16/04/2024 - Edição 540

Comportamento

O trauma de um aborto espontâneo pode perdurar por muito mais tempo do que se pensava

Publicado em 10/03/2020 12:00 -

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Foi só recentemente que mulheres começaram a falar nas redes sociais sobre como o aborto espontâneo é algo comum e como pode ser devastador. A primeira experiência de Rachel Whalen aconteceu muito rapidamente. Grávida de seis semanas e meia, ela fez um exame. Dois dias mais tarde, começou a ter uma hemorragia.

“Foi uma experiência muito solitária. Tive muito medo”, contou Whalen, 34 anos, ao HuffPost US. “Fiquei pensando ‘será que sou boba por estar me sentindo assim?’.” Ela disse a si mesma que os abortos espontâneos no início da gravidez são comuns (até 20% das gestações conhecidas terminam numa interrupção indesejada) e torceu para que esse fosse seu único.

Sete meses mais tarde ela engravidou novamente. Pouco depois, sofreu novo aborto espontâneo. Whalen e seu marido estavam no carro, saindo para as férias de verão. Ela sentiu uma contração e perdeu o tecido fetal no banheiro de um posto de combustíveis, pegando-o nas mãos.

“Depois daquilo, nunca mais encarei meu corpo do mesmo modo”, disse Whalen, que escreveu sobre isso em seu blog pessoal e na associação de apoio PALS (a sigla formada pelas iniciais em inglês de Apoio à Gravidez e Perda). “Qualquer cólica, qualquer dorzinha, e eu já achava que seria algo pior.”

Já se passaram cinco anos desde aquele momento, mas Whalen diz: “Às vezes ainda me surpreendo com a ansiedade que sinto”. Ela não é a única.

Em um novo estudo realizado no Reino Unido com mais de 650 mulheres que sofreram aborto espontâneo no início da gestação ou em uma gravidez tubária, quase 30% apresentaram sintomas de estresse pós-traumático um mês após a perda do feto.

Quase 25% delas mostravam sinais de ansiedade, de moderada a grave e 11% tinham sinais de depressão, novamente, de moderada a grave. Nove meses após a interrupção involuntária da gravidez no início da gestação, 18% das mulheres continuavam a apresentar sinais de estresse pós-traumático, 17% de ansiedade moderada a grave e 6% de depressão moderada a grave.

Para Tom Bourne, autor principal do estudo realizado com o Centro Nacional Tommy’s de Pesquisas sobre IIG, do Imperial College London disse, em entrevista ao HuffPost, que “muitas pessoas não entendem que, para muitas mulheres, uma gravidez ectópica ou um aborto espontâneo são o evento mais traumático de sua vida até aquele momento”.

As conclusões de sua equipe foram publicadas no American Journal of Obstetrics and Gynecology.

O aborto espontâneo vem se tornando um tema menos tabu nos últimos anos. Nas redes sociais, em especial, algumas mulheres vêm falando abertamente sobre como isso é comum e pode deixar consequências físicas e psíquicas. Mesmo assim, muitas mulheres têm dificuldade em conseguir ajuda.

“O campo da medicina tem aumentado esforços para dar apoio a mulheres que enfrentam desafios reprodutivos, mas ainda temos um longo caminho a percorrer para tratar essas pacientes adequadamente”, disse ao HuffPost a médica Misty Richards, diretora de psiquiatria perinatal na clínica ambulatorial de saúde mental materna da UCLA Health, que não participou do estudo. Ela disse que um dos grandes obstáculos pode ser o custo do atendimento.

Richards explicou que há várias razões por que a perda da gravidez pode ser traumática para a mulher. Ela pode sentir que está perdendo a oportunidade de ser mãe, que está perdendo controle ou que é inadequada de alguma maneira. E há também o simples fato de que um aborto espontâneo no início da gestação muitas vezes vem acompanhado de sangramento e muita dor.

“Para dar o melhor apoio possível a essas mulheres, é preciso que elas venham a consultas regulares e que tomemos conhecimento de toda a gama de sintomas físicos e psiquiátricos que elas apresentam, encaminhando-as para profissionais capacitados de saúde mental desde o primeiro momento, sem esperar que os sintomas se agravem”, diz Richards.

Mesmo assim, ainda existe a ideia de que um aborto espontâneo é algo que a mulher deveria conseguir superar.

“Acho que estamos perto de conseguir dar apoio melhor às mulheres. Temos visto uma campanha grande nas redes sociais que tem ajudado as mulheres que sofreram essa perda a entrar em contato com outras em situação semelhante. Isso as ajuda a sentir que não estão sós”, disse Valerie Meek, diretora de operações da PALS.

Ela perdeu um bebê que nasceu morto com 20 semanas de gestação. “Mas ainda ouvimos casos de mulheres que recebem atendimento horrível na sala de emergências e de muitos médicos, mesmo alguns que atuam no campo da saúde mental, que não têm um entendimento adequado do problema. Assim, muitas mulheres ainda não recebem o apoio que gostaríamos que recebessem.”

Isso inclui dar apoio a mulheres que sofreram aborto espontâneo relativamente no início da gestação. O sofrimento delas às vezes não é levado igualmente a sério.

Rachel Whalen, tragicamente, ainda sofreria uma terceira gravidez interrompida, dessa vez pela morte do feto com 30 semanas de gestação (ela também tem um filho vivo). Por essa razão, comentou, ela se destaca entre as mulheres que sofreram gestações interrompidas: ela sofreu abortos espontâneos no início da gravidez e perdeu um feto no terceiro trimestre. Ela sabe que os dois tipos de perda podem provocar trauma importante e duradouro.

Já se passaram anos desde o segundo aborto espontâneo, mas Whalen ainda evita passar em frente ao posto de combustível onde, em um cubículo do banheiro, ela segurou nas mãos aquilo que poderia ter se tornado seu bebê. Ela considera isso “um luxo”: o fato de não ser obrigada a retornar regularmente ao lugar onde perdeu seu filho.

Mas o choque e a dor daquele aborto ainda não foram esquecidos. Whalen ainda os sente visceralmente. “Quando me enxugo, ainda penso que verei sangue”, ela contou, “mesmo sabendo que não estou grávida.”

Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês


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