29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Declarações desencontradas geram dúvidas sobre capacidade do governo’

Publicado em 16/03/2020 12:00 -

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Para o economista e cientista social Eduardo Giannetti da Fonseca, as sucessivas quebras de decoro – limites do que o ocupante de um cargo público pode ou não fazer – do presidente da República, Jair Bolsonaro, são uma tentativa desviar a atenção da situação econômica do país e um demonstrativo do despreparo do ocupante do mais alto posto executivo nacional.

"Não tem o menor cabimento levantar questionamento sobre o processo eleitoral”, diz, em referência às recentes declarações do presidente sobre o resultado das eleições de 2018. Bolsonaro disse que houve fraude e que ele foi eleito no primeiro turno, afirmação que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), responsável por realizar as eleições no Brasil, contestou esta semana.

Em entrevista à DW Brasil, Giannetti, que foi responsável pelo programa econômico da candidata à presidência Marina Silva (Rede) nas últimas eleições, diz que a incerteza política atrapalha a atração de investimentos e predomina no governo uma visão "muito estreita e retrógrada, que é o neoliberalismo de Chicago. Liberalismo tem a ver com igualdade de oportunidades". Apesar das críticas, não vê como razoável um processo de impeachment, mas demonstra preocupação com a reeleição de Bolsonaro.

 

 O PIB brasileiro cresceu 1,1% em 2019, menos que em 2018 e em 2017, e muito menos do que se chegou a prever em janeiro do ano passado, de até 2,5%. O que deu errado?

Eduardo Giannetti: 2019 foi o terceiro ano em que o mesmo enredo se repetiu: começa com expectativa de que finalmente a economia vai ter recuperação cíclica e, a medida que o ano vai transcorrendo, as expectativas vão sendo reduzidas para baixo, e o ano termina com crescimento perto de 1%.

A grande pergunta é: por que essa recuperação não se materializa? O nosso padrão era o de uma economia que voltava com vigor. Após 2008 e 2009, tivemos crescimento 7,5% em 2010, o que caracteriza um movimento da letra V, e esse era o padrão típico. Desta vez, entramos no padrão L: ela parou de perder PIB, mas não voltou a se recuperar.

A minha hipótese é que há uma sucessão de choques de incerteza política e institucional que estão levando a uma queda crônica dos investimentos. No início de 2020, havia novamente uma expectativa de que o crescimento pudesse melhorar, mas temos agora um quadro de indefinição, com aspectos externos e domésticos.

Do lado dos fatores externos podemos citar o coronavírus e a desaceleração global. Mas, do lado doméstico, o que pesa mais?

O primeiro é a falta de estratégia, falta de compromisso com encaminhamento das reformas que o Brasil precisa fazer para dar sequência ao ajuste fiscal para dar previsibilidade aos investimentos  Mas eu não subestimaria a sequência de declarações muito desencontradas e muito perturbadoras feitas tanto pelo presidente [da República] quanto pelo ministro da Fazenda, que geram dúvidas sobre a capacidade deste governo.

Apesar do crescimento baixo e do clima de incerteza política, parece haver um otimismo entre os empresários. Eles estão descolados da realidade?

No final do ano passado, alguns elementos objetivos indicavam que estávamos a caminho de uma recuperação cíclica. Temos muito equipamento ocioso, muita gente desempregada. A recuperação cíclica significa simplesmente você operar mais próximo do potencial produtivo.

O principal elemento que explica isso é a relutância do setor privado em investir. O setor público, por conta do estrangulamento fiscal, teve que reduzir investimento, e o setor privado se retraiu. Na infraestrutura, por exemplo, há uma falta de clareza em relação à reforma tributária. Nenhum investidor vai fazer uma grande aposta enquanto ele não tiver mais clareza sobre quais tributos incidirão sobre sua atividade. Agora, os  empresários tendem a ser mais otimistas porque é torcida, wishful thinking, mas as ações não tem correspondido a esse otimismo.

Com um crescimento baixo no Brasil e a perspectiva de desaceleração global, faz sentido manter o gasto público baixo? Alguns economistas têm defendido que é hora de rever a regra do teto de gastos.

Eu não tenho uma visão definida em relação a isso. Agora, a dívida pública brasileira estava crescendo numa trajetória explosiva, e graças à reforma da Previdência nós saímos da UTI fiscal. Não é que esteja resolvido, só não estamos mais numa situação de emergência. Eu não acho que uma medida dessa, por si só, dê conta do recado, se não tivermos reforma administrativa e mais clareza com relação aos servidores públicos e à contenção do crescimento vegetativo da folha de salários.

Existe uma melhora dos dados de ocupação, porém com uma grande taxa de informalidade. No ano passado, de 1,8 milhão de pessoas a mais ocupadas em relação a 2018, um milhão estava na informalidade. Como o senhor vê esse cenário?

Esse é um ponto muito importante, é um fato da maior da gravidade. Esses postos de trabalho na economia informal são de situação precária, baixa produtividade, baixo nível de qualificação, e condenam o Brasil a viver numa situação muito precária, na medida em que se produz pouco, se remunera pouco. Há algo muito errado em um país em que 40% não têm um situação regular de emprego. Isso é indicativo claro de que as instituições estão falhando.

O senhor já declarou no passado  que a reputação do liberalismo no Brasil poderia ser arruinada se o presidente não tivesse preocupação social. O presidente está arruinando esta reputação ou não?

Tendo a crer que sim, porque prevalece nesse governo uma visão muito estreita e retrógrada, que é o neoliberalismo de Chicago, há uma percepção equivocada do que é liberalismo. Liberalismo tem a ver com igualdade de oportunidades, com respeito aos direitos das minorias, com esforço para criar empregos e oportunidades, e também com respeito ao meio ambiente. no qual o governo brasileiro tem um discurso e uma prática retrógrados.

Quanto esse discurso do governo nos atrapalha economicamente?

Atrapalha enormemente. É mais um elemento de incerteza e dúvida com relação ao futuro da nação brasileira, e o  investidor estrangeiro fica muito apreensivo.

É possível conciliar austeridade fiscal com combate à pobreza e distribuição de renda?

É perfeitamente possível, desde que haja critério e prioridade na destinação dos recursos públicos para os grupos mais vulneráveis. É inacreditável um país cuja carga tributária alcance 33% do PIB, é espantoso que um país com essa carga seja o mesmo em que praticamente metade dos domicílios não têm sequer rede de esgoto.

O que o senhor achou da reforma da Previdência aprovada?

É melhor tê-la do que não tê-la. Mas o fato de os militares terem ficado de fora da reforma é injustificável. O Bolsonaro encarna como ninguém o corporativismo da política brasileira, Para ele, governar significa proteger esses grupos. Sempre que pode, ele favorece esses grupos, os militares, a polícia, agora está buscando abrir terras indígenas para o garimpo, está favorecendo a mídia ao liberalizar o uso de TVs abertas para fazerem sorteios.

Com todas essas questões que o senhor citou e as sucessivas quebras de decoro, por que parece não haver maior reação por parte das instituições?

Dentro da democracia, tem que se respeitar o mandato. Uma declaração por si só, por mais atrapalhada que seja, não sustenta, por exemplo, uma iniciativa de impeachment. Impeachment não é um voto de recall, não é algo que se pode iniciar porque não se gosta do governo. O que eu acho é  que as forças democráticas do país tem que pensar com muita atenção em como evitar a reeleição desse pseudoprojeto que tomou o poder.

Recentemente, o presidente da República questionou o processo eleitoral. Acha que Bolsonaro faz essas declarações como forma de desviar a atenção da economia?

Eu vejo um presidente completamente despreparado para o cargo para o qual ele foi eleito. Não tem o menor cabimento levantar questionamento sobre o processo eleitoral. Isso só pode  ser uma tentativa de desviar da economia. Ele imita mal o governo [do presidente dos Estados Unidos, Donald] Trump, uma imitação subdesenvolvida, o governo usa técnicas de manipulação da opinião pública inspiradas claramente no que o Trump faz.


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