28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Coronel atacado na rede diz que lógica da guerra contamina a PM e o YouTube

Publicado em 12/03/2020 12:00 -

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O coronel Íbis Silva Pereira, ex-comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, vem sofrendo duros ataques nas redes sociais após uma comissão disciplinar da corporação suspender o porte de armas do soldado e youtuber, Gabriel Monteiro. Ele havia acusado o coronel de envolvimento com o crime organizado, apresentando como "prova" a ida dele a palestras no Complexo da Maré, área de atuação do tráfico, sem ser molestado.

Íbis é conhecido pelo diálogo com comunidades e organizações sociais. Formado em Direito, com pós-graduação em Filosofia Contemporânea pela PUC-RJ, e tendo comandado a Academia de Formação de Oficial da PM, o coronel da reserva tem despertado a ira de muitos que defendem a "guerra" como solução para a paz no Rio de Janeiro.

"Aceitarei tantos convites quanto forem formulados na Maré, com a cabeça erguida. Acho que diálogo é obrigação minha para uma sociedade civilizada. É um compromisso não apenas com as 140 mil pessoas que moram lá, gente decente e pobre que está brigando para sobreviver nesse país pobre e injusto que é o Brasil", afirma Íbis Pereira em entrevista à coluna (leia a íntegra abaixo) Hoje, ele é assessor parlamentar para a área de segurança pública da deputada estadual Renata Souza (PSOL-RJ).

Crítico à atual política do confronto, citando a morte de policiais e moradores de comunidades como sua consequência, defende investimento pesado em planejamento e ações de inteligência, avalia que o combate ao tráfico de drogas e de armas é feito de forma desarticulada e diz que não há resposta possível sem melhoria das condições de trabalho dos policiais e do respeito aos direitos humanos.

De acordo com relatório da sindicância interna, Gabriel Monteiro cometeu "transgressão disciplinar de natureza grave" ao gravar vídeo no qual entrevista o coronel, acusando-o de ter relação com o tráfico no Complexo da Maré, no Rio, em outubro do ano passado. Após Íbis ter movido um processo na Justiça contra Gabriel, o youtuber – que tem mais de 1,6 milhão de seguidores no canal – o abordou novamente em dezembro.

Após o boletim com a suspensão do porte ser divulgado, nesta quarta (4), as redes sociais bolsonaristas fizeram campanha em solidariedade ao soldado e atacaram duramente o coronel, reforçando a acusação de Gabriel. O processo disciplinar pode levar à expulsão.

Em postagens no YouTube e no Instagram, o soldado insiste na denúncia, dizendo que a prova é a presença do coronel no Complexo da Maré em área de facção. Mas não traz evidências de uma relação dele com o crime.

"Não soube responder minhas perguntas sobre como consegue entrar em uma área tão hostil para o policial militar. Por causa desse questionamento, no dia de hoje, eu perco o meu porte de armas", disse Gabriel.

A vereadora Marielle Franco, cuja execução completa dois anos no dia 14 de março sem que os mandantes tenham sido apontados, nasceu no Complexo da Maré e começou sua militância pelos direitos humanos na comunidade. Após sua morte, noticias falsas correram as redes sociais afirmando que ela teria relações com o Comando Vermelho na Maré. A desembargadora Marilia Castro Neves e o então deputado federal Alberto Fraga, por exemplo, compartilharam o boato mentiroso.

Indignado, Gabriel Monteiro segue acusando Íbis Pereira nas redes sociais. Em vídeo postado, neste domingo (8), reclamou do que considera mentiras da corporação contra ele e liga Wilson Witzel a delitos eleitorais: "é verdade que o senhor ganhou mais de R$ 100 mil de caixa dois, governador?"

A Redes de Desenvolvimento da Maré confirmou, em nota, convite feito ao coronel Íbis para aulas em curso por seu "conhecimento na área de segurança pública e clareza sobre a necessidade de preservar os direitos de todos os cidadãos". E afirma que causa indignação que, por causa disso, ele esteja sendo acusado de ligação com grupo armado. "Isso não faz o menor sentido e entendemos esse tipo de perseguição como um preconceito claro sobre as favelas e seus moradores." Ironicamente, esse curso acabou não sendo realizado. O coronel diz que já palestrou na comunidade e acha um absurdo ser perseguido por dialogar com moradores.

No ano passado, Íbis Pereira prometeu devolver a Medalha Tiradentes, que recebeu da Assembleia Legislativa, se a instituição não cassasse aquela concedida por Flávio Bolsonaro ao, agora falecido, Adriano da Nóbrega, chefe do Escritório do Crime.

 

Como o senhor encarou os ataques virtuais?

Tem a ver com o momento do mundo que estamos vivendo, no qual os fatos parecem que não importam mais, o que importa é a narrativa. Como esse rapaz tem muitos seguidores, o fato em si – de eu ter sido a vítima das filmagens grosseiras dele – não importa. Acredito muito no diálogo. Mas ele tem um estilo truculento. A primeira postagem foi muito ofensiva, ele fala de "broderagem", insinua que o fato de eu ter aceito um convite para dar uma palestra na Maré, para uma organização não-governamental que tem um trabalho lá, é porque eu tenho "broderagem" com o crime. Isso me deixou muito indignado e, por isso, acionei a Justiça, para uma reparação pelo dano que causou à minha imagem.

Quando ficou sabendo da ação que movi contra ele, fez uma outra postagem e passou a se vitimizar, quando quem foi atacado fui eu. É angustiante viver em um mundo em que fatos já não contam. O que conta é aquilo que se diz do fato, ou melhor, o número de likes e visualizações que uma narrativa sobre o fato tem.

Um policial só consegue ir ao Complexo da Maré se for para confronto ou para acordos com o crime?

O argumento dele é que o fato de eu ter aceitado um convite para palestrar me associa ao crime. A Maré tem 140 mil moradores, a imensa maioria das pessoas que moram lá são decentes, dignas, trabalhadoras. Deveria ser uma preocupação de todo mundo que quer ter uma segurança pública melhor, ir lá conversar com as pessoas.

O que mais me entristece e me traz preocupação quanto ao futuro da democracia brasileira é que esse tipo de maluquice faz sentido para a cabeça de muitas pessoas. A prática da vida civilizada depende do diálogo, da capacidade da gente ler o mundo, ouvir o que o outro tem a dizer sobre sua experimentação da vida comum, estar aberto – honestamente – ao argumento do outro. Disso depende a vida política. Quando as pessoas começam a achar que é bonito, legal e faz sentido o argumento e a gramática do ataque e da truculência, isso significa que estamos doentes.

Mas também é um choque de duas visões sobre a natureza da polícia.

Quando ele me abordou pela primeira vez e apresentou-se como policial, me senti no dever de dar atenção a ele. E tenho respeito profundo pela polícia e os policiais. Se eu pudesse ter mil vidas e pudesse escolher mil vezes, voltaria nas mil vidas como policial. Nunca me arrependi da minha opção, por isso que quero que a polícia mude, por isso que quero um outro tipo de polícia.

Costuma-se dizer que hierarquia e disciplina são os pilares das instituições militares. Mas o que não se diz é que esses pilares não estão soltos no espaço, devem repousar em um solo comum, que é o respeito. Quando um militar de hierarquia mais baixa presta continência a um superior, o superior está obrigado a retribuir a continência. E isso não deve existir apenas nas instituições de segurança, mas entre todos nós. Já participei de debate com o MBL em uma universidade, por exemplo. Foi um debate acalorado, mas respeitoso e com consideração. Ou seja, isso é possível.

Provocado, o governador do Rio falou da necessidade da "hierarquia e disciplina". Mas pessoas no entorno do presidente Jair Bolsonaro deram apoio ao policial, o que aumentou os ataques. Como avalia isso?

Confesso que não estou acompanhando as reações. Mas é lamentável que pessoas que estão em lugar de autoridade não reconheçam que o respeito é um valor central não só das instituições públicas, mas da vida em sociedade. Mesmo com as diferenças de posição ideológica, visão de mundo, religião, pois o contrário é um Estado de natureza hobbesiano. Não vou deixar de acreditar no diálogo, apesar de algumas autoridades, que juraram à Constituição, acharem que esse tipo de ataque à dignidade está certo. Se uma autoridade nas altas esferas demonstra apreço por isso, o caso se torna uma espécie de pedagogia, as pessoas começam a reproduzir essa conduta. Quando a depreciação do respeito vira um valor, estamos caminhando para o precipício.

Qual desfecho espera do caso?

Nosso regulamento determina que militares que tomam conhecimento de atos que afrontam nossos valores estão obrigados a informar. Acredito que as instituições terão sabedoria para reconhecer o que ocorreu. Não pedi para que a Secretaria de Segurança Pública verificasse meu caso porque sou coronel, mas que a instituição verificasse se essa forma pela qual se expressou é compatível com a conduta de um policial da ativa. E vou respeitar profundamente a decisão da instituição, da mesma forma que acredito que a avaliação será feita de forma serena, respeitando todos os direitos dele no curso do processo. Se ele vai ser advertido, excluído, punido de outra forma, cabe à instituição. Eu nunca procurei amigos que deixei lá e autoridades para pedir que ele fosse perseguido. Da mesma forma, entrei com uma ação na Justiça porque acredito que era o certo a fazer.

O senhor passou 33 anos na ativa da corporação e foi comandante-geral da Polícia Militar. Qual é o principal desafio da Polícia Militar do Rio hoje?

O desafio da PM do Rio não é diferente do desafio de outras polícias militares e civis do Brasil. A Constituição Federal de 1988 foi a primeira carta magna da República a ter um capítulo sobre segurança pública. Mas nós levamos 30 anos para regulamentar o artigo 144, que trata do tema. Para esse capítulo, foram levados diversos órgãos, polícias militares, civis, guardas municipais, polícia ferroviária, do trânsito. Esquecemos, contudo, de organizar as instituições em um sistema para amarrar tudo adequadamente.

A lei 13.675/2018 pode ter muitos defeitos, mas criou o Sistema Único de Segurança Pública no Brasil. O decreto do governo Michel Temer que regulamenta a lei do Sistema Único de Segurança é muito bem feito, pena que não estamos cumprindo.

E como ainda não tem estrutura, não conseguimos fazer fluir uma política pública para apresentar resultados no curto, médio e no longo prazos, envolvendo municípios, estados e governo central em ações articuladas. Hoje, não conseguimos caminhar muito para além do agora. O peso de tudo isso recai sobre as polícias estaduais e o imediatismo, que significa a guerra.

Quem deve responder ao tráfico de drogas e de armas é a União, através da Polícia Federal. Claro que as polícias estaduais têm atuação porque o problema explode na ponta. No Rio, não temos fábrica de armas, mas somos inundados por produtos do tráfico de armas. Se tivéssemos uma política nacional para controle de armas e munições, ou algo digno desse nome, não tenho dúvida que o Estado não sofreria tanto. Daí, as polícias estaduais tentam dar conta disso, buscando o fuzil quando ele já está em território nacional. Quem paga um preço por isso? Os próprios policiais e a população das comunidades, porque essa guerra acontece na periferia.

O mesmo acontece na guerra às drogas?

Sim. Não resolvemos isso no plano federal, com uma política que articulasse União, estados e municípios. E qual a resposta que as polícias civis e militares dão? Guerra. Já que não temos política pública preventiva para armas e drogas, sobra a guerra. E quando tem guerra, tem militarização. As pessoas não entendem que militarização e modelo militar de administração são coisas diferentes. Se você tem ações baseadas no confronto, você tem militarização – independente de você ter uma polícia que se organize em um modelo militar ou civil. Guerra não pode ser concepção de política pública, acaba sendo porque estamos apostando no imediatismo e no espetáculo.

O fato de a gente não ter equacionado a segurança pública adequadamente durante a redemocratização contribuiu para minar a democracia brasileira. A lógica da guerra e da militarização é a mesma gramática que o youtuber usou contra mim, que é uma lógica fascista, em última análise. Tentamos repensar a segurança pública no Rio de Janeiro durante os governos de [Leonel] Brizola, mas foi uma experiência que o país não abraçou. Os indicadores foram piorando, as pessoas foram ficando com medo e se seduzindo pelos discursos violentos. Na falta da política, matar bandido se tornou solução na cabeça de muitas pessoas.

O medo promove ódio. Em meio a tudo, alguém diz que a origem do seu medo é por causa de coisas como um coronel que está indo dar palestra na Maré, por exemplo. As pessoas passam a me odiar, com isso. O medo, em um determinado nível, nos preserva. Mas, quando invade o espaço público, corrompe a vida social e a democracia.

Como garantir segurança à população e preservar a vida dos policiais?

Nossos problemas com a segurança pública não são fáceis de resolver. Mas vivemos nesse inferno dos indicadores criminais mais porque temos descumprido a Constituição e deixado de fazer reformas. Inclusive nas instituições policiais, para que eles sejam mais respeitados e tenham mais condições de trabalho.

É muito fácil jogar o peso da segurança em um comandante de batalhão, em um delegado, ao invés de formular políticas. Para muita gente, isso é confortável, porque se uma política pública der errado, a responsabilidade é do formulador. Hoje, se algo dá certo, o policial ganha uma medalha e um diploma, se der errado, arrancamos a cabeça dele. É preciso mais inteligência, menos verborragia. Quem paga a conta por isso são policiais, que estão na ponta, e acreditam no discurso das pessoas que dizem que "bandido bom é bandido morto". Daí acabam presos, expulsos da corporação, em uma cadeira de rodas, mortos. Passei 33 anos na polícia, prendi muita gente e nunca matei ninguém.

Nada disso é fácil de resolver. Mas é mais fácil do que parece. E não é com guerra e violência, mas com diálogo, respeito à Constituição, respeito aos direitos humanos e planejamento, porque os problemas são grandes e o orçamento é curto. Infelizmente, começamos a fazer alguma coisa nova no Brasil e, dez anos depois, voltamos à estaca zero.

Você se refere às UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora)?

Investimos tanto dinheiro nas UPPs… Agora, virou mora, todo mundo bate em UPP. Mas tem lugares, aqui no Rio de Janeiro, que, durante cinco anos, não tivemos disparo de arma. O que deu errado? Impressionante termos gasto tantos bilhões e, hoje, não estarmos todos debruçados em cima dessa experiência, ver o que deu errado e consertar aquilo que, eventualmente, poderíamos ter consertado. Aprender com os erros. A falta de articulação é também um grande problema na educação, na saúde, é um problema de mentalidade. O Brasil foi colonizado sem projeto, tinha que dar lucro à metrópole, parece que incorporamos isso.

Independente de ideologia política, há um problema objetivo. Isso não tem a ver com esquerda ou direita, mas com racionalidade. O país precisa de estrutura, caso contrário vai apostar no discurso imediato, na guerra, no hoje. Precisamos pensar o que queremos em cinco, dez anos.

É por isso que vou aos lugares e não vou deixar de ir. Aceitarei tantos convites quanto forem formulados na Maré, com a cabeça erguida. Acho que diálogo é obrigação minha para uma sociedade civilizada. É um compromisso não apenas com as 140 mil pessoas que moram lá, gente decente e pobre que está brigando para sobreviver nesse país pobre e injusto que é o Brasil.


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