29/03/2024 - Edição 540

True Colors

A luta é outra, bem maior

Publicado em 03/10/2014 12:00 - Guilherme Cavalcante

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“E digo mais: aparelho excretor não reproduz”, disse o poeta, que no caso é Levy Fidelix, candidato a presidência pelo PRTB, logo após dizer que nunca viu “dois homens ou duas mulheres fazerem família”.

A sentença do candidato “cristão” é reflexo da provocação de Luciana Genro, candidata a presidência pelo PSOL, durante o debate entre presidenciáveis da TV Record, no último dia 28 (vídeo abaixo). Armou-se, aí, uma grande celeuma em torno dos direitos fundamentais da comunidade LGBT quanto ao status de família.

O tema foi adiante no debate da TV Globo, exibido na última quinta-feira. Desta vez, foi o próprio Levy Fidelix que desafiou Luciana Genro numa pergunta capciosa. A candidata não hesitou na resposta, disse que Fidelix deveria sair do estúdio algemado, caso a homofobia fosse considerada crime no Brasil (vídeo).

Temas LGBT permearam várias discussões durante as campanhas deste ano. Direitos Fundamentais LGBT, como o casamento civil homoafetivo e criminalização da homolesbotransfobia foram pauta explícita de vários partidos, como PSOL, PV e PSTU. Quem ficou em cima do muro, foi evasivo, voltou atrás ou demorou a dar o recado teve as ideias recebidas em tom de desconfiança e eleitoreiras (foi o caso do PSDB, PSB e PT). Minimamente organizados, os militantes LGBT conseguiram dar o recado e serem pautados nesta campanha. Bom sinal.

Uma ressalva: O casamento civil homoafetivo é garantido por interpretação jurídica, a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em cima do que o ordenamento jurídico brasileiro especifica sobre uniões estáveis. Na sequência, por uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cartórios passaram a ser autorizados a realizar cerimônias de casamento civil em todo o Brasil. Mas a medida é, digamos assim, paliativa. Foi garantida pelo judiciário. Precisa estar garantida pelo legislativo.

Levy, no entanto, está certo em algo que falou: aparelho excretor não reproduz, por mais que o ânus – alvo da metáfora para sexo anal – pertença ao sistema digestivo. É um dado inquestionável, tão inquestionável quanto os direitos fundamentais das minorias, seja elas quais forem. Mas é que a garantia desses direitos nem sequer pode tangenciar o reconhecimento de LGBTs enquanto família. A luta é muito maior.

É duro dizer isso, mas… Nem todo homossexual quer formar família. E os que querem, nem todos desejam ter filhos, sejam eles biológicos ou adotados. Não é por meio dessa instituição, portanto, que nossa dignidade pode ser medida. Durante a semana, na Internet, foram compartilhadas milhares de imagens com os dizeres condescendentes “dois iguais não fazem filho, mas adotam o que dois diferentes jogam fora”. É verdade, mas não necessariamente é regra.

Gays não podem se reproduzir, mas também não têm a menor obrigação de adotar ninguém. É bastante possível que as pessoas queiram, de repente, usufruir integralmente de seus salários, viajar, comprar coisas, decorar a casa – tudo isso em vez de sustentar crianças. Pode ser que essas pessoas LGBT que optem por casar queiram se dedicar integralmente um ao outro, pode ser que achem mais vantajoso comprar um carro a cada ano, bater cartão na boate, em vez de arcar com as altas mensalidades de uma escola ou universidade. E ninguém pode julgá-las por isso

In ou felizmente, o status de família não é a Ibiza de gays, lésbicas, travestis e transexuais. É um direito necessário para quem quiser constituir uma – e muitas, muitas pessoas querem, arrisco dizer que a maioria. Mas assim como os heterossexuais, formar família não pode ser considerada nossa razão de viver.

E muito menos ter filhos.

Milhares de casais biologicamente reprodutivos preferem um cachorro ou um gato a produzir herdeiros. Logo, se existe um problema demográfico em alguns países (o que certamente não é o problema do Brasil), não é causado por homo ou transafetivos. A causa LGBT é simplesmente outra: respeito incondicional por nossa natureza. E isso torna como prioritário garantir nossa integridade física e moral, assim como a responsabilização de nossos agressores.

Quando promovemos o debate sobre direitos fundamentais sempre orbitando sobre a questão do casamento e do conceito familiar, estamos esvaziando drasticamente a discussão e ocultando um problema maior que – pasme! – atinge a todos, sem distinção de identidade de gênero ou orientação sexual. Será mesmo que casar e ter filhos precisa ser a norma para integrar nossa sociedade?

Uma palavra chave ajuda a descontrair este discurso opressor: ciseteronormatividade. Diz respeito à obrigação de que a dignidade de todo ser vivente da espécie homo sapiens seja necessariamente condicionada ao desempenho de performances cisgêneras (sexo biológico harmonizado com identidade de gênero) e heterossexuais.

Quem foge dessa regra (e muitos héteros fogem) é duramente penalizado. Duvida? Pense na sua que “ficou para titia” e nos apelidos de solteirona e de “velha louca dos gatos” que recebeu ao longo da vida. Pense nas mulheres desesperadas por um marido porque está “chegando ao fim” suas idades reprodutivas. Pense naquele casal amigo discriminado por outros casais porque optaram por não ter filhos. Pense na condescendência aqueles que infelizmente são inférteis. Isso só para destacas os casos mais frugais.

Logo, se a cisheteronormatividade existe e não atinge somente LGBTs, não somos os únicos alvos de uma sociedade excludente. É aí onde mora a estratégia: a garantia de nossos direitos fundamentais, até mesmo do casamento, ajudariam a nos visibilizar e até mesmo a trazer à tona uma outra e diversa maneira de ver a vida.

Mas para isso precisamos primeiro existir. Sobreviver. Precisamos ter a certeza de que voltaremos a nossas casas vivos, que não seremos retaliados por sermos diferentes. Garantido papel, a coisa se torna diferente. É exatamente porque acho a aprovação da PLC 122 – que criminaliza a homolesbotransfobia – absolutamente prioritária no contexto atual. Ou seja: a luta é outra, muito maior, mais extensa e real.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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