28/03/2024 - Edição 540

Especial

A guerra das águas

Publicado em 17/02/2020 12:00 -

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Era noite de futebol. O jogador e líder comunitário Haroldo de Silva Betcel, o Véu, de 34 anos, foi assassinado com um golpe de chave de fenda nas costas num campinho às margens do Igarapé Tiningu, em Santarém, no Pará. A Polícia Civil disse que o crime ocorreu na disputa entre ribeirinhos e fazendeiros pelo controle do curso que morre no Rio Tapajós. No Brasil de hoje, água virou caso de polícia.

Um levantamento inédito feito pelo jornal O Estado de São Paulo revela que há 63 mil Boletins de Ocorrência (BOs) abertos em delegacias nos últimos cinco anos, por causa da briga pela água. É um litígio que vem crescendo. Sem conseguir resolver o antigo problema dos conflitos de terras, o País vive agora uma nova crise. Cada curva de rio caudaloso e de córrego quase seco é disputada à bala, à foice e à chave de fenda. Antes, praticamente não havia registros desse tipo.

O Estado percorreu áreas de tensão no Amazonas, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Pará, Paraíba, Pernambuco e Tocantins, além do Distrito Federal. As desavenças envolvem hidrelétricas, companhias de abastecimento, comunidades tradicionais, fazendas, pequenas propriedades e indústrias.

Há duelos até mesmo entre Estados. Num conflito que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), São Paulo e Rio de Janeiro se enfrentam pelo Rio Paraíba do Sul. O curso é um retrato da falta de controle no uso da água, com seu leito atingido pela destruição das matas ciliares e por canais clandestinos. Com menos água, a proporção de esgoto ali aumentou.

Os problemas estão por trás da crise que ocorre, atualmente, na cidade do Rio. Em dezembro do ano passado, os cariocas foram surpreendidos com uma água de cor e odor diferentes nas torneiras. A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro é criticada por falta de transparência. A empresa responsável por distribuir a água da Estação de Guandu, abastecida pelo Paraíba, foi uma das concessionárias que negaram informações à reportagem.

Em São Paulo, o Sistema Cantareira, que abastece a região metropolitana, opera em alerta desde a grande crise de 2013 e 2014. No Espírito Santo e em Minas Gerais, os rejeitos das barragens da Vale contaminaram a Bacia do Rio Doce e acirraram conflitos pelos afluentes ainda limpos. Os traçados dos córregos do Feijão e do Ferro do Carvão desapareceram.

Tensão

Casos assim são o retrato de um ciclo marcado por rivalidades e, muitas vezes, descaso do poder público. Atualmente, há 223 “zonas de tensão” permanente de disputas por água no Brasil. Há dez anos, eram apenas 30, segundo relatórios da Agência Nacional de Águas (ANA).

O Estado analisou 900 ações do Ministério Público Federal, mil registros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e 200 casos levantados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sobre conflitos por água, fora os milhares de BOs policiais. A reportagem avaliou, ainda, relatórios de órgãos do governo federal obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Os documentos revelam, em geral, a preocupação com o alastramento dos confrontos, nos próximos dez anos.

O crime envolvendo água é algo novo na vida dos policiais civis e militares e até dos agentes da polícia ambiental. Para piorar a situação, as secretarias estaduais de Segurança Pública não tabelam esses dados.

Com 12% de toda a água doce do planeta, as 12 regiões hidrográficas brasileiras, como as bacias do São Francisco, do Paraná e do Amazonas – a mais extensa do mundo –, registram o “boom” dos conflitos. Hoje, os rios nacionais são sugados três vezes mais do que há duas décadas.

São Francisco, um rio controlado por câmeras e seguranças

É mais um tempo de tensão e sede no semiárido. Numa sala de 40 metros quadrados, decorada com monitores de alta resolução em um prédio no interior de Petrolina, em Pernambuco, o vigilante Flávio Silva tem uma visão ampla dos canais. Ele e outros sete colegas contam, ainda, com um drone, três moto-patrulhas e uma viatura caracterizada para evitar a retirada de água de antigos canais do Rio São Francisco, 24 horas por dia. A fiscalização provoca a fúria dos sertanejos que não conseguem pagar licença de cerca de R$ 3 mil para abastecer seus sítios e casas.

Os “vigias da água” trabalham para uma firma de segurança que presta serviço à empresa Distrito de Irrigação Nilo Coelho (Dinc), uma terceirizada da estatal Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf). Os canais proibidos para boa parte dos moradores e sitiantes foram construídos ainda nos anos 1980 e 1990 para irrigar, especialmente, plantios de frutas para exportação.

Tudo indica que, a partir da entrega da nova transposição do rio iniciada em 2007, as regras de distribuição também sejam proibitivas para os pequenos produtores. A preocupação tornou-se real com a decisão de prefeitos e governos estaduais de deslocarem vigilantes e policiais militares para os eixos, com o objetivo de vigiar onde a água começa a correr. O governo tem dado prioridade ao abastecimento humano e ainda não definiu como será a partilha para a irrigação.

Enquanto isso, os sertanejos se arriscam em retiradas clandestinas, numa disputa silenciosa com a firma terceirizada pela empresa Dinc. “Nossa presença intimida, mesmo a gente não sendo polícia”, disse o vigilante Flávio.

A criminalização de quem não tem água é um drama a mais no semiárido. A equipe de reportagem estava próxima do canal, em Petrolina, quando testemunhou o momento em que um morador se aproximou do curso com um balde e um barril, olhou para os lados e, mesmo demonstrando medo, tirou a água dali. Era Cosme Angelo, de 26 anos, que dividiria o barril com 20 vizinhos.

Cosme se queixa de que a mesma água disponível à irrigação é proibida para os moradores. “É uma luta diária. Se eu for pegar água direto no rio, tenho que buscar a mais de 20 quilômetros, nas costas. Então, prefiro correr o risco de me verem e chamarem os vigias da água para fazer a ocorrência”, desabafou ele, ofegante.

Plantador de manga na zona rural de Petrolina, Francisco das Chagas Ferreira Garcia, por sua vez, migrou com a família de Exu para Petrolina, há 23 Anos. A meta era fugir da seca extrema, seguindo “o fluxo das águas”. Aos 54 anos, Tico Vaqueiro, como é conhecido, não se arrepende. “Aqui tem ano que chove, outro não. Mas a gente come todo dia”, afirmou ele, resignado.

Em Exu, a família de Tico era vizinha do cantor Luiz Gonzaga. “Ele chegava do Rio de Janeiro e chamava a gente para ir vacinar o gado. Ninguém passava fome quando ele era vivo”, lembrou. A migração no rumo do rio provocou inchaço populacional e acirrou as disputas por água na área onde os exportadores de frutas se instalavam. O projeto do Distrito de Irrigação Nilo Coelho é administrado pela Codevasf. Tico Vaqueiro só planta em metade dos 20 hectares de sua propriedade, pois não consegue elevar a conta de água, que já chega a R$ 4 mil. “As empresas conversam direto com o governo e conseguem mais água. Por outro lado, se um pequeno furar um cano e colocar uma bomba-sapo, vai preso”, disse.

Muro

É início de agosto. Não chove há oito meses em Cabrobó, no sertão pernambucano. O casal Rosa Maria dos Santos Landin, de 54 anos, e José Pedro Landin, de 56, da comunidade de Curalin, não sabe de onde vai tirar água para matar a sede de 360 cabras. A água não está longe. A menos de cem metros do sítio deles passa o Eixo Norte da nova transposição. O canal foi inaugurado no fim do governo Michel Temer, mas a água não atingiu volume para ser distribuída.

A obra ainda depende de estações de bombeamento e finalizações dos reservatórios que jogam a água no canal. Rosa e José, porém, acreditaram que a água chegaria logo e investiram em plantio de lavoura e criação de cabras. Perderam dinheiro. Para manter os animais, a família sai de manhã, antes do sol nascer, pelas terras secas do sertão em busca de garoba, uma planta que contém água.

O Estado chegou ao sítio dos Landin num fim de tarde. Sob os raios do sol, cabras com barulhentos sinos pendurados nos pescoços voltavam de mais um dia de busca pela água. Rosa e José começaram a contagem das cabeças. Para tristeza do casal, animais não têm retornado. É que, com o desmatamento da Caatinga, onças se aproximaram à procura de presas domésticas. Na semana anterior à chegada da reportagem, cinco cabras haviam sido devoradas.

Como bichos têm caído no canal, de cinco metros de profundidade, e moradores e produtores retiram água sem autorização, o governo construiu, em junho do ano passado, um muro para impedir o acesso. A água de volume baixo que corre ali serve para evitar racha no concreto. “A água fica pertinho e não podemos tirar. Agora, fizeram essa parede aí”, reclamou Rosa. “Para a gente tomar banho, lavar roupa, saciar as cabras, tinha que ser essa aí mesmo. Com o muro, nem essa temos. Meu Deus do Céu!”

O pequeno produtor João de Deus Gonçalves, de 65 anos, costuma conferir, todos os dias, se a obra foi retomada. E foi lá, em cima de sua moto, sobre uma ponte que atravessa o canal, que ele contou a perda das roças de cebola, feijão e milho por falta de água. “Não tenho esperança de que a transposição vá funcionar. Ela anda um pouco para frente e se deteriora para trás”, disse o homem, com voz embargada. “Sempre tem bomba queimando, transformador estourando, erro de engenharia.”

O Eixo Norte da transposição era para levar água de Cabrobó até o Ceará e o Rio Grande do Norte. A água, porém, não passou de Pernambuco – o ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, promete que isso ocorrerá em breve. João de Deus afirmou que testemunhou cada passo da obra, desde as primeiras “picadas” abertas no mato durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

A nova transposição do Velho Chico foi licitada por R$ 4,5 bilhões, mas já consumiu, em 13 anos, R$ 10,8 bilhões. O governo Lula estimou que a conclusão dos dois eixos, Norte e Leste, ocorreria em 2012. Agora, a gestão do presidente Jair Bolsonaro promete finalizar a obra até o fim do mandato. No ano passado, o Ministério do Desenvolvimento Regional aplicou R$ 1,3 bilhão no projeto, com investimentos na manutenção e na pré-operação.

A pasta comandada por Gustavo Canuto afirmou que, em novembro do ano passado, retomou a obra de bombeamento do Eixo Leste. “Hoje, 1,4 milhão de pessoas são beneficiadas pelo Velho Chico em 46 municípios, sendo 12 em Pernambuco e 34 na Paraíba”, disse a assessoria do ministério. No Eixo Norte, a execução chega a 97,3%.

Dos 260 quilômetros, restam dois quilômetros de canais entre os reservatórios de Milagres e Jati, no Ceará. As águas já chegaram a Verdejante, Pernambuco. O governo alegou que, ao longo da construção da obra, surgiram serviços não previstos e interferências como estradas, linhas de transmissão e desapropriações.

Exército controla poços e caminhões-pipa no Nordeste

Barracas militares são armadas na Caatinga. Homens fardados jogam reagentes químicos nos tanques de água dos caminhões. Jipes com soldados cortam as estradas empoeiradas. A operação de guerra do Exército para controlar a água do subsolo virou rotina no sertão nordestino.

O sol é rigoroso em São José do Belmonte, cidade de 30 mil habitantes no semiárido de Pernambuco. Por causa da formação geológica privilegiada e do subsolo rico em água, o município é uma exceção no Polígono da Seca, que abrange nove Estados, e passou a ser cobiçado por exploradores. Todos os dias, por volta das 5 horas da manhã, a entrada da cidade fica congestionada de caminhões-pipa.

A farra dos poços criou duas figuras no sertão. Os “outorgados” têm licença para usar a água e vendê-la ao Exército. Na outra ponta, os “mercenários” saem à caça de locais propícios à perfuração clandestina do solo. A corrida desenfreada pelos poços de Belmonte levou o governo federal a chamar o Exército para controlar e distribuir a água da região, que também é levada em pipas do Exército para a Paraíba e o Ceará. O município tem mais de mil grandes buracos de até 150 metros de profundidade. Em cada ponto de captação há uma equipe do Exército.

Um desses poços controlados em Belmonte pertence a Célio Assis Mariano, o Mano, de 40 anos. Com 170 metros de profundidade, jorra 38 mil litros de água por hora e é considerado um dos mais produtivos do município. “É como se eu tivesse acertado na ‘loto’”, comparou Mano. “Todo jovem quer ser dono de um poço artesiano e não precisar trabalhar na água dos outros, ser dono de um poço que jorra água docinha.”

Mano contou que, desde criança, sonhava em ser dono de poço e disse temer pelo futuro do lençol de água do município. A perfuração começou faz uns 30 anos. “Só que agora tem que dar uma freada, não é? Tem muitos poços aí que a gente sabe que estão a 30 metros um do outro, sendo que o limite é 500.”

O poço de Mano atende de 90 a 130 caminhões-pipa por dia. Ele vende cada carga a R$ 10, o que lhe garante até R$ 1.300. Nas proximidades, os “mercenários” perfuraram pelo menos dez outros poços. “O negócio deles é lucrar com a água. Vendem para qualquer um que aparece”, reclamou Mano, que ostenta em seu escritório o certificado de outorga.

A região em volta da propriedade dele parece uma área produtora de petróleo. Tratores e caminhões entram e saem carregando brocas desmontadas de perfuração – com as peças engatadas, as brocas chegam a ter o tamanho de um prédio de cinco andares. A busca pela água é incessante. “Está imoral”, lamentou Mano, em tom de indignação.

As carradas de água, como os pipas são chamados, dominam a paisagem do sertão. “Primeiro carregavam água em jumento. Era a maior dificuldade do mundo. Os jumentos foram substituídos pelos caminhões”, relatou Francisco Ferreira Fraga, pipeiro, 67 anos. “As pessoas gostam de beber a água do Exército, pois é de poço profundo, colhida todo dia. Não é igual água de açude, que tem gosto de velha. Essa água não acaba, não. Só Deus é que acaba com água. Todo dia surge um poço.

O governo de Pernambuco afirmou que o Exército distribuiu, em 2019, água a 500 mil pessoas, em cem cidades do Estado. Levantamento feito pela Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), a pedido do Estado, identificou gastos do governo estadual da ordem de R$ 82.403.882,97 com pipas, nos últimos cinco anos.

O gerente executivo do Distrito de Irrigação Nilo Coelho, Paulo Sales, afirmou que o trabalho de vigilância é necessário para evitar vandalismo nas estações de bombeamento e retiradas clandestinas de água. Ao Estado, ele observou que os canais cortam uma área onde moram 60 mil pessoas. “A gente definiu a equipe de segurança por questões de furto de água”, disse. “Há um trabalho educativo principalmente quando a abordagem é com criança”, completou. “Dentro do projeto tem 22 vilas de moradores. Então, é natural que ocorram problemas com a questão urbana.”

Há 12 anos no projeto, Sales argumentou que os custos da água estão relacionados à manutenção do canal, à energia, ao bombeamento e à segurança das máquinas. “A água não é cara”, disse. “O valor cobrado é necessário para manter o projeto em pleno funcionamento.”

Em nota, o Centro de Comunicação Social do Exército informou que as denúncias de irregularidades recebidas são apuradas por sindicâncias internas. Em caso de comprovação de irregularidade, diz o comunicado, os envolvidos respondem de acordo com a legislação, seja administrativa, pela Lei de Licitações, seja por processo penal militar. “O denunciante é informado a respeito do andamento da apuração da denúncia.”

Sertanejos criticam forma de distribuição de água

Sobrado, no Vale do Piancó, é uma localidade de chão rachado pela seca, na rota paraibana da água dos caminhões do Exército, mas suas 50 famílias costumam ter sede. Os moradores arrecadam dinheiro para convencer os pipeiros a deixar água, de forma informal.

“Na primeira vez, pensamos que eles iam encher de graça, mas aí pediram R$ 20. Sempre dou um agrado. Dou uma galinha, dinheiro. Outro dia foi R$ 50”, contou Maria Figueiredo da Silva, de 66 anos, que cuida do marido doente e da sogra, de 99 anos. “Sei (que é errado), mas é uma ajuda para eles merendarem.” Com o agravamento do problema respiratório do marido, Gracia José Figueiredo, de 74 anos, Maria convenceu o promotor da cidade a pedir na Justiça que os pipeiros joguem água na estrada antes de passarem. “Se não deixam água, não podem deixar poeira.”

No contrato fechado com o Exército, o governo da Paraíba não incluiu Sobrado. Enquanto isso, a cada meia hora um caminhão-pipa passa pela comunidade, levantando uma poeira marrom que encobre as casas de estuque e palha. Aos moradores sem relação com os “pipeiros”, restam duas alternativas. É peregrinar em busca da água barrenta dos raros açudes da região ou ligar para o prefeito.

“Ele manda o pipa porque quer ter voto”, disse o agricultor Hermes Paulino Figueiredo, de 69 anos. Na casa de estuque de Paulino, baldes e caixas estão por todos os cantos. Vazios. “Agora (agosto) não estamos no período de eleição”, observou ele, sentado, esfregando as mãos na terra seca e batendo umas nas outras, fazendo poeira.

A moradora Carmelita Paulino, de 61 anos, afirmou que, à exceção da igreja e de duas residências, todas as demais construções são feitas de pau a pique e não têm torneiras. “Quando falta água, a gente vai para o telefone e liga direto para o prefeito. Tenho o telefone dele. Aí a água chega meio salobra, amarelinha, mas chega, uma vez por semana. Quando não chega, a gente vai buscar no açude”, disse.

Ela costuma representar o prefeito João Nildo Leite, do PDT, no contato com a comunidade. Carmelita procura acalmar os moradores nas reuniões sobre água. Sempre explica que o prefeito “tem muita gente” para ajudar. “Não posso falar desse homem.”

Os seis baldes de água colocados por Carmelita em frente à casa também estavam vazios. Com problema na coluna, ela passou o dia anterior carregando água em trilhas na Caatinga. “Mas, se eu for no telefone, eu falo: ‘Dr João, estou com um problema agora, preciso de água’. Aí ele manda buscar no Pernambuco. Semana passada, o carro-pipa estava quebrado, disse que não podia buscar.”

Filho de Carmelita, José Fernando da Silva Neto, o Germano, 43 anos, tem outra opinião: “Esse prefeito só traz água para a senhora dar voto, mainha”. Germano acompanhou o Estado pelas cercanias de Sobrado. Casas abandonadas surgem no caminho. “São de primos meus que foram embora para não passar fome”, contou. “A água do prefeito parece soro, aquele que você bebe quando está com dor de barriga. Quando você vai para o doutor, ele diz logo: ‘É pedra no rim, de tanto sal que tem na água’.”

Numa estrada da Caatinga, a reportagem encontrou João Alcide, de 36 anos, primo de Germano que decidiu resistir. Borracheiro em Sobrado, ele voltava de uma caça. Com sua cartucheira, só conseguira um frango d’água, numa poça que ainda não tinha secado, a alguns quilômetros. Curioso, perguntou se nosso “trabalho” era para tratar da “secura”. “Eu quero falar”, pediu, agitado.

O relato de João Alcide retrata o drama de uma região marcada pela sede. “Para poder ter uma água aqui, tem que pagar R$ 50 de pipa. A verdade é essa”, lamentou. Para o primo de Germano, a fortuna não está no dinheiro. “Ter água dentro de casa aí, sim, é uma riqueza. Não é?”, pergunta ele, com a resposta na ponta da língua.

No dia 22, o Estado procurou o Exército para comentar a presença da força no controle da água no Nordeste. Um questionário chegou a ser enviado. Até a publicação desta reportagem, a assessoria não havia respondido.

A lógica da distribuição da água garantiu até agora quatro mandatos para o prefeito. Nenhum funcionário do município tem licença para atender a pedidos dos moradores. Ao Estado João Nildo Leite reconheceu que nunca procurou o Exército para garantir escalas dos pipas nas vilas do município. Embora reconheça que a água retirada de poços perfurados pela prefeitura é salgada, ele não pretende mudar a fonte nem o modelo de distribuição. O prefeito disse que condicionar a entrega de água a ligações para seu celular não é uma prática fisiológica. “A gente não fala em voto”, afirmou. “O celular vai estar disponível sempre. É o quarto mandato que eu tenho, graças a Deus. Tudo aquilo que é possível fazer eu vou fazendo.”

RIOS DOMINADOS

Búfalos invadem igarapés dos muras, os índios corsários do Madeira

Chamados de “corsários” da Amazônia pelos viajantes europeus, no Brasil Colônia, os índios muras sempre foram exímios conhecedores de rios, igarapés e furos de água da região de Autazes, no Amazonas. Além disso, eles tinham o domínio de labirintos fluviais, que lhes permitiam ataques repentinos e exitosos. Hoje, enfrentam cercas elétricas e manadas de búfalos nos cursos d’água que banham suas aldeias.

Ao percorrer mais de 100 quilômetros de barco por braços de rio no território dos muras, o Estado encontrou comunidades acuadas pelos búfalos, tocados na água por capatazes e pistoleiros. Em cinco aldeias, os muras identificaram seis igarapés totalmente ocupados por fazendeiros e vigiados por homens armados. “Se a gente passar pelo canal, leva tiro”, afirma João Açosa Mura, cacique da Aldeia Trincheira.

Caramuri, Munduruku, Boca do Taboca, Lago do Piranha e Pantaleão são alguns dos igarapés proibidos para o trânsito de muras. “Há certos cidadãos aqui que mantêm três seguranças armados para a gente não passar com as canoas”, conta o cacique. “No igarapé da Boca do Taboca, só passa se pedir permissão aos pistoleiros. Búfalo pode passar, mas mura não pode.”

Mais de 10 mil famílias sofrem com o avanço da criação desses animais, que também ocupam os igarapés Taquara e Munduruku. Neles, o Estado encontrou cercas elétricas. Para atravessar de canoa os igarapés, crianças precisam abaixar as cabeças, sob risco de choque. “A gente passa de teimoso, pois não quer se mostrar acuado”, diz João. Na outra ponta, fazendeiros acusam os índios de invadirem suas propriedades e de cortarem arame de cercas para matar os búfalos.

Quando uma manada de 20 a 30 animais com mais de uma tonelada cada entra num igarapé, levanta uma onda de lama do fundo do leito, deixando a água amarela e imprópria para o consumo. “Quando você vê água barrenta, percebe que tem problema: o búfalo está descendo o igarapé. É a água que a gente vai consumir porque não tem outra”, afirma o cacique de Trincheira, que cobra das autoridades a retirada dos animais. “Todo mundo sabe que merda de búfalo tira o oxigênio da água.”

Nas terras em volta da Aldeia Padre, os búfalos chegaram há dez anos. A água está imprópria para o consumo, assim como na vizinha Taquara, cercada por fazendas de criadores. “Os búfalos dos fazendeiros poluem nossas águas e comem nossos jacarés”, descreve Mariomar Mura, 49 anos, cacique da Aldeia Padre. “Os bichos acabam com tudo, por isso não tem mais camarão nem mato na beira do rio para peixe comer.”

Os índios reclamam que o poder público fechou os olhos para o problema. Ao Estado a Fundação Nacional do Índio (Funai) disse que a “presença” dos búfalos é “recorrente” na terra indígena por causa da localização geográfica das aldeias, muito próximas às fazendas. “A Funai realiza ações de fiscalização pelas quais os fazendeiros são solicitados a retirar os animais que adentrem em algum território indígena do povo mura”, destacou, em nota, a assessoria da fundação.

O Ministério Público Federal informou, por sua vez, ter recomendado a integrantes da associação dos fazendeiros que parem de constranger e ameaçar os índios. Os procuradores receberam até mesmo denúncia de que um índio foi ameaçado de morte. “Por envolver indícios da prática de ameaça, conduta ilegal prevista no Código Penal, o caso foi encaminhado para investigação criminal”, disse a assessoria do Ministério Público.

Vice-cacique da Aldeia Padre, uma das que foram abaladas pelos búfalos, Edson Mura, de 48 anos, reclama da situação. As aldeias vivem um clima de medo. “Se a gente inventa de colocar barco no igarapé, soltam pistoleiros em cima da gente”, relata Edson, em tom de desabafo.

Depois de navegar duas horas e meia a partir de Manaus pelo Rio Solimões, percorrer uma estrada de 115 quilômetros na floresta e cortar um braço do Madeira numa lancha voadeira, o Estado chegou ao território dos muras. Durante 14 horas, a equipe atravessou um labirinto de águas dentro da terra indígena. Ali, por igarapés, os búfalos estavam em cada curva. Ao longo da viagem, a embarcação que transportava os repórteres foi obrigada a desviar de mais de 20 manadas.

Existem dois tipos de criadores de búfalos em Autazes: o fazendeiro tradicional, que se instalou em volta do território dos muras, e o retirante, que vive em casa flutuante nos rios da região. Tradicionais e retirantes admitem a disputa pelos igarapés, mas culpam os muras por todos os confrontos, sob o argumento de que eles promovem ataques coordenados contra o rebanho.

Flávio Araújo Coelho, de 28 anos, é funcionário de uma fazenda encravada em território mura. “Cuido de 70 cabeças. Mas perdi recentemente dois bichos. Sumiram. A gente sabe que foi mura”, diz ele, apontando para a aldeia ao lado. Moreno jambo, cabelos escuros, Flávio é filho de pai e mãe índios. Mas não se reconhece como tal. Nas vilas ribeirinhas, os índios são vistos com preconceito e as aldeias são chamadas de “terras da Funai”. “Não tenho carteira de índio”, afirma Flávio Coelho.

O criador de búfalo Benedito Gomes, o Bené, de 57 anos, é outro mura que nega o parentesco. “Índio é quem vive em aldeia”, resume. Bené trabalhou em fazendas antes de ter a própria criação. Retirante, mora com sua família em uma casa flutuante sobre o Madeira, no território mura. O rebanho de 100 cabeças vive dentro e nas margens do rio. “Às vezes o bicho some e chega aqui cortado, atirado (vítima de tiro)”, diz.

Cada búfalo adulto chega a custar de R$ 3 mil a R$ 5 mil. Uma fêmea produz até 15 litros de leite por dia. “Conquistei meus bichos por meio de trabalho, mas os muras dão prejuízo. Já abateram quatro animais. Na água eles (os bichos) são bestas, todo mundo pega, com facão mesmo”, comenta Bené.

O criador observa que o conflito com os muras está cada vez mais perigoso e confessa ter medo de morar ali, praticamente em cima do rio. “Quero evitar guerra. Se matam um animal meu, jogo a carcaça no fundo da água e pronto. O que me deixa triste é que até os bichos que estão parindo e os recém-nascidos são mortos.”

Para impedir que os búfalos chegassem ao território “inimigo”, Bené comprou 1.700 metros de cerca. Os animais, porém, continuaram avançando. Ele acusa os índios de cortar o arame para que os bichos atravessassem a cerca. Com isso, poderiam abatê-los. “A gente vai falar e eles ficam bravos”, protestou.

Assassinato no encontro do Amazonas e do Tapajós

Ex-jogador do São Raimundo, de Santarém, o líder comunitário Haroldo de Silva Betcel, conhecido como Véu, passou o dia 18 de setembro de 2018 na cidade, vendendo açaí. À noite, pegou a moto e foi para o campo de futebol da comunidade do Tiningu, onde morava com a mulher e um filho de 12 anos. Assistia a uma partida com um prato de comida na mão quando, de repente, o capataz de uma fazenda chegou por trás e enfiou uma chave de fenda nas suas costas. Véu ainda correu atrás do agressor, aparentemente sem perceber que o ataque tinha sido profundo, deixando a ferramenta fincada em seu corpo.

Com mandado de prisão decretado, Doriedson Rodrigues da Silva, o matador, está foragido. Ele não constituiu defesa. O crime na disputa pelo Igarapé do Tiningu, a 60 quilômetros do encontro das águas barrentas do Rio Amazonas com as claras do Tapajós, seguiu o roteiro dos conflitos mapeados nesta série de reportagens. O igarapé foi fechado para irrigar fazendas, faltou água para consumo humano e, assim, começou a guerra.

A polícia não apontou envolvimento do patrão de Doriedson no crime. O fazendeiro tinha mandado seus peões cercarem o igarapé, impedindo o acesso dos moradores do Tiningu à água.

Dias antes do assassinato, a Justiça de Santarém havia determinado que a fazenda onde o matador trabalhava “cessasse” as sabotagens. O dono da propriedade não foi localizado para comentar o caso.

Numa manhã de dezembro passado, o Estado esteve no Tiningu. Depois de descer o Amazonas de barco, de Manaus a Santarém, numa viagem de 36 horas, a equipe pegou uma estrada de terra de 50 quilômetros para chegar ao quilombo no sopé de uma montanha coberta de floresta. A comunidade fica entre os rios Tapajós e Amazonas. Ali vivem 80 famílias.

Antes de entrar no território quilombola, no entanto, pastagens secas e plantações de soja predominam. Santarém virou um “case” do desenvolvimento do agronegócio na Amazônia, mas também uma das regiões onde o desmatamento mais cresceu na última década. A mata nativa encolhe a cada dia, enquanto se multiplicam as serralherias. As áreas de floresta se limitam hoje a territórios indígenas e quilombolas e terras de proteção ambiental.

O líder da comunidade do Tiningu, Benedito Mota, o Bena, de 60 anos, observa que o quilombo está cercado por madeireiros, grileiros e donos de serrarias. Na lista de ameaçados de morte, ele relata que as matas ao redor da comunidade guardam as nascentes do Tiningu. “É na disputa injusta por este igarapé que nosso irmão morreu”, diz Bena, numa referência a Véu.

O plantio irrigado se intensificou nessa região da Amazônia. Os conflitos também. A Polícia Civil de Santarém contabiliza mais de cem Boletins de Ocorrência registrados por causa da briga por água, no último ano.

A disputa pelo Tiningu virou guerra declarada entre fazendeiros e quilombolas quando o curso da água foi desviado. O rio deixou de chegar à comunidade. Em uma discussão motivada por esse confronto, segundo a Polícia Civil, o capataz da fazenda chamou Véu para a briga e desafiou líderes quilombolas. Bena conta que o primeiro embate ocorreu na comunidade vizinha, a Murumuru. “O capataz foi falar com outra liderança, que era o tio do Haroldo. Ali eles tiveram uma primeira discussão. Até que chegou o momento de covardia e ele matou o Véu”, afirma Bena. “O criminoso já vinha tramando aquilo ali há vários dias, amolou bem a chave de fenda.”

É difícil para a agente de saúde Ilcecleia Gomes Bectel, de 38 anos, esquecer a imagem do marido ensanguentado. Ela costuma ir ao cemitério pelo menos uma vez por semana. Para rezar. Quando fala de Véu, chora de soluçar. Conta que, meses antes do assassinato, o marido começou a receber ameaças. “O capataz vivia ameaçando, dizendo que eu ia ficar viúva. Eu nunca me ligava para isso”, afirma Ilcecleia.

Na manhã em que chegou ao quilombo, o Estado encontrou mulheres com bacias e crianças tomando banho no Tiningu. As águas do igarapé são usadas para beber, molhar as plantações de mandioca e banana e saciar a sede dos animais. “Fazendeiro inventa de fechar, aí é um problema para nós, pois á água do Tapajós é amarela. Não serve para beber nem lavar roupa”, avalia Júlia Mota, de 62 anos. “Não tem que ter um dono.”

A comunidade deu entrada no processo de reconhecimento de área quilombola em 1996. Na primeira reunião, apareceram 17 famílias. Hoje são mais de 80 declaradas. O território foi reconhecido pelo Incra, mas os moradores não conseguiram a posse definitiva. Essa insegurança motiva invasões. Eles afirmam que, mesmo após o assassinato de Véu, continuam sofrendo ameaças.

A presença das famílias na área é antiga. Em 1848, seis escravos fugiram de uma fazenda na região de Santarém e fundaram o quilombo aos pés da montanha de onde escorre o Igarapé do Tiningu. Na montanha, viviam índios, que se aproximaram dos negros. O dono do engenho mandava praças e soldados buscarem os fugidos. Os índios, do alto, assobiavam para avisar os negros. Isso aproximou indígenas e ex-escravos.

Assassinatos por conflitos de água também foram registrados em outras regiões do País. Na madrugada de 12 de março de 2018, por exemplo, o ativista Paulo Sérgio Almeida Nascimento, de 47 anos, de Barcarena, a 40 quilômetros de Belém, foi metralhado por desconhecidos quando saía de casa para ir ao banheiro, no quintal. Um dos líderes da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia, Nascimento denunciava à época a multinacional norueguesa Hydro Alunorte por uso ilegal das águas das nascentes do Rio Pará.

O Instituto Evandro Chagas, do Ministério da Saúde, indicou que a empresa tinha um duto irregular de rejeitos de bauxita, que despejava nos córregos formadores do Rio Mucuripe, afluente do Pará. A mineradora processou o autor da pesquisa, mas foi derrotada na Justiça. Para manter suas operações, a Hydro Alunorte teve que assinar Termo de Ajustamento de Conduta apresentado pelo Ministério Público. Em nota ao Estado, a Alunorte voltou a negar vazamento ou transbordo de seus depósitos de resíduos. A assessoria de imprensa da empresa afirmou que a mineradora passou a buscar um “relacionamento mais próximo” com as comunidades locais. “A Hydro repudia qualquer tipo de associação entre suas atividades e ações contra moradores e comunidades de Barcarena e condena firmemente qualquer ato de violência. A empresa está investindo R$ 100 milhões nesta iniciativa cuja gestão é independente e deverá criar uma plataforma de desenvolvimento de longo prazo para a região.”

Disputas com morte também ocorreram em Mato Grosso. Em 5 de janeiro de 2019, por exemplo, seguranças dispararam contra agricultores que pegavam água no Rio Traíra, uma área de conflito de terra, em Colniza, a mil quilômetros de Cuiabá. Eliseu Queres foi morto. Outros nove agricultores ficaram feridos.

As vítimas ocupavam parte da Fazenda Bauru, em litígio na Justiça. A empresa alegou para a polícia que seus funcionários apenas reagiram a uma tentativa de emboscada.

Em Salvador, na Bahia, a comunidade Quilombo dos Macacos está em pé de guerra com a administração da Base Naval de Aratu, muito usada para hospedar presidentes, como Jair Bolsonaro. A Marinha pretende cercar uma barragem utilizada por 67 famílias e só liberar o acesso a cadastrados. A comunidade teme que a exigência seja o primeiro passo para o bloqueio total da água.

Na prática, o clima é tenso desde os anos 1970, quando a Marinha se instalou no quilombo. Confronto com militares à parte, os moradores sofreram um revés em 25 de janeiro do ano passado. Motivo: foram surpreendidos com o assassinato de sua liderança mais antiga, José Izídio Dias, de 89 anos. A Polícia Federal investiga o caso.

RIOS ROUBADOS

Agricultores goianos perdem o rio Batalha para usina hidrelétrica: entenda este e outros casos de conflito pela água no interior do Brasil

Quem chega ao povoado de Vista Alegre, uma região montanhosa de cerrado, na divisa de Minas Gerais e Goiás, se impressiona com um extenso lago verde formado pelo Rio Batalha. Uma placa informa que o acesso ao espelho d’água de 13 mil hectares é proibido até mesmo aos moradores.

Em Vista Alegre vivem 287 famílias de produtores rurais. Elas foram transferidas para lá após o represamento do rio e a formação do lago para movimentar as turbinas da Usina Hidrelétrica de Batalha. A promessa de fartura de água, simbolizada pelo grande reservatório, virou decepção quando os produtores receberam as primeiras “cartinhas” de Furnas, que administra a usina, avisando que todos estavam proibidos de se aproximar do lago.

A vila fica a 80 quilômetros do mercado mais próximo. Farmácia só a três horas de lá e, mesmo assim, de carro. Quando o Estado chegou à comunidade, os moradores estavam reunidos para discutir o conflito sobre a água, que se arrasta há duas décadas. Em círculo, e de pé, eles se revezavam no microfone. Duas mulheres, representantes da empresa de energia, faziam anotações enquanto os produtores descarregavam, com visível desesperança, suas queixas.

Ao pedir a palavra, o produtor José Aparecido, o Cidão, de 52 anos, logo disse que se tratava de uma reunião para falar de água. Antes da barragem, afirmou ele, olhando para a câmera da reportagem, as pessoas tinham muita água para beber e plantar. “O rio que a gente pescava, as veredas e as palmeiras foram roubados. Agora não podemos nem tocar na água porque é proibido. Queremos um trabalho de irrigação, para ter emprego, circular dinheiro”, afirmou.

Ao Estado, a Agência Nacional de Águas (ANA) confirmou que nega, desde 2012, todos os pedidos de outorga na Bacia do São Marcos, região onde está inserido o lago de Batalha. A agência disse que o aumento da demanda por irrigação ocorreu em paralelo à escassez hídrica e nunca fez restrições entre pequenos e grandes proprietários. “É importante notar, no entanto, que os pedidos vêm sendo negados independentemente do porte”, destacou a ANA, em nota, ao observar que os pivôs foram liberados anteriormente.

Instalados antes de 2012, os pivôs – como são conhecidos os equipamentos para irrigação de grandes áreas agrícolas – revoltam os produtores de Vista Alegre. Motivo: eles argumentam que à época não tinham recursos para implantar projetos de irrigação. Uma parte dos produtores tenta há 20 anos receber o título definitivo da terra do Incra, mas o modelo adotado antes de 2012 impossibilitou a obtenção de financiamentos para os projetos.

“Esse mundo de água que vocês estão vendo aqui é proibido para nós”, disse o produtor Joseli Machado dos Santos , de 54 anos. “Os senhores lá de cima (autoridades) não veem isso. Agora, os grandes produtores montam pivôs e mais pivôs. Nós não podemos tirar a água nem para beber e dar aos animais.”

Sem acesso à água, os produtores reclamam, com boletos de pagamento em mãos, do alto custo da energia elétrica na vila. “Aqui é o seguinte: a água gera energia. E a energia aqui é mais cara que dentro da cidade. Um pequeno produtor pagar R$ 700 por mês de energia não tem lógica”, afirmou Joseli. “Onde está a cabeça desse povo? A escravidão já acabou. Aí, se você tira água do lago, vão dizer que é ladrão”, emendou ele, com olhos marejados. “Nós chegamos aqui antes deles, quando não tinha barragem e isso aqui era o rio correndo.”

No período em que a reportagem esteve em Vista Alegre, os assentados não queriam desgrudar da câmera. Um a um, eles faziam fila para dizer por que a comunidade precisava ter acesso à água. A expressão “lago proibido”, usada pelos produtores, permeou boa parte dos depoimentos. “As pessoas vão ficar aqui com um mundo velho desse de água, sem poder irrigar, sem poder ter uma fruticultura, sem poder criar peixes?”, questionou o produtor Milton Alves dos Reis, 53 anos. José Ribamar, de 56 anos, tem dois apelidos: JR e Ceará. Prefere o segundo, pois lembra o período da infância, antes de deixar o Nordeste em busca de terra com água. No final dos anos 1990, ele conseguiu um pedaço de chão em Vista Alegre.

Ribamar se apresenta à reportagem como um “clandestino”. “Não tenho medo. Eu quero enfrentar quem tiver que ser. Cansei de viver nessa situação humilhante e ver meus companheiros passando o mesmo.”

A engrenagem que Ribamar construiu para retirar água é manual. “Se eu desço uma bomba ou uma máquina para pegar água, eu saio daqui como um bandido, com risco de ir para a cadeia. Então, eu coloquei uma bomba em cima do morro e desci a mangueira até embaixo no lago”, contou.

A bomba de Ribamar está longe da potência dos equipamentos de irrigação das fazendas mais próximas. A quantidade de água que ele consegue retirar dá apenas para encher a caixa que abastece a casa e que mata a sede de algumas cabeças de gado. “A polícia já deu a ordem, em nome de Furnas: ‘Não pode tirar água’. Mas o que eu faço? É a briga do cachorro grande contra o cachorro pequeno”, disse ele, gesticulando muito. “Quem é sequeiro não tem água nenhuma. Sobrevive de carregar tambor nas costas igual no Nordeste.”

O Estado procurou a assessoria de Furnas, que administra o reservatório da Usina de Batalha, para apresentar todas as críticas e denúncias dos moradores de Vista Alegre. A reportagem pediu, ainda, esclarecimentos sobre as promessas que a empresa teria feito à comunidade na época da formação do lago. A concessionária, no entanto, limitou-se a enviar uma nota destacando que sua “função prioritária” é gerar energia elétrica para o Sistema Interligado Nacional (SIN), além de propiciar “usos múltiplos”, como regularização de vazão, controle de cheias, abastecimento de água e irrigação.

A responsabilidade sobre a utilização desses recursos, no diagnóstico de Furnas, é da própria ANA. “Quem define o uso dos recursos hídricos é a Agência Nacional de Águas e os níveis dos reservatórios, o Operador Nacional do Sistema Elétrico.”

Em guerra com hidrelétricas, fazendeiro se junta a pequeno produtor

A capital federal está cercada por 2.558 pivôs de água. Os três municípios mais irrigados do Brasil estão em volta da cidade modernista. Unaí e Paracatu, em Minas Gerais, e Cristalina, em Goiás, lideram a expansão das lavouras irrigadas no País, que cresceu 47 vezes de 1985 para 2019, segundo dados da Embrapa. Concentram também disputas pelo controle dos mananciais.

Os produtores travam uma queda de braço com o setor de energia. Eles miram as Pequenas Centrais Hidrelétricas, as PCHs. “Há dez maneiras de produzir energia. Alimento, só usando água, não tem outro jeito”, afirmou Alécio Maróstica, presidente do Sindicato Rural de Cristalina. “Não tem produção a seco de alimento.”

Maróstica conta que os produtores, assim que sabem do plano de uma nova hidrelétrica, se mobilizam para “espaná-la”. “É sempre quebra pau aqui”, resume. Nas paredes da sede do sindicato, mapas do município indicam fazendas e mananciais.

Cristalina conta hoje com 63 mil hectares irrigados, o dobro do registrado em 2007. Foi naquele ano que o conflito da água na cidade começou. Maróstica era secretário estadual de Irrigação. A ANA avisou ao então gestor que não seria mais possível liberar irrigação porque era preciso sobrar água para as PCHs. “Eu disse: ‘Vou reunir todos os produtores, inclusive os pequenos, e vocês vão lá falar isso com eles. Eu garanto uma coisa: Se saírem vivos de lá, está aprovado’. Foi uma climão”, descreveu.

Nas reuniões realizadas pela Agência Nacional de Águas, os produtores foram alertados de que a área irrigada do município havia chegado ao limite. Ao Estado, a ANA informou ter dificuldades de dar novas licenças não apenas para a região de Cristalina, mas para todo o País, e fez uma previsão preocupante. “Os conflitos tendem a se agravar, pois a demanda por água só tende a aumentar”, disse a assessoria da ANA.

Um “mapa da irrigação”, estampado na presidência do Sindicato Rural do município, é a representação de um campo de batalha em constante movimento. Cada pivô de irrigação e cada produtor rural representam um ponto no mapa. Na parte de cima são 180 fazendeiros, que detêm 60% da área irrigada. Na parte de baixo do mapa vivem 1.500 produtores com os 40% restantes da disponibilidade hídrica.

Na guerra com as hidrelétricas, os grandes proprietários flertam com os pequenos. A aproximação tem motivo: tradicionalmente em confronto, grandes e pequenos foram surpreendidos por outra força. O setor de energia chegou há poucos anos. Agora, o porta-voz dos fazendeiros afirma que pretende representar os pequenos produtores na luta pela água. Ele diz não ter interesse na terra dos sitiantes, mas quer aumentar a capacidade de irrigar dos grandes. Nesse caso, os pequenos não são um obstáculo. “Você acha que os pequenos não vão querer irrigar?”, questiona Maróstica, mostrando a parte do mapa onde estão as menores propriedades de Cristalina. “É a área de maior tensão e conflito. A água não é um bem para servir a uma meia dúzia.”

Um dos representantes dos pequenos não vê com maus olhos a sedução do tradicional adversário. Afinal, os sitiantes têm pouca força para enfrentar a atual política de outorga.

O secretário da Agricultura Familiar de Cristalina, Gilmar de Oliveira Matos, que também é assentado, prevê a qualquer momento a revolta dos pequenos contra o governo, pois apenas quem tem grande área consegue licença para irrigar.

Nas regiões das hidrelétricas vivem quase duas mil famílias de pequenos produtores que não podem beber água dos mananciais. “Enquanto isso, os fazendeiros metem suas bombas para retirar água para irrigar o mundo”, protesta Matos. “Parece que é pecado encostar nos reservatórios. É uma água proibida. Tudo o que representa essa maravilha que é a irrigação, para nós, pequenos, não é possível.”

Maróstica, por sua vez, tem motivos para comemorar. Ele foi nomeado recentemente pela ANA para mediar a zona de tensão de água de todo o Planalto Central e dá pistas sobre a posição que adotará. “Vai gerar energia no inferno”, afirma, numa crítica contundente às hidrelétricas.

Em Goiás, 50 municípios vivem situação de conflito e disputa por água. São regiões onde a oferta de recursos hídricos não é mais suficiente para atender à demanda. Levantamento feito pelo Estado, com auxílio da Secretaria Estadual de Segurança Pública, identificou 1.885 Boletins de Ocorrências (BOs) envolvendo disputa por água, nos últimos cinco anos, somente em Goiás. A secretária estadual de Meio Ambiente, Andréa Vulcanis, afirma que a situação de conflito chegou à região metropolitana de Goiânia, onde moram 44% da população do Estado. Na Bacia do Meia Ponte, que abastece a capital, por exemplo, 12 municípios vivem da produção rural. “Dou água para a cidade ou ao pequeno produtor?”, pergunta ela.

A opção foi aumentar a fiscalização no meio rural até com helicópteros. Foram identificadas nove mil barragens clandestinas. Pela legislação brasileira, a água é um bem de domínio público, dotado de valor econômico. A gestão dos recursos hídricos deve proporcionar os usos múltiplos das águas, de forma descentralizada e participativa, contando com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades. A lei também determina que, em situações de escassez, o uso prioritário da água é para o consumo de seres humanos e bichos.

Sem floresta alagada, Araguaia registra aumento de conflitos por terra e água

Extensas áreas de floresta alagada pelo Rio Araguaia na época das cheias estão sendo drenadas no sul do Pará. A chegada de uma tecnologia para sugar as águas resultou numa expansão de plantios de grãos onde antes existiam árvores submersas.

Em Santana do Araguaia, no sul paraense, onde a reportagem esteve na última semana de novembro, 25.500 hectares de florestas viraram campos de produção, o equivalente a 25 mil campos de futebol. Agora, valas quilométricas por onde a água corre se sobressaem na paisagem. O município vive um boom na produção de soja. Os poços dos sítios de pequenos produtores, que antes davam água a três metros, agora chegam a sete metros de profundidade. “Não tem mais o alagado. É dreno para todo canto”, lamenta o agricultor Edmar Lourenço, 48 anos.

Edmar mora com a mulher, Rosângela Antônia Alves, de 39 anos, numa casa de tábuas às margens da BR-158, em Barreira dos Campos, localidade de Santana do Araguaia. Na frente de seu lote, uma área de mil hectares havia sido desmatada uma semana antes da chegada do Estado. As retroescavadeiras, enfileiradas, perfuravam valas no terreno. Diante do avanço da soja, pequenos produtores venderam suas terras.

Grandes plantios avançaram. “Queriam passar o trator até no cemitério da comunidade. O povo que tem parente enterrado não deixou jogar as tumbas para riba”, lembra Edmar.

Um dia antes da chegada da reportagem, a igreja da vila foi atingida por rajadas de agrotóxico despejadas por um avião que sobrevoava plantações no entorno. A comunidade, que há três anos era um descampado na floresta amazônica alagada, agora está cercada por imensas áreas drenadas.

Aparecida Pedro Silva, de 79 anos, conta que estava na igreja quando os fiéis precisaram abandonar o culto para fugir do veneno que entrava pelas janelas e pelo teto. “Não é raro acontecer”, constatou. “Os aviões não desviam a rota quando despejam veneno, e a vila é borrifada junto com as plantas.”

Com o tamanho equivalente a três vezes o território do Estado do Rio de Janeiro, a Região de Integração do Araguaia virou uma das maiores frentes de desmatamento da Amazônia, segundo técnicos da área ambiental. É também no Araguaia que as forças policiais têm atuado mais para evitar conflitos por terra e água. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabilizou a morte de dez líderes rurais nos últimos cinco anos. “O problema é sempre de invasão de terra e, consequentemente, de fontes de água”, avalia Adevaldo Araújo Marinho, ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Santana do Araguaia.

RIOS MORTOS

Tocantins, um rio que deixou de correr no Brasil Central: entenda este e outros conflitos pela água no País

Um dos rios do cerrado que mais fascinaram antigos naturalistas pela variedade de plantas e animais, o Tocantins deixou de correr em muitos trechos. O curso foi afetado pelas hidrelétricas construídas nos governos Lula e Dilma Rousseff. O uso de suas águas para mover turbinas impactou o fluxo. Das cabeceiras, no interior de Goiás, às grandes usinas no Estado do Tocantins, a reportagem registrou histórias de ribeirinhos que foram deslocados das margens do rio para áreas sem acesso à água.

A Vila Retiro, município de São Salvador do Tocantins, uma comunidade de pescadores e pequenos agricultores nas proximidades do Tocantins, foi impactada em 2006 pela construção de uma barragem para geração de energia. Centenas de propriedades rurais foram alagadas. A obra da Usina Hidrelétrica Peixe Angical represou o Tocantins na altura de Retiro. Após o início de sua operação, os moradores foram impedidos de tocar na água. O lago é vigiado por seguranças da usina e policiais militares. Os sitiantes, por sua vez, reclamam da dificuldade de vencer a burocracia da outorga da Agência Nacional de Águas (ANA).

Os moradores lembram que o rio corria sem interrupção antes das barragens. “Tinha mais gente, fartura e roça. Hoje, Retiro é uma vila fantasma. Os mais novos foram para Goiânia. A vila não tem nada para oferecer”, diz o comerciante Olício Tavares, de 55 anos. “Antes, todo mundo morava na beira do rio, tinha fartura, tinha produção de cana, banana. Hoje, a terra boa está debaixo da água. Fizeram um assentamento, mas à água o povo não teve mais acesso.”

Tavares conta que, antes de a água subir, a vila tinha 800 moradores. Com a cheia, só 300 permaneceram. “Ficou apenas o pessoal que vive de Bolsa Família. De produção não tem como viver”, afirma ele. O comerciante chegou a pedir uma reunião com representantes da companhia. “Disseram que, se tirar um pouco para irrigar abacaxi, está tirando o dinheiro deles. Eu me assustei. Se colocar bomba de água a multa é muito cara. Por causa da fiscalização dia e noite, o cabra tem medo de ser preso e o povo, de enfrentar. Mas vai ter uma hora que não vai ter jeito.”

Assim que a barragem começou a encher, as águas dos córregos e das nascentes foram “roubadas” pelo lago. O agricultor Teodoro Conceição dos Santos, de 74 anos, diz que levou menos de dois anos para o córrego Mato Seco “desaparecer do mapa”. “Agora só se tem água nos poços e nas cisternas abastecidas pelos pipas”, afirma ele, em uma referência ao caminhão usado para o abastecimento. Ex-morador da beira do Tocantins, Santos escuta com ajuda de aparelho. Ele conta que a água distribuída pela prefeitura tem cor de Coca-Cola e cheiro ruim. “O pipa aparece uma semana depois que a água acabou e o povo já está com sede, mesmo tendo esse lago imenso aqui do lado.”

Manoel Araujo dos Santos, de 84 anos, viu sua propriedade ser completamente alagada pelas águas da usina. Em 2006, ele recebeu uma indenização pela terra que não deu para construir uma casa. Chefe de uma família de oito pessoas, deixou de ser agricultor para viver de auxílio do governo. “Com o decorrer do ano, o poço vai secando e afundando cada vez mais”, lamenta.

A agricultora Olerina Moura dos Santos, de 59 anos, organiza a Folia de Reis e a festa junina da vila. Faz de tudo para a comunidade não acabar. “Sem água, as pessoas vão embora”, diz. “Preciso buscar água um dia em cada canto, com um riozão desse tamanho passando ao lado. Dá vontade de ir lá (na usina) e quebrar tudo, mas, se quebrar, a gente vai para a cadeia. É aguentar sossegado.”

Procurada pelo Estado, a Agência Nacional de Águas nega que esteja dificultando as autorizações, responsabiliza a hidrelétrica e aponta problemas agrários na região. “Não há qualquer restrição de parte da ANA à emissão de outorgas para captação de água no reservatório”, destacou a agência, em nota. “A água ali armazenada é um bem público, portanto não pertence à hidrelétrica. É possível que haja alguma confusão sobre a propriedade, áreas lindeiras ao reservatório (…). Um conflito fundiário e não de uso de água.”

Concessionária da Usina Hidrelétrica Peixe Angical, a Enerpeixe respondeu que as famílias interessadas em retirar água do Tocantins devem procurar a ANA. “A companhia acrescenta que foram desenvolvidos vários projetos agrícolas com as 97 famílias ribeirinhas afetadas pela formação do reservatório, realocadas nos seis projetos de reassentamento rural implantados pela Empresa”, ressaltou a assessoria.

Em São Paulo, seis casos de disputa por água são registrados por dia

Para encontrar água, produtores rurais, companhias de abastecimento e fábricas do Estado de São Paulo precisam cavar cada vez mais fundo. O uso descontrolado dos mananciais, sem qualquer fiscalização do poder público, fez aparecer o fenômeno das cidades sem rio. A redução drástica do volume dos cursos de água transforma os municípios em territórios de conflitos.

As delegacias paulistas registram uma média diária de seis casos de disputa por água. Há dez anos, porém, esse índice era próximo de zero. Dados inéditos do Departamento de Águas e Energia Elétrica, contabilizados a pedido da reportagem, revelam que os conflitos passaram de 134, em 2009, para 1.097 em 2018, um aumento de 718% em dez anos.

Em uma década, o Estado de São Paulo registrou 8.974 casos de disputa por água. São notificações de infrações onde usuários do manancial tentam burlar o sistema de captação para retirar mais água do que o permitido, prejudicando os demais setores e pessoas que fazem uso da bacia hidrográfica. Esses números não levam em conta as ocorrências de furto de água, ameaças e casos de construções irregulares de barragens e desvios de rios registrados pela Polícia Militar, por meio do policiamento ambiental – 2.942 de ocorrências, nos últimos três anos.

Somados os números da Polícia Militar com os do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), chegaríamos a um total de 7.017 ocorrências, apenas nos últimos três anos, uma média de 6,4 conflitos por dia, o que põe São Paulo entre as regiões com maiores focos de tensão do País. Em muitos casos, os conflitos por causa de água se travam em regiões onde nem mesmo existem rios. As águas do solo já foram todas sugadas pelas bombas de irrigação e a BRIGA se trava agora pelo líquido do subterrâneo, dos aquíferos.

Quem percorre o Rodovia Euclides da Cunha, no interior de São Paulo, observa diversas placas de propaganda de empresas com maquinários que perfuram poços artesianos.

Na principal rua de Jales, município de 50 mil habitantes, funcionam três perfuradoras. Um comerciante lembrou “de memória” nomes de córregos que já morreram ou estão, nas palavras dele, “penando”. Citou o Marimbondo, Ribeirão Matão, Perobinha, do Café, dos Coqueiros, do Figueirinha e do Matãozinho. Fomos atrás deste último.

O agricultor Ednaldo Eder Zambom, de 47 anos, lembra que até pouco tempo atrás havia mais água nos rios e riachos da região. O córrego Matãozinho foi tragado pela irrigação e pela abertura de poços artesianos de grande profundidade. “Agora, a água nossa aqui é tudo de poço. Não tem córrego, não tem rio, não tem nada. Tem um córrego lá embaixo, mas não tem água suficiente. A água vai indo cada vez mais embora”, afirma Zambom.

Até 1975, a economia de Jales girava em torno do café. Depois de uma geada histórica na região naquele ano, que dizimou a maior parte das plantações, os produtores decidiram pela fruticultura, com foco no morango e na uva.

Consciente da importância da economia da água, o produtor usa a irrigação por microaspersão. Ele exibe com orgulho seu sistema de bombeamento que retira água do subterrâneo e mantém produtiva a propriedade de pouco mais de seis hectares. O poço tem 110 metros de profundidade, do tamanho de um edifício de 35 andares.

Por causa da redução de água, famílias vizinhas de Zambom desistiram da agricultura. “Falta estímulo. O dia a dia na roça é difícil. As pessoas novas foram indo embora”, diz. “A cada ano vai acabando mais, ficando pouco produtor. Outros fizeram pastos. As coisas tudo sobem de preço. Veneno acompanha o preço do dólar. Faz 10 anos que a gente vende uva a R$ 3. Desistimos da uva. Agora mexemos com legumes. Se não tem água, não tem produção.”

No Estado de São Paulo, 6.436 produtores rurais contam com outorgas para retirar água dos mananciais, mas uma parcela muito maior de agricultores, admite o governo, permanece na clandestinidade. Tanto que, em setembro do ano passado, o secretário executivo da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, Ricardo Santoro, publicou portaria para facilitar a regularização de quem usava água de forma irregular. A norma alterou a medição do fluxo de água para irrigação, que era feita por meio de dois hidrômetros diferentes. “Com essa nova portaria, vamos possibilitar que produtores que estejam na clandestinidade venham oficializar a outorga”, avalia o secretário.

Santoro afirma que 5 mil produtores têm outorgas. “Precisamos ter o controle para distribuir a água de forma mais democrática. E como ter o controle? Medindo”, observa. “Também precisamos saber quanto efetivamente a pessoa tira de água e quanto o curso hídrico está sendo sacrificado. É uma forma de incentivarmos a pessoa a vir para o sistema oficial.”

Um estudo da Agência Nacional de Águas obtido pelo Estado revela que a crise hídrica no Sudeste tem provocado impacto nos sistemas de abastecimento de água de regiões populosas, como a bacia do Paraíba do Sul. “Naturalmente, essa bacia caracteriza-se por conflitos entre usuários de água, estando localizada entre os maiores polos industriais e populacionais do país”, diz o relatório.

O documento destaca que, em São Paulo, o Sistema Cantareira foi abalado pela crise hídrica ocorrida em 2014 e 2015. “Houve uma série de conflitos internos no Estado, envolvendo o abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), na bacia do Alto Tietê, e da Região Metropolitana de Campinas, na bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí”.

Os dados da DAEE reforçam o que sustenta o relatório. Do início de 2013 para o fim de 2015, ápice da crise, o número de infrações envolvendo disputa por água no Estado saltou de 260 para 1.874.

Declarados extintos, índios ofaiés estão vivos, mas longe do Rio Paraná

Os índios ofaiés-xavantes, antigos moradores das margens do Rio Paraná, região onde atualmente é Mato Grosso do Sul, vivem agora a 40 quilômetros das águas. O governo Fernando Henrique Cardoso retirou a aldeia de perto do curso, em 1997, para a construção da Usina Hidrelétrica Porto Primavera, atual Engenheiro Sérgio Motta. Mas o lago formado não atingiu o lugar onde ficavam suas malocas.

Em 1948, o antropólogo Darcy Ribeiro escreveu que eles estavam próximos da extinção. Darcy registrou que poucas famílias restavam da tribo, quase dizimada por conflitos por terra. “Os xavantes têm músicas bonitas. Sendo, porém, a língua ofaié gutural e áspera”, registrou. Dez anos mais tarde, antropólogas vinculadas ao Summer Of Institut Oklahoma, dos Estados Unidos, encontraram poucos nativos trabalhando em uma fazenda e descreveram a tribo como extinta.

Formada por 25 famílias, a atual aldeia ofaié fica no norte de Brasilândia, município de 12 mil habitantes, em Mato Grosso do Sul. O Estado chegou lá numa tarde de sábado de outubro. Depois de percorrer estradas de Minas Gerais e São Paulo e adentrar mais de 400 quilômetros por Mato Grosso do Sul, a equipe avistou uma região de descampados e pastagens, úmida e quente. Uma placa fincada na estrada estreita de terra informava que ali começava o território dos ofaiés.

Crianças acompanharam com atenção e desconfiança a chegada da reportagem à aldeia. Os homens disputavam um campeonato de bocha, um grupo de adolescentes escutava funk em volume alto e outros meninos e meninas jogavam futebol com uma bola de couro murcha.

O professor ofaié Silvano de Moraes, de 30 anos, coordenador de educação indígena, conta que a aldeia sempre considerou o Rio Paraná sua casa. “Eu nasci lá, num lugar abundante de água, que era o encontro de dois rios, o Verde e o Paraná. Tinha a relação das crianças com o rio e a dos grandes com a pesca. Aí jogaram a gente aqui, nesse cerrado, sem água.”

O nome ofaié-xavante significa savana na beira do rio. Atualmente, o único contato dos ofaiés mais jovens com o território antigo é uma visita anual promovida pela escola. “Se você joga uma criança dentro da água é igual a lançar um machado sem cabo. Cai e afunda, pois não sabe nadar”, afirma Silvano. A resistência para voltar para perto das águas continua. “Nós brigamos sem armas. Nossa arma hoje é o lápis e a caneta. Temos que estudar a Constituição de 1988.”

No fim de tarde, o índio Kamilo Martins, de 48 anos, voltou de bicicleta para a aldeia depois de um dia na roça. Logo atrás estava sua cachorra, a vira-lata Shakira. Ali o roçado de mandioca é coletivo. Não há perspectiva de aumentar a plantação em razão da dificuldade de irrigar. “Índio agora vive de água feita”, constata.

Os índios chamam de “água feita” aquela retirada de poço – a única que agora possuem. Para eles, essa água tem qualidade inferior à de rio, a que “Deus oferece por meio das chuvas”. Ao chegar à nova terra, um lugar seco, os índios só foram encontrar um rio a sete quilômetros de onde teriam que fazer suas casas. Numa luta que envolveu ações do Ministério Público Federal na Justiça Federal, os ofaiés conquistaram a terra por onde passava o Rio Sete. Mas a batalha demorou demais: duas décadas, o suficiente para que a mesma área fosse ocupada por plantios de eucaliptos, pastagens e canaviais. As bombas de irrigação sugaram o rio, que hoje está seco.

Desde 2018, a Hidrelétrica Sérgio Motta está sob controle da Companhia Energética de São Paulo (CESP). O Estado procurou a empresa para esclarecer as denúncias dos índios. A assessoria enviou uma nota. “A companhia informa que, neste período de mais de um ano de operações na região, nunca tomou conhecimento de questões ou recebeu demandas relacionadas a este assunto. Por esta razão, opta por não comentar o tema mencionado”. As lideranças ofaiés, no entanto, contestam.

Márcio Ofaié da Silva, 31 anos, foi destacado pela comunidade para fazer a vigilância do curso da água. Virou uma espécie de guardião. Casado e pai de três filhos, ele passou a infância na margem do Paraná. “Os mais velhos entristeceram quando perdemos o rio”, conta. “Na época, falaram que ia chegar a água da barragem. Aí chegou um caminhão jogando nossas tralhas em cima. Fomos para o meio da mata. Ficamos sem água.”

Agora, a aldeia pretende reflorestar as cabeceiras do Rio Sete, pois um ofaié só existe mesmo quando vive perto da água. “É para ver se o morto ressuscita”, diz o guardião.


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