28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Hebert S. Klein: ‘Nas sociedades que foram escravistas continua existindo racismo’

Publicado em 25/02/2020 12:00 -

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Herbert S. Klein (Nova York, 1936) é o acadêmico vivo que mais teses de doutorado orientou nos Estados Unidos. Das universidades mais prestigiosas de seu país – Chicago, Columbia e Stanford –, este historiador e antropólogo apadrinhou dezenas de estudantes na fértil tradição dos EUA em estudos latino-americanos. O Colégio do México acaba de lhe conceder o prêmio Alfonso Reyes por suas vastas pesquisas sobre a escravidão, as finanças e a demografia coloniais, assim como a história comparada da região durante o século XX. Em seus livros – A Escravidão Africana na América Latina e Caribe (Editora UnB) e História Mínima de Bolivia –, ele desfaz lugares-comuns como o suposto papel subalterno da comunidade aimará. Também ilumina fatos pouco conhecidos, como a colaboração das elites africanas no comércio de escravos.

 

Qual é o papel dos povos africanos no desenvolvimento da escravidão?

Apesar das ideias muito difundidas de que os europeus chegaram e roubaram os africanos, o tráfico foi controlado dos povos e reinos africanos até as colônias americanas. Os europeus tinham uma ideia muito limitada da costa africana. Para eles era muito difícil chegar à Nigéria, ao Congo ou a Angola. Além disso, era um mercado muito especializado, caro e lento. Encher um barco de 300 escravos levava três meses. E os mercadores africanos exigiam tecidos da Ásia ou produtos especiais, como armas.

Outro mito é que o comércio de escravos era barato.

Era caríssimo. O poderoso povo Ashanti, no norte de Gana, pedia diretamente ouro. Os atores africanos fomentavam a competição entre os europeus. De fato, durante a primeira época, os colonos portugueses não podiam ter acesso às zonas de Benin e Biafra, duas das mais apreciadas. Enquanto não veio o boom no Brasil dos minerais, incluindo o ouro, os portugueses não puderam ter acesso a essas regiões.

Os portugueses foram os que estiveram mais perto de controlar o negócio na origem.

Sim, em Angola e Moçambique surgiu uma classe mercante afro-portuguesa, mestiços livres, que conseguiram não depender tanto dos mercadores. Foram capazes de acumular escravos e mandá-los ao exterior. Os portugueses chegaram inclusive a entrar em guerras em solo africano para apoiar seus sócios escravistas contra outros povos que respaldavam ingleses e holandeses. Foram os únicos que entraram diretamente na África.

Que diferenças havia entre as expedições espanholas e portuguesas, por um lado, e as holandesas, ingleses e francesas?

A Coroa espanhola e portuguesa controlou o fluxo até quase o século XIX. Já os holandeses, ingleses e inclusive franceses foram os primeiros a montar suas expedições privadas à margem da Coroa. Liverpool e Nantes foram grandes portos de barcos negreiros.

Como era a relação entre escravos indígenas e africanos?

As leis que aboliram a escravidão indígena foram mais tardias no Brasil, o que provocou muitas rebeliões e fugas por uma fronteira que, além disso, era muito aberta e difícil de controlar. Já os escravos africanos, desarraigados, eram fáceis de controlar, mas eram caros. Até 1600, a maioria eram escravos indígenas. Uma vez que o Brasil entrou plenamente no mercado europeu do açúcar, pôde conseguir o dinheiro para comprar escravos africanos. E, a partir daí, os índios praticamente desapareceram. Os portugueses não foram tão sensíveis à questão dos direitos humanos como os espanhóis.

Qual foi a diferença?

Em Portugal não houve debates profundos sobre os índios. Na Espanha, sim. Isso tem a ver com o fato de que os portugueses não tinham tanto controle sobre o Brasil como os espanhóis sobre as suas colônias. Não havia uma implantação tão forte da Igreja. Além disso, a Espanha conquistou civilizações desenvolvidas – incas, mexicas –, com estruturas sociais e econômicas estabelecidas, com camponeses produzindo em sua própria terra. No Brasil eram fundamentalmente caçadores-coletores, nômades, menos desenvolvidos e mais difíceis de controlar. A Espanha tentou absorver essa estrutura prévia de nobreza e, sobretudo, de campesinato que pagava impostos. Simplesmente eliminou a elite local para colocar um vice-rei.

Qual é o legado no presente desse passado colonial escravista?

Em todas as sociedades que foram escravistas, continua existindo racismo. A questão é a intensidade e como funciona. No Brasil, por exemplo, há menos guetos negros que nos EUA. É uma sociedade mais integrada. Também vem mudando a autoidentificação racial. Até os anos 1950, o Brasil se considerava um país branco. Agora o brasileiro médio já se aceita como mestiço. Mas há outros dados significativos. As famílias negras de classe média-alta têm problemas para assegurar a mesma posição de classe para seus filhos, o que não acontece com as famílias ricas brancas.

Ainda estamos longe de romper essa identificação do branco como o positivo, o rico?

Na Bolívia, por exemplo, também existe um alto nível de autoidentificação. Um terço dos índios não falam um idioma indígena, falam espanhol, mas se identificam como indígenas. Isso se deve a uma mobilização extraordinária das classes populares aimarás, que, embora sem o elemento da língua, não querem se identificar como brancos. Eles foram o catalisador, ainda que na década de cinquenta todo mundo pensasse que os quéchuas eram a comunidade predominante na Bolívia e que os aimarás eram muito passivos.

O senhor fala em seu livro que a Bolívia é “a mais indígena das nossas repúblicas”.

Em porcentagem da população, a mais indígena é a Guatemala, mas a mais autoidentificada é a Bolívia. Isso se deve a esse orgulho das comunidades e sobretudo à educação. Desde os anos 1940, há uma rede de educação rural para os camponeses. Antes inclusive da chegada de Evo Morales.

O que acha que acontecerá nas eleições presidenciais de maio?

O Movimento ao Socialismo (MAS) vai ganhar de novo. Não há outro país na América Latina onde a comunidade indígena tenha se expressado tão poderosamente.


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