou epidemia”, afirma. 

O cenário se complica já que muitas comunidades indígenas não possuem saneamento básico. A principal orientação de evitar a contaminação pelo novo corona é, além do isolamento, lavar as mãos com água e sabão. “Não tem água potável ou tratada e nem qualquer ação preventiva de saúde”, afirma Liebgott.

A Sesai publicou notas técnicas e recomendações sobre como lidar com a pandemia. Uma delas é a de que os pacientes que apresentarem sintomas clínicos devem ser mantidos em casa, em “quarto privativo/isolamento até que o caso seja descartado”. 

Uma orientação que os Kayapó, que vivem no sudoeste do Pará, entre várias outras etnias, terão dificuldade de cumprir. “Na nossa cultura vive todo mundo na mesma casa. Neta, sobrinho e genro”, explica Mydjere Kayapó, na Terra Indígena Baú.

“Estamos com muito medo, pois não sabemos como essa doença vai se manifestar no nosso organismo”, conta Mydjere, que também reclama da falta de estrutura da Sesai: “Eles não disponibilizam álcool em gel e nós não temos condições de comprar”. 

A estratégia dele e de todos é ficar na aldeia e não ir à cidade mais próxima, que é Novo Progresso. Eles também proibiram visitantes mesmo antes de a Funai publicar, na terça-feira (17), uma portaria restringindo o contato e proibindo a entrada e não-indígenas nas comunidades. 

A portaria da Funai foi considerada “confusa e tendenciosa” por Nara Baré, coordenadora-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), em entrevista à Amazônia Real. Ela também criticou o plano da Sesai para conter o contágio do corona em comunidades indígenas. “É contraditório. Não é um plano claro. É igual a tantos outros planos indigenistas que não condizem com a nossa realidade.”

Vírus novo e preocupação com isolados

O isolamento de aldeias ante visitantes externos é medida básica e fundamental ante a pandemia. No entanto, se algum indígena for contaminado, são grandes as chances de o contágio na comunidade ser rápido e fulminante para os grupos de risco.

O médico sanitarista do Projeto Xingu, Douglas Rodrigues, destaca que é preciso ouvir as soluções propostas pelos indígenas. “Não adianta pegar uma medida que dá certo pra São Paulo e tentar aplicar para todos os indígenas”, afirma, citando como exemplo a orientação de isolamento em casa, que não se aplica às etnias que vivem coletivamente. 

O médico explica que, como o vírus é novo, indígenas e não indígenas terão o mesmo tipo de resposta imunológica ao contágio. Nos últimos séculos, as doenças transmissíveis e virais foram um flagelo responsável pelo genocídio de várias etnias indígenas, afirma o médico. Ele cita a varíola, que foi responsável pela morte de 20 mil pataxós nos séculos 16 e 17. A mesma etnia que hoje pode estar contaminada pelo coronavírus. 

O ex-presidente da Funai, Carlos Marés, reforça a necessidade de proteger todos os indígenas nesse momento, principalmente os que vivem isolados ou em semi-isolamento. “Sem pandemia, o contato com isolados já gerou problemas sérios para as populações indígenas”.

Marés fica preocupado com o discurso de ódio encampado pelo presidente Jair Bolsonaro. Em sua avaliação, o governo pretende “abrir espaço” e terras para a exploração econômica desenfreada, inclusive da Amazônia, e, para isso, precisa acabar com comunidades indígenas. “É um horror, e só de pensar nisso dá um mal estar, mas se a ideia [do governo] é exterminar os indígenas, essa epidemia é uma chance”, afirma.

E não são apenas os indígenas que estão sofrendo com a ameaça do coronavírus na Amazônia. Quilombolas que vivem próximos ao polo industrial de Oriximiná, no norte do Pará, estão em alerta por conta de dois casos suspeitos entre funcionários da Mineração Rio do Norte, segundo revelou o Intercept. De acordo com a reportagem, os funcionários e suas famílias estão em isolamento domiciliar em Porto Trombetas, vila administrada pela maior produtora de bauxita do Brasil, que é subsidiária da Vale.

Alvos fáceis

À medida que o novo coronavírus se alastra pelo Brasil, crescem os temores de que comunidades indígenas sejam dizimadas pela covid-19, a doença causada pelo patógeno. Doenças respiratórias já são a principal causa de morte entre as populações nativas brasileiras, o que torna a pandemia atual especialmente perigosa para esses grupos.

Há ainda preocupações quanto ao desabastecimento de muitas comunidades indígenas que compram alimentos em cidades e dependem de programas sociais como o Bolsa Família, mas estão sendo orientadas a evitar os deslocamentos para impedir o contágio.

Apesar da gravidade do cenário, associações indígenas e entidades que os apoiam afirmam que órgãos federais não têm adotado providências para proteger as comunidades – e que há falta de materiais básicos, como máscaras, para lidar com eventuais casos nas aldeias.

"Há um risco incrível de o vírus se alastrar pelas comunidades e provocar um genocídio", diz a médica sanitarista Sofia Mendonça, pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Mendonça é a atual coordenadora do Projeto Xingu da Unifesp, pelo qual a universidade atua na promoção da saúde de povos indígenas da bacia do rio Xingu (no Mato Grosso e no Pará) há meio século. Ela afirma que o novo coronavírus pode ter para povos indígenas brasileiros impacto comparável ao de grandes epidemias do passado, como as causadas pelo sarampo. "Todos adoecem, e você perde todos os velhos, sua sabedoria e organização social. Fica um buraco nas aldeias", afirma.

Mendonça diz, por outro lado, que a memória de epidemias passadas pode estimular comunidades que vivem em territórios extensos a se dividir em grupos menores e buscar refúgio no interior da mata. "Provavelmente alguns vão se munir de materiais que precisam para caçar e pescar e vão fazer acampamentos, esperando lá até a poeira baixar".

Mendonça diz que métodos usados em áreas urbanas para reduzir o contágio – como higienizar as mãos com álcool gel – são impraticáveis em muitas aldeias. Por isso ela defende concentrar os esforços em impedir que o vírus chegue às comunidades e isolar eventuais infectados.

Mendonça, assim como várias organizações indígenas brasileiras, tem difundido mensagens no WhatsApp e por rádio orientando as comunidades a suspender as idas às cidades e impedir a entrada de visitantes.

Nas últimas semanas, vários grupos cancelaram reuniões e rituais abertos a turistas. O Acampamento Terra Livre – principal evento do movimento indígena brasileiro, que ocorre em Brasília a cada mês de abril – foi suspenso. Mesmo assim, Mendonça diz que há chances consideráveis de que o vírus chegue às aldeias – e que será preciso isolar os doentes antes que eles infectem os parentes.

Segundo ela, os modos de vida de vários povos indígenas – que incluem compartilhar utensílios como cuias e morar em habitações com muitas pessoas – tendem a ampliar o poder de contágio de doenças infecciosas.

Em 2018, segundo o Ministério da Saúde, doenças infecciosas e parasitárias – tipos de enfermidades considerados evitáveis – foram responsáveis por 7,2% das mortes ocorridas entre indígenas, ante uma média nacional de 4,5%.

Entre crianças indígenas com menos de um ano, doenças respiratórias foram responsáveis por 22,6% das mortes registradas em 2019, índice só inferior ao de mortes causadas por problemas no período perinatal (24,5%).

Reclusão

Mendonça tem orientado as comunidades a adotar práticas de reclusão – normalmente usadas em ritos de passagem – para isolar as pessoas com sintomas da doença. Nesses rituais, diz a médica, várias comunidades costumam usar barreiras físicas, como paredes de palha, para que o recluso não tenha contato com os demais membros do grupo.

Mendonça afirma que também é preciso agir para impedir que o vírus chegue a grupos que vivem em isolamento voluntário. Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), há 107 registros de grupos indígenas não contatados na Amazônia brasileira.

Muitos territórios habitados por esses grupos são alvo de madeireiros, garimpeiros, caçadores e missionários, que podem levar o vírus até as comunidades.

Mendonça diz que a Funai deveria reativar bases encarregadas de proteger essas áreas que foram fechadas nos últimos anos em meio à redução do orçamento do órgão.

Ela defende ainda que indígenas que estejam nas cidades e apresentem sintomas associados à covid-19 sejam submetidos a exames. Se não houver confirmação da doença, deveriam voltar rapidamente à aldeia, reduzindo as chances de contágio na cidade.

Por ora, no entanto, a Secretaria Especial de Saúde Indígena não dispõe de testes para detectar a covid-19, segundo profissionais de saúde entrevistados na condição de anonimato.

Uma servidora que atua em Mato Grosso diz que também faltam máscaras e outros itens básicos proteção para lidar com eventuais casos nas aldeias. Ela afirma que procedimentos médicos não urgentes entre indígenas foram suspensos, e que só pacientes em estado grave estão sendo enviados a hospitais, para reduzir os riscos de contágio. Os demais casos estão sendo tratados nas aldeias.

Diante da falta de recursos e ações governamentais para enfrentar a pandemia, ela afirma que servidores estão se organizando por conta própria, arrecadando entre conhecidos itens de limpeza e alimentos para enviar às comunidades.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *