28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Marielle, 2 anos: silêncio sobre mandantes do crime é licença para matar

Publicado em 19/03/2020 12:00 -

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A execução de Marielle Franco e Anderson Gomes completou dois anos na noite do último dia 14. Tão assustador quanto o assassinato planejado de uma das vereadoras mais votadas de nossa segunda maior cidade, vitrine do país no exterior, é o fato de que, dois anos após seu assassinato, os mandantes do crime não tenham sido punidos. Pior, não sabemos nem seus nomes ou a razão deles terem morrido.

A Polícia Civil e o Ministério Público do Rio afirmam que os executores são o policial militar da reserva Ronnie Lessa, acusado de ter feito parte de um grupo de matadores de aluguel, e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz. Eles estão presos, aguardando o tribunal do júri.

Se a participação de ex-policiais é um ultraje, a percepção da sociedade de que agentes ou ex-agentes do Estado podem ter sido os responsáveis por ordenar o assassinato de uma representante eleita, liderança negra e LGBTQI+, nascida em uma das maiores favelas do Rio, é um sinal inequívoco de falência de nosso contrato social.

A resolução da morte de Marielle e Anderson, seu motorista, não é apenas uma questão de Justiça, mas uma necessidade para que as promessas de igualdade presentes na Constituição Federal de 1988 não sejam letra morta mantida sob aparelhos para enganar quem ficou do lado de fora da festa da democracia.

"Pode matar" é a mensagem ainda hoje enviada pelo Estado brasileiro diante da ausência da revelação não só dos mandantes da morte de Marielle e Anderson, mas daqueles que ordenaram tantos outros crimes pelo país. Mulheres, negras, lésbicas, pessoas de origem pobre, defensores de direitos humanos, políticos que não se vendem ao sistema, jornalistas são ainda mais matáveis por conta desse silêncio.

Ao mesmo tempo, o recado que o país envia à sua população e ao mundo é de que, além dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, os mais pobres por aqui também não devem contar com direitos civis e políticos. Pois seus representantes são descartáveis e podem ser executados tanto por sua atuação, quanto para servirem de recado.

Sem contar que isso deixa claro que o Rio tem dono e não é a esmagadora maioria da população honesta que nele habita. Já disse aqui e repito: independente de quem seja apontado como responsável pelas execuções (se isso vier a acontecer, claro), o Estado já é culpado de muitas formas e maneiras pelo que aconteceu.

Talvez uma das principais tenha sido tentar roubar a esperança de que lutar por uma vida diferente, mais digna, como ela lutou, vale a pena. Ou seja, como disse o escritor Julián Fuks, de fazer com que nos esqueçamos de que, após uma noite escura, há sempre um amanhecer.

Mas ficou na tentativa. Marielle segue viva através das palavras, das ações e da resistência de tantas e tantas meninas e mulheres que, iluminadas por sua biografia, encontraram sua própria forma de lutar. Os idiotas não sabiam que, ao tombar a árvore, plantariam várias sementes.

Dessa forma, por mais que a ausência dela tenhas sido sentida não apenas no dia de hoje, mas em todos os outros dias, a resistência mostrou aos velhacos da banda podre do Estado que eles falharam vergonhosamente.

Pois, ao tombar uma árvore inadvertidamente, acabaram plantando várias sementes.

Em tempo: Causa espanto que uma linha de investigação trabalhe com a hipótese de que não houve mandante, apenas o ódio solitário de Ronnie Lessa. Os interessados na morte de Marielle agradecem.

Bolsonaro e a milícia

Nos últimos dois anos a apuração do crime avançou em alguns aspectos, mesmo que lentamente. No mapa da investigação, ainda que de forma confusa, milicianos das forças de segurança e políticos do Rio de Janeiro figuram como suspeitos. Uma leitura atenta sobre os nomes divulgados, revela a relação intrínseca dos acusados com a família Bolsonaro.

Desde 14 de março de 2019, o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Queiroz estão detidos, acusados de serem os executores de Marielle Franco. No dia 26 de outubro do mesmo ano, em seu último ato à frente da Procuradoria Geral da República (PGR), Raquel Dodge apresentou uma denúncia ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) apontando Domingos Inácio Brazão, ex-deputado e conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, como mandante do assassinato da vereadora.

Essa primeira informação, da prisão dos suspeitos, já fez o país atentar para a relação entre os milicianos, o assassinato de Marielle Franco e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Lessa é vizinho do presidente no condomínio Vivendas da Barra, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. Nas redes sociais, Élcio Queiroz exalta o mandatário brasileiro e expõe fotos com ele.

Federalização

Na mesma ocasião da denúncia contra Brazão, Dodge recomendou que o caso fosse federalizado. Isso significa que a investigação sairia das mãos da Polícia Civil e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e iria para a Polícia Federal (PF). A federalização do processo é uma reivindicação antiga da família de Marielle Franco. Porém, com a chegada Bolsonaro à presidência, os parentes da vereadora mudaram de ideia.

“Acreditamos que [o ministro da Justiça e Segurança Pública] Sérgio Moro contribuirá muito mais se ele permanecer afastado das apurações”, afirmou a família em nota divulgada à imprensa. “O Ministério Público do estado do Rio de Janeiro obteve avanços importantes e por isso somos favoráveis a que a instituição permaneça responsável pela elucidação do caso.”

À época da denúncia de Dodge, o chefe do Departamento Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa (DGHPP), o delegado Antônio Ricardo Nunes, responsável pela investigação da Polícia Civil, não descartou a possibilidade de que Brazão seja o mandante do crime. “Essa é uma linha de investigação que nós seguiremos também”, declarou o agente.

É o mandante?

Os investigadores se aproximaram de Domingos Brazão após interceptações feitas pela Polícia Federal no telefone do miliciano Jorge Alberto Moreth, o Beto Bomba. Em diálogo com o vereador Marcello Siciliano (PHS), que ocorreu em 8 de fevereiro de 2019, divulgado pelo UOL, o miliciano afirma que Brazão é o mandante do crime e que teria pago R$ 500 mil pela execução da vereadora.

"Só que o sr. Brazão veio aqui fazer um pedido para um dos nossos aqui, que fez contato com o pessoal do Escritório do Crime, fora do Adriano [da Nóbrega], sem consentimento do Adriano. Os moleques foram lá, montaram uma cabrazinha, fizeram o trabalho de casa, tudo bonitinho, ba-ba-ba, escoltaram, esperaram, papa-pa, pa-pa-pa pum. Foram lá e tacaram fogo nela [Marielle]", afirma Beto Bomba, na conversa com Siciliano.

Empresário da construção civil e cumprindo seu primeiro mandato na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Marcello Siciliano se elegeu em 2016, com votação expressiva na zona oeste do município, em regiões controladas pelas milícias, como Rio das Pedras.

Em dezembro de 2018, a Câmara Municipal aprovou um projeto de Marcello Siciliano, em parceria com os vereadores Felipe Michel (PSDB) e Inaldo Silva (PRB), que autorizava a Igreja Batista Atitude, na Barra da Tijuca, a construir uma templo novo e maior, que já foi inaugurado. A igreja é frequentada por Michelle Bolsonaro e Jair Bolsonaro, que receberam, inclusive, uma festa de despedida dos fieis quando foram morar em Brasília.

Em relatório da Polícia Federal, o miliciano Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha, que também foi interceptado pela PF, fala sobre a disputa eleitoral na região da Barra da Tijuca como uma possível motivação de Brazão para matar Marielle Franco.

“A mesma análise dá conta de outra disputa territorial: observou-se proximidade entre as zonas eleitorais onde Marielle Franco e Chiquinho Brazão [irmão mais velho de Domingos] obtiveram a maioria de votos”, aponta o relatório. Ainda de acordo com o documento, o conselheiro do TCE é próximo dos milicianos.

Chiquinho Brazão, hoje deputado federal pelo Avante, que é sócio do irmão em uma rede de postos de gasolina, recebeu do governo de Jair Bolsonaro três passaportes diplomáticos, em março de 2019. O benefício foi concedido ao parlamentar, à Dalila Maria de Moraes Brazão, sua esposa, e a João Vitor de Moraes Brazão, seu filho.

Em outro trecho do texto, o delegado da PF Leandro Almada, que assina o relatório, não hesita em apontar o conselheiro do TCE como responsável pela execução. “Domingos Inácio Brazão é, efetivamente, por outros dados e informações que dispomos, o principal suspeito de ser o autor intelectual dos crimes contra Marielle e Anderson.”

Na interceptação telefônica feita pela PF, o miliciano Beto Bomba aponta outros executores para o assassinato de Marielle: Edmilson Gomes Menezes, o Macaquinho, Leonardo Gouveia da Silva, o Mad, e Leonardo Luccas Pereira, o Leléo. O major da Polícia Militar Ronald Alves Pereira teria comandado a operação.

Um mês após a conversa, Ronnie Lessa e Élico Queiroz foram presos no Rio de Janeiro. Para o MPRJ e a Polícia Civil, a dupla é responsável pela execução da vereadora psolista no dia 14 de março de 2018. Os dois negam a autoria do crime, mas seguem presos e irão à júri popular.

Escritório do Crime e Bolsonaro

Ronnie Lessa, Élcio Queiroz, Mad, Leléo e Macaquinho estão no catálogo de matadores de aluguel do Escritório do Crime, grupo de agentes das forças de segurança que atuam na região de Rio das Pedras, zona oeste do Rio de Janeiro, há pelo menos 20 anos. Citado por Beto Bomba, Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-oficial do Bope, é apontado como chefe da organização criminosa.

Assassinado no dia 9 de fevereiro deste ano, após uma operação policial que tentava capturá-lo na Bahia, depois de um ano foragido, Adriano da Nóbrega é figura-chave para compreender diversos crimes, mas também para entender a relação do clã Bolsonaro com as milícias cariocas.

O advogado do ex-agente do Bope, Paulo Emílio Catta Preta, em entrevista ao Globo, levantou a possibilidade de que seu cliente tenha morrido por saber demais. Porém, não especificou os segredos de Nóbrega. "Ele me disse assim: 'doutor, ninguém está aqui para me prender. Eles querem me matar. Se me prenderem, vão matar na prisão. Tenho certeza que vão me matar por queima de arquivo'. Palavras dele", afirmou o defensor.

Com Adriano, foram apreendidos 13 celulares, que estão com a Polícia Civil do Rio de Janeiro, mas que ainda não foram periciados. Nóbrega já havia sido citado no noticiário, pois é apontado pelo MPRJ como beneficiário do esquema de “rachadinha” no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, que hoje é senador da República.

É chamado de “rachadinha” um esquema que ocorre quando funcionários do gabinete de um parlamentar repassam parte de seus salários para o político.

O Ministério Público usou informações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para indicar que Fabrício Queiroz, enquanto era assessor no gabinete de Flávio Bolsonaro, teria recebido R$ 2 milhões em sua conta, divididos em 483 depósitos.

No mesmo mandato na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), trabalharam a ex-esposa e a mãe de Nóbrega, Danielle Mendonça da Costa e Raimunda Veras Magalhães, respectivamente. Elas receberam um total de R$ 1.029.042,48 em salários e repassaram R$ 203 mil para Fabrício Queiroz, respeitando o esquema estabelecido no gabinete para beneficiar o parlamentar, de acordo com a denúncia do MPE.

Ao todo, Queiroz movimentou R$ 7 milhões em três anos. Entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro fez diversos depósitos e saques que somam R$ 1,2 milhão. Um dos depósitos, de R$ 24 mil, foi feito na conta da primeira dama Michelle Bolsonaro, no ano de 2016.

Questionado sobre o repasse à sua esposa, Jair Bolsonaro informou que fez um empréstimo a Queiroz e o depósito seria parte do pagamento. O presidente lembrou, em entrevista, que é amigo do ex-assessor do filho desde 1984.

A amizade também é a natureza da relação entre Adriano da Nóbrega e Queiroz, que se conhecem desde 2003, quando serviram juntos no 18º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ). Justamente neste, Nóbrega recebeu a primeira homenagem de Flávio Bolsonaro na Alerj. A segunda viria em 2005, ano em que o ex-agente do Bope foi julgado e condenado por um júri popular, por conta de um homicídio. O miliciano não compareceu à premiação por estar preso.

Durante o seu julgamento, Nóbrega recebeu um apoio importante, do então deputado federal Jair Bolsonaro. Após a audiência que culminou na condenação do miliciano, o atual presidente da República foi até a tribuna da Câmara dos Deputados e defendeu o militar. “Ele sempre foi um brilhante oficial”.

Em 2007, Nóbrega recorreu da decisão e foi inocentado. Em 2013, foi expulso da PM, por conta de seu envolvimento com o jogo do bicho.

Outro importante personagem do Escritório do Crime, o major Ronald Paulo Alves, apontado por Beto Bomba como responsável por organizar o grupo de assassinos que executariam Marielle Franco e Anderson Gomes, também foi homenageado por Flávio Bolsonaro na Alerj.

Em 2004, o filho do presidente celebrou uma ação comandada por Alves que terminou com três mortes. Um ano antes, em 2003, o major teria participado da chacina de cinco jovens dentro da da boate Via Show, em São João de Meriti. Quatro policiais já foram condenados pelo caso e somente o agente condecorado por Flávio Bolsonaro ainda não foi julgado.

No último dia 15 de fevereiro, após a morte de Nóbrega, Bolsonaro foi interpelado sobre sua relação com milicianos e negou qualquer vínculo. "Eu não conheço a milícia no Rio de Janeiro. Desconheço. Não existe nenhuma ligação minha com a milícia do Rio de Janeiro", afirmou.


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