29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Desmatamento ilegal em latifúndios avança sobre o Cerrado

Publicado em 13/02/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

De agosto de 2018 a julho de 2019, o desmatamento mapeado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) no Cerrado foi de 6,4 mil quilômetros quadrados, o equivalente a quatro vezes o território da cidade de São Paulo.

O Mato Grosso, unidade da federação que concentra a maior área do bioma e que é o maior produtor de soja do país, foi o terceiro estado que mais destruiu, sendo responsável por 14% de todo o desmatamento detectado, do qual 88% feito de forma ilegal e concentrado em latifúndios. Os números foram coletados pelo Instituto Centro de Vida (ICV).

Embora a área do Cerrado desmatada no Mato Grosso tenha se reduzido em 6% em relação ao período anterior, o ritmo da abertura de novas áreas no estado continua "alarmante" na avaliação do ICV.

Para o engenheiro florestal e coordenador de inteligência territorial do instituto, Vinicius Silgueiro, a queda não é significativa, até porque reflete em parte o fato de que mais da metade do Cerrado mato-grossense já foi destruído.

O geólogo, antropólogo e arqueólogo Altair Sales, um dos maiores especialistas em Cerrado do país e que pesquisa o bioma desde a década de 1970, ressalta que a queda "não é nada, porque a destruição do Cerrado no estado já chegou no seu limiar há mais de dez anos". O que ainda há "são pequenas manchas de vegetação ou de árvores isoladas que não representam comunidades vegetais".

Somando-se os dados de desmatamento do Cerrado e da Amazônia no estado, o total em 2019 foi de 2.560 quilômetros quadrados, aumento de 10% em relação a 2018, conforme números preliminares do ICV. "Esse cenário mantém o Mato Grosso distante de cumprir o compromisso internacional assumido durante a Conferência do Clima em Paris, em 2015", diz o relatório da ONG divulgado no início de fevereiro. Na ocasião, o governo estadual se comprometeu a diminuir o desmatamento nesse bioma e atingir 150 quilômetros quadrados ao ano até 2030.

O principal motivo do desmatamento alto, de acordo com o instituto, é o elevado grau de ilegalidade: no período apurado, 88% do desmatamento no Cerrado mato-grossense foi ilegal, uma queda em relação ao período anterior, de 95%, mas ainda um número alto. Em alguns municípios, 100% do desmatamento foi criminoso.

Segundo Silgueiro, chama atenção a crescente concentração do desmatamento ilegal em latifúndios, à medida que foi se reduzindo a fiscalização. Pouco mais de 60% do desmatamento no Cerrado foi em imóveis registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e, do desmatamento ilegal detectado nesses imóveis, 64% se concentrou em áreas maiores que 1.500 hectares, um aumento em relação ao período anterior, quando esse número era de 56%. Apenas 1% ocorreu em terras indígenas, e 1%, em áreas de conservação.

"É caro desmatar, precisa de maquinário, mão de obra; custa em torno de dois ou três mil reais por hectare, então isso está sendo feito por gente com poder, ao mesmo tempo em que há menor fiscalização e maior sensação de impunidade", diz o engenheiro florestal. Desde 2015 o número de autuações do Ibama vem caindo no estado, passando de mais de mil naquele ano para 411 em 2019.

Segundo a professora do departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) Mercedes Bustamante, que pesquisa o Cerrado desde 1993, a mudança de posicionamento governamental em relação ao meio ambiente também tem impacto no avanço do desmatamento. "O que já vimos no passado é que essas mudanças de discurso, mesmo que não estejam ligadas a uma mudança de legislação, já são suficientes para disparar processos no Brasil profundo. Aqui você encontra órgãos federais e estaduais menos estruturados, e o resultado é este."

Especulação e agronegócio impulsionam desmatamento

Pela lei, uma porção dos imóveis rurais pode ser desmatada, desde que tenha autorização. No bioma Amazônia, que também está presente em parte do Mato Grosso, apenas 20% de um imóvel rural pode ser desmatado, enquanto o restante deve permanecer como reserva legal. No Cerrado, a relação praticamente se inverte: 35% deve ser reserva legal. Mesmo assim, chama a atenção dos pesquisadores a permanência do alto índice de ilegalidade, apesar das ferramentas disponíveis hoje para monitorar e fiscalizar.

Na avaliação de Bustamante, o padrão de desmatamento ilegal está associado a obras de infraestrutura e ao agronegócio. "Quando você olha os municípios mais afetados, é onde há obras de infraestrutura, como abertura de estradas, para facilitar o escoamento de produção agrícola. Então, tem um braço de infraestrutura, associado à especulação, mas é uma especulação que também está ligada a condições mais favoráveis para a produção agrícola", explica.

Além de ser um estado com tradição de produção pecuária, o Mato Grosso é o maior produtor de soja do país, tendo respondido por 28% da última safra, conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

A Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema) disse, por meio de nota, que a valorização do dólar americano é um dos fatores que impulsionam o desmatamento, ao elevar os preços das commodities e pressionar as fronteiras agrícolas. A nota também cita "problemas sociais ligados à regularização ambiental dos assentamentos e especulações fundiárias". O levantamento do ICV mostra, contudo, que os assentamentos responderam por apenas 9% da área desmatada no último período.

Segundo a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), nos últimos três anos "todos os frigoríficos que operam no bioma amazônico e cerrado no Mato Grosso assinaram Termos de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público, comprometendo-se a não comprar gado de produtores que realizam desmatamento nestas áreas". A Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja) do Mato Grosso foi procurada, mas não retornou o contato.

O Ministério Público do Mato Grosso (MP-MT) realizou entre 2018 e 2019 a Operação Polygonum, que apurou crimes ambientais, muitos relacionados a fraudes no CAR, com o intuito de esconder áreas desmatadas ilegalmente, por exemplo. Ao todo, 69 infratores ambientais foram indiciados, incluindo funcionários da Secretaria de Meio Ambiente do estado.

A Sema informou que, em setembro de 2019, a pasta colocou em ação um "intenso monitoramento de todo território" estadual por meio da Plataforma de Monitoramento da Cobertura Vegetal. A meta é autuar remotamente 100% das ilegalidades.

Cerrado é vital para equilíbrio hidrográfico

Apelidado "caixa d'água" do Brasil, o Cerrado é considerado fundamental para o equilíbrio hídrico de todo o continente sul-americano, já que a maioria das bacias hidrográficas da América do Sul nasce e tem seus principais alimentadores na região.

Segundo o geólogo Sales, com o desmatamento, a água da chuva não se infiltra mais no solo como antes, o que provoca a diminuição drástica dos lençóis subterrâneos, por sua vez causando a diminuição da vazão dos rios e fazendo com que eles desapareçam aos poucos.

"A cada ano que passa, a gente constata pelo menos o desaparecimento de dez pequenos rios na região", diz o professor. Ele ressalta que os pequenos vestígios de Cerrado intacto que ainda existem no país estão sendo preservados em algumas áreas indígenas, mas mesmo estas estão sob ameaça.

A professora da UnB Bustamante ainda lista a mudança local do clima, já que há redução do retorno de água para a atmosfera, erosão da biodiversidade e mais emissões de carbono, combinando efeitos locais e globais.

Segundo Sales, pecuária e monoculturas como a da soja são atividades incompatíveis com a sobrevivência do Cerrado. "Anteriormente, quando o Cerrado ainda estava preservado, isso [cultivar soja e pastagens] seria perfeitamente possível com um planejamento adequado de ocupação do espaço", afirma.

Para a preservação do que restou do bioma, a estratégia mais aceita é fortalecer e ampliar áreas de conservação e terras indígenas. "Foi uma estratégia que funcionou muito bem para a Amazônia, mas no Cerrado é um pouco mais complicado porque lá a área é majoritariamente privada. Então, parte da solução do problema passa também pelo setor privado", afirma Bustamante.

Além disso, seria preciso haver fortalecimento da fiscalização, fazer valer a lei ambiental e eventualmente fazer o manejo das áreas já desmatadas e usadas para o agronegócio para melhor aproveitamento e elevação da produtividade.

As 26 principais violações ao meio ambiente feitas por Jair Bolsonaro

Após décadas de evolução e consolidação, o curto período do governo Bolsonaro já se confirmou como o de maior desconstrução da política de proteção ambiental brasileira. Afora os discursos incentivadores para exploração das áreas ambientalmente protegidas do país, que amplia a permissividade aos infratores, o governo atua firmemente para afrouxar leis e sucatear órgãos de preservação ambiental.

Torna-se então relevante registrar as principais violações ao meio ambiente deste período, na expectativa de combatê-las, mitigá-las e, num futuro próximo, reverter as que ainda forem possíveis. Muitos são os exemplos deste desmonte, como:

1- a desestruturação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), com perdas de autonomia de técnicos e de segurança em campo a fiscais ambientais;

2- a transferência do Serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura;

3- a flexibilização e redução das multas por crimes ambientais, e institucionalização desta prática por meio do projeto de criação do “Núcleo de conciliação”, que poderá mudar o valor ou até mesmo anular multas por crimes ambientais;

4- a contestação dos dados oficiais de desmatamento do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), criado pelo governo Lula em 2004 e que possibilita o ágil diagnóstico de áreas desmatadas. Além da demissão do diretor do Instituto ao ser confrontado tecnicamente;

5- a interrupção do bilionário Fundo Amazônia, que financiava mais de uma centena de projetos de proteção da Amazônia e seus povos e que teve os recursos suspensos pelas fontes doadoras (Noruega e Alemanha) devido ao aumento do desmatamento e à extinção de Conselhos que faziam a gestão dos recursos;

6- a proposta de revisão das Unidades de Conservação do país, que poderão ter os seus traçados revistos ou até serem extintas;

7- a recriminação de fiscais ambientais que, amparados legalmente, destruíram equipamentos apreendidos usados por madeireiros e garimpeiros criminosos;

8- a proposta de regularização fundiária via autodeclaração, que permitiria a grileiros a legalização de terras apropriadas ilegalmente;

9- as propostas para redução de terras indígenas e áreas remanescentes de quilombos;

10- o aumento da violência no campo e aos indígenas;

11- a visão governamental de que o indígena deve viver da mesma forma que a população não indígena urbana;

12- a liberação excessiva de agrotóxicos, alguns inclusive proibidos em outros lugares do mundo;

13- a revisão de tributos ambientais aplicados a empresas que causam alto e negativo impacto ambiental;

14- a própria escolha de um ministro do Meio Ambiente que, além de já ter sido condenado por crime ambiental, não considera para sua prática de trabalho a temática do aquecimento global, e que defende os interesses do agronegócio em detrimento dos ambientais;

15- O exemplo de impunidade ao exonerar o servidor que multou o atual presidente por pesca ilegal em 2012;

16- a revisão da lista de espécies aquáticas ameaçadas após um pedido do Ministério da Agricultura

17– a autorização, por parte do presidente do Ibama, do leilão de sete blocos de petróleo localizados em regiões de alta sensibilidade ambiental, como no Arquipélago de Abrolhos, ignorando os relatórios técnicos da própria equipe do Instituto;

18– o possível desalojamento de centenas de famílias quilombolas e de descendentes dos índios Tapuias que já residem há séculos na região do entorno do Centro de Lançamento de Alcântara (MA), devido à expansão e concessão do mesmo aos EUA;

19– a revogação do decreto que proibia o avanço das plantações de cana-de-açúcar sobre os biomas pantaneiro e amazônico;

20– o posicionamento contrário ao Acordo de Paris;

21– a fragilização da reforma agrária e da agricultura familiar;

22– a decisão sobre a privatização da Eletrobras, que acarretará na entrega do controle da energia elétrica do país para empresas estrangeiras, afetando a soberania nacional. Sem considerar que a empresa tanto já passou por um processo de enxugamento de pessoal, como também vem apresentando lucros bilionários desde 2018;

23– a modificação da futura lei de licenciamento ambiental, tornando-a uma exceção ao invés de regra;

24– a privatização do setor de saneamento, algo que já apresentou resultados negativos onde foi implantado, e indo de encontro ao atual movimento de grandes cidades mundiais, que estão reestatizando o setor;

25– a nomeação de um religioso evangelizador para coordenar as ações referentes aos indígenas isolados, sendo que a igreja do mesmo já recebeu acusações de exploração laboral e sexual de indígenas;

26– a regulamentação da exploração de minerais, recursos hídricos para construção de hidrelétricas, e de petróleo e gás em Terras Indígenas.

Não por acaso, este curto período da atual gestão federal também tem sido marcado por grandes tragédias ecológicas causadas por crimes ambientais, como o rompimento da barragem de Brumadinho, o crescimento recorde do desmatamento na Amazônia, o derramamento de óleo na costa litorânea brasileira e os incêndios recordes no Pantanal. As catástrofes ambientais naturalmente não são exclusividades brasileiras. O país, no entanto, chama atenção pela ineficiência ao combatê-las.

Em suma, em termos ambientais, o governo Bolsonaro está sendo caracterizado pelo desmonte da política ambiental, que opera por meio de diversos fatores, como o avanço maciço do desmatamento nos biomas brasileiros, a permissividade com a exploração ilegal dos recursos naturais do país, a extinção e modificação de leis, a precarização dos procedimentos e das infraestruturas técnica e de recursos humanos do órgãos de proteção ambiental e a ineficiência e desinteresse na mitigação das tragédias e de crimes ambientais até então ocorridos.

Estes fatos vieram acompanhados por conflitos sociais pelo uso da terra e resultou no aumento da violência no campo e na mata. Para além do aspecto humano, as consequências desta ‘nova política’ vem potencializando e causando boicotes comerciais de países importadores de produtos brasileiros e colocando em risco negociações relevantes para a economia do País.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *