20/04/2024 - Edição 540

Especial

A deterioração da democracia no Brasil

Publicado em 10/02/2020 12:00 -

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A chegada ao poder no Brasil de Jair Bolsonaro — o primeiro presidente ultradireitista desde o retorno à democracia em 1985 — veio acompanhada de grandes temores por parte de seus adversários e das minorias. O primeiro ano de mandato incluiu confrontos com outros poderes do Estado, ataques à imprensa, à ciência, à história… decisões controvertidas e infinitas polêmicas. O militar reformado, que mantém vivo o discurso de nós contra eles da campanha e é abertamente hostil à esquerda, testou as instituições do Brasil.

O apoio à democracia caiu sete pontos, a 62% desde sua posse, os indiferentes ao formato de Governo aumentam enquanto se mantém em 12% a porcentagem dos que acreditam que em certas circunstâncias a ditadura é melhor, de acordo com a pesquisa do Datafolha divulgada no início do ano.

O Congresso, no qual não tem maioria, deteve suas iniciativas legislativas mais radicais como eximir policiais e militares de responsabilidade em tiroteios com bandidos e purgar os livros escolares de esquerdismo. O Supremo também foi uma barreira. Mas em áreas como a política cultural, destruiu tudo aquilo que não bate com sua visão. Os editoriais contra seus instintos autoritários são frequentes.

A ONU ligou os alarmes já em setembro do ano passado, através de sua alta comissária para os Direitos Humanos, a ex-presidenta Michele Bachelet, que após criticar o aumento de mortos por disparos policiais afirmou: “Nos últimos meses observamos uma redução do espaço cívico e democrático, caracterizado por ataques contra os defensores dos direitos humanos e restrições impostas ao trabalho da sociedade civil”. Bolsonaro respondeu cruelmente ao ofender a memória do pai da chilena, um militar assassinado pela ditadura a quem acusou de comunista.

O último relatório anual sobre a qualidade da democracia no mundo do V-dem, um instituto da Universidade de Gotemburgo, coloca o Brasil no top 30% dos mais democráticos, mas alerta sobre sua guinada à autocracia (e a dos EUA, entre outros). O balanço de 2018, antes de Bolsonaro, já apontava uma deterioração desde os anos conturbados do impeachment de Dilma Rousseff.

Ainda que o relatório sobre 2019 só fique pronto em alguns meses, o diretor do V-dem, o professor Staffan I. Lindberg, alerta que, baseado em suas observações, o Brasil vive “uma guinada à autocracia das mais rápidas e intensas do mundo nos últimos anos”.

O que mais preocupa esses acadêmicos, diz por telefone da Suécia, são os esforços do presidente e seu Governo para calar os críticos, sejam adversários políticos, juízes que investigam a corrupção, jornalistas, acadêmicos e membros da sociedade civil. “Foi o que fez (Recep Tayyip) Erdogan quando levou a Turquia da democracia à ditadura, o que faz (Viktor) Orban na Hungria, que está prestes a deixar de ser uma democracia, e exatamente o que (Narendra) Modi faz na Índia”, alerta Lindberg.

Os exemplos são inúmeros. Bolsonaro destituiu o diretor do órgão que realiza a medição oficial do desmatamento na Amazônia, pediu um boicote ao jornal Folha de S.Paulo e às empresas anunciantes, sugeriu que o jornalista norte-americano Glenn Greenwald possa ser preso no Brasil por revelações jornalísticas, em um discurso no Chile elogiou Pinochet e no Paraguai, Stroessner. A lista continua e é longa.

O diretor do V-dem afirma que “Bolsonaro é o presidente com menos restrições (das instituições democráticas) desde o final do regime militar” porque quando assumiu a Presidência as instituições — do Congresso à Promotoria Geral da União — já sofriam um enfraquecimento. De fato, desde 2017 o instituto de análise não considera o Brasil uma democracia liberal, e sim uma democracia eleitoral.

A visão da advogada constitucionalista Vera Chemim é menos sombria. Afirma que o presidente “não significa uma ameaça real à democracia ainda que continue atirando no próprio pé” com polêmicas desnecessárias que podem se tornar contraproducentes para seus interesses porque reforçam a esquerda e ofuscam a ação de seu Governo.

Chemim afirma que “o Estado de direito democrático é suficientemente sólido e relativamente maduro para sobreviver a qualquer tentativa de intervenção político-ideológica que possa desconstruir o regime democrático conquistado a duras penas em 1985” e consagrado na Constituição. Diz que o presidente “não afetou as instituições democráticas ainda que tenha de fato agitado a conjuntura política e jurídica quando se expressa e age de maneira impulsiva e explosiva, alimentando ainda mais a profunda polarização ideológica entre as supostas direita e esquerda”.

Bolsonaro faz referências constantes à necessidade de governar para a maioria e eliminar até o último vestígio de seus antecessores esquerdistas, como frisou dias atrás ao mencionar os livros de texto. Abordou o assunto sem ser perguntado por nenhum dos jornalistas que o esperavam diante de sua residência em Brasília, seu local favorito para se comunicar com a imprensa. “A partir de 2021, todos os livros serão nossos, feitos por nós. Os pais irão adorar. Terão a bandeira na capa. Terão o hino. Hoje, como regra, os livros são um monte de coisas escritas, é preciso suavizar (…) Não pode ser como esse lixo que hoje é a regra”.

O especialista sueco alerta sobre dois assuntos: uma vez calados os críticos e a imprensa, os Governos têm o domínio absoluto da informação. E “não são necessárias mudanças legais para que um país se transforme em uma autocracia eleitoral. Veja a Bielorrússia”.

Brasil vive crise democrática, aponta estudo

A satisfação com a democracia atingiu seu patamar mais baixo das últimas décadas no mundo, afirma um relatório publicado no último dia 29 pela Universidade de Cambridge, que analisou dados disponíveis desde 1995.

Na média mundial, o número de pessoas insatisfeitas com o sistema democrático em seus países é recorde e chegou a 57,5%, ficando 9,7 pontos percentuais acima de 1995.

A tendência negativa é especialmente forte desde 2005, ano que marca o "início de uma recessão democrática global", segundo os pesquisadores. Naquele ano, apenas 38,7% dos cidadãos estavam insatisfeitos.

Entre os motivos listados para a atual situação estão eventos políticos e sociais como a crise financeira de 2008, a subsequente crise do euro de 2009 e a crise dos refugiados na Europa, em 2015. A insatisfação com a democracia subiu 6,5 pontos percentuais após o colapso do banco Lehman Brothers, em outubro de 2008, afirma o relatório.

No Brasil, a insatisfação pública com a democracia alcançou níveis recordes em meio à série de escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato, afirma o relatório. Menos de 20% dos brasileiros estão satisfeitos com o sistema democrático, aponta.

"Uma breve exceção ocorreu durante a primeira década do século 21, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2010", observa o relatório. "Colhendo os frutos de um boom global de commodities, o governo Lula investiu em programas para reduzir a pobreza amplamente disseminada e reduzir a desigualdade."

"Em retrospecto, porém, esse foi apenas um hiato entre dois períodos de instabilidade – um marcado pelos efeitos da crise dos mercados emergentes do final dos 1990, e outro que começou com a Lava Jato […] Ao que parece, o futuro foi mais uma vez adiado para o Brasil."

O relatório separa os países analisados em quatro grupos: satisfação com a democracia, casos de preocupação, mal-estar e crise. O Brasil está no quarto, ao lado de Venezuela, México, Ucrânia, Colômbia, Peru e Moldávia, onde há democracias que enfrentam uma "real 'crise' de legitimidade" e três quartos dos cidadãos ou mais declaram insatisfação com o sistema democrático.

Os únicos países onde as pessoas estão satisfeitas com a democracia são Suíça, Dinamarca, Luxemburgo, Noruega, Irlanda, Holanda e Áustria.

A maioria dos países está nas duas categorias intermediárias. A Alemanha está entre os casos de preocupação. Reino Unido, Estados Unidos, Espanha, Itália e França estão abaixo, na categoria "mal-estar".

O relatório também observa que a perda de confiança na democracia pode ter consequências futuras. "Muitos dos países que, nos anos 1990, tinham os menores níveis de confiança na democracia – como Rússia, Venezuela e Belarus – são exatamente aqueles que experimentaram uma erosão democrática na década seguinte, geralmente com a eleição de homens-fortes que, uma vez no cargo, começaram a minar direitos civis e liberdades."

A Cara da Democracia

O número de brasileiros que preferem a democracia em relação a qualquer outra forma de governo cresceu entre 2018 e 2019 — de 56,2% para 64,8%. No mesmo período, caiu pela metade o número de brasileiros que acreditam que, em algumas circunstâncias, uma ditadura pode ser preferível — de 21,1% para 11,2%. É o que mostra a pesquisa “A Cara da Democracia”, realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, que reúne pesquisadores sociais do Brasil, Argentina e Portugal.

Apesar das melhorias observadas, os pesquisadores alertam que a comparação parte de um momento em que o apoio dos brasileiros à regimes democráticos estava particularmente baixo. “Houve uma queda grande no apoio a democracia no Brasil entre 2014 e 2018 devido à crise econômica, escândalos de corrupção e fragilização das instituições de combate à esta. O ponto mais baixo desse apoio, no Brasil, foi em 2018. Não por acaso o Bolsonaro foi eleito presidente naquele momento, com todas as críticas à democracia que ele tinha e, ao que parece, continua tendo”, explica o coordenador da pesquisa e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Leonardo Avritzer. “Então, o que temos é uma melhora a partir de um patamar muito ruim”, diz.

Entre 2018 e 2019, cresceu o repúdio dos brasileiros a qualquer justificativa para um golpe militar. No último ano, mais de 70% dos brasileiros ouvidos não acreditavam que protestos sociais, desemprego ou crise econômica sejam razão para tomada de poder através de um golpe do tipo. Mais de 55% também não acreditavam que corrupção, crime ou instabilidade política justificariam o ato.

A pesquisa mostra também um desgaste dos demais Poderes diante da opinião pública. Metade dos brasileiros ouvidos pela pesquisa não confia no Congresso, embora esse número tenha caído de 56,3% para 50,2% entre os dois anos. Em 2018, um em cada dez brasileiros acreditava ser justificável que o chefe do Executivo feche o Congresso diante de dificuldades. Em 2019, dois em cada dez ouvidos defendiam o mesmo.

Apesar do aumento, sete em cada dez (71,4%) não acreditam que, quando o país está enfrentando dificuldades, é justificável que o Presidente de República feche o Legislativo.

O Judiciário também enfrenta uma crise de confiabilidade: apenas 8,3% dos entrevistados afirmaram confiar muito na instituição em 2019. Eram 12,9% em 2018. Não confiam no Judiciário 38,2% dos brasileiros – em 2018, eram 33,9%.

Em 2019, quando perguntados se o judiciário brasileiro tomas suas decisões sem ser influenciado por políticos, empresários ou outros interesses, 61% dos brasileiros responderam que não. Apenas 26% acreditam que o poder judiciário tome decisões de maneira isenta.

Os números refletem a fragilidade da democracia brasileira e de suas principais instituições, segundo Avritzer.

“Para uma democracia ser forte, tem que existir confiança nas instituições democráticas. Mas para ter confiança é preciso que elas se abram nessa direção. A disputa sobre o pacote da lei de abuso de autoridade entre os ministros Fux e Toffoli, por exemplo, é o tipo de conflito que ajuda na lesão das convicções democráticas dos cidadãos. O brasileiro precisa confiar nas instituições, mas elas tem comportamentos que geram a erosão dessa própria confiança”, afirma. 

A desconfiança também é estendida a partidos políticos, mas diminuiu – de 76,9% que em 2019 afirmaram “não confiar” nestes, para 71,3% em 2019. Caíram também o número de brasileiros que confiam muito nas Igrejas (de 35,2% para 32%) e nas Forças Armadas (de 33,9% para 29,1%).

Democracia não está garantida

A sociedade percebe as transformações na democracia? Como garantir uma participação mais ativa nessas mudanças? Nos últimos anos, o canal UM BRASIL, uma realização da FecomercioSP, reuniu personalidades acadêmicas, da política e do mercado para avaliar os rumos da democracia e como é possível aperfeiçoá-la para que acompanhe as demandas do nosso tempo, englobando o combate à corrupção e os desafios de atrair as pessoas mais bem preparadas para funções estratégicas em cargos públicos.

Para alguns especialistas entrevistados no canal, a forma como esse tema tem sido conduzido ao longo dos anos no Brasil e no mundo está comprometendo avanços essenciais para as nações e impactando a percepção das populações sobre a sua capacidade de interferir significativamente nessa agenda. “Houve uma erosão no apoio incondicional à democracia. Isso é um alerta de que não devemos tomar a democracia por garantia”, afirma Larry Diamond, sociólogo político e professor da Universidade Stanford.

Para a diretora-executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), Mônica Sodré, o aperfeiçoamento da democracia no Brasil deve percorrer questões como o acesso a serviços básicos ainda não universalizados. “É muito difícil termos uma democracia plena quando parte do País está no século 19. Atualmente, 46% das pessoas no Brasil não têm acesso a saneamento básico”, explica.

Já o CEO do grupo Votorantim, João Miranda, coloca no centro do debate a participação das empresas nesse processo permanente de discussão sobre qual o papel dos agentes nos avanços democráticos. “Se você não consegue criar oportunidades e levar o bem-estar para todos, então qual é o papel da política dentro da democracia, qual é o papel de uma empresa cidadã?”, questiona.

Militares por todos os lados

A coisa começou sorrateira. Em Brasília, eles passaram a ser vistos em todos os ministérios logo após a posse de Bolsonaro. Mas agora, depois de um ano, também podem ser encontrados fora da capital, em companhias estatais, órgãos de supervisão, em empresas mistas – onde quer que o Estado possua participação ou tenha alguma influência. São militares de alta patente colocados em posições-chave do aparato estatal pelo capitão da reserva Bolsonaro.

Trata-se geralmente de homens em idade de se aposentar, em boa forma, que, com o cabelo cortado rente, parecem clones. São educados, discretos e muitas vezes taciturnos. Na maioria das vezes, leem seus discursos breves diretamente do papel, ou soa como se estivessem. Eles são citados com sua patente militar: "Então, como o general acabou de dizer…"

Consta que o governo Bolsonaro destacou 2.500 militares de alto escalão, a maioria da reserva, mas também alguns da ativa. Facilitou-se a entrada deles na política. Eles recebem um adicional de 30% sobre seus soldos ou pensões. A rigor, isso deveria ser desnecessário. Assim como as autoridades judiciais, os militares de alta patente estão entre os funcionários públicos altamente privilegiados que continuam a receber vencimentos obscenamente altos mesmo após a aposentadoria.

Mas provavelmente muitos militares não teriam mudado para cargos civis sem incentivos financeiros. Porque o presidente – que no final de sua breve carreira militar por pouco escapou de ser exonerado do Exército com desonra – trata seus antigos superiores como se fossem moleques de escola. Quem faz qualquer crítica discreta é substituído. Bolsonaro quer receptores e executores de ordens totalmente submissos.

Além disso, ele não tem um partido a que possa recorrer para o preenchimento de cargos. Tampouco dispõe de redes de especialistas em administração pública. Essa deficiência se torna agora perceptível: a maioria dos "especialistas" que Bolsonaro trouxe à parte das Forças Armadas provou-se um fiasco nos cargos: isso se aplica particularmente às pastas de Meio Ambiente, Educação e Família.

Até agora, os oficiais uniformizados não se envolveram em grandes escândalos. Alguns dos militares de alta patente são especialistas com formação em suas áreas, como minas e energia ou infraestrutura.

No entanto, sob o capitão da reserva Bolsonaro, o governo tem que desembolsar cada vez mais: 26% de todos os pagamentos de salários e pensões estatais cabem aos militares. Eles não foram apenas basicamente poupados na reforma da Previdência, em comparação com a maioria dos brasileiros, mas também receberam ajustes salariais, o que praticamente neutralizou a economia da "reforma". Os escalões mais altos dos militares são agora tão privilegiados quanto os funcionários do Judiciário.

Além disso, pouco antes da virada do ano, o governo abriu novamente as porteiras para os militares – um governo em que tudo que encontrasse comprador particular deveria ser privatizado: quase um terço de todos os investimentos governamentais em 2019 foi para os fardados.

A maior parte foi destinada à Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), sob o comando da Marinha. Porém a Infraero e a Telebras também receberam dotações generosas de fundos públicos; ambas são há muito tempo empresas estatais supérfluas, que servem principalmente como cabide de empregos com a finalidade de garantir cargos para apadrinhados políticos.

A crescente militarização do Estado brasileiro é economicamente arriscada: pois a longa lista de medidas econômicas erradas sob a ditadura mostra que as decisões de investimento das Forças Armadas seguem a lógica e o interesse próprios – mas saem caras demais para a economia nacional e a sociedade como um todo.

Nunca desde os tempos da ditadura militar existiu no governo brasileiro uma presença tão maciça das forças do Exército ocupando os cargos de importância como no atual do capitão Jair Bolsonaro. Pela primeira vez na democracia, temos um militar nos três primeiros postos do Governo: o presidente, o vice-presidente e o ministro da Casa Civil, o recém nomeado general Walter Souza Braga Netto, que atuou como interventor federal no Rio de Janeiro e que agora assume no lugar de Onyx Lorenzoni. O cargo de chefe da Casa Civil é considerando como uma espécie primeiro-ministro.

Há quem veja nisso uma trincheira contra os perigos que espreitam a democracia e os que veem como presságio de uma nova ditadura. Os mais otimistas alegam que hoje as forças armadas brasileiras são de uma nova geração formada nos valores democráticos e na modernidade, vacinadas contra as tentações autoritárias e baluarte da democracia. Isso se deve ao apreço atual da sociedade pelos militares, uma das instituições, ao lado da Igreja, mais bem avaliadas nas pesquisas nacionais pela grande maioria dos brasileiros de todas as classes sociais.

E os pessimistas? Eles preferem ver nessa maciça presença dos militares no Executivo e na Administração pública um perigo real à volta do autoritarismo e até uma aprendizagem para que o presidente Bolsonaro prepare um golpe contra a democracia, dominando o Congresso para governar com a força das armas.

São os que viram com ironia e sarcasmo que até o ministro da Casa Civil seja um general do Exército. Sem dúvida a aposta de Bolsonaro de militarizar o Governo é arriscada e preocupa as forças democráticas como preocuparia um governo de religiosos e teocrático como nos países islâmicos.

Para entender melhor quem tem razão entre otimistas e pessimistas seria preciso ter uma visão mais clara dos bastidores em que o Governo se moveu até agora na defesa dos valores democráticos e das nostalgias autoritárias. Se os militares presentes no Governo estão sendo uma barreira aos desejos ditatoriais do Presidente ou um incentivo a eles. Hoje o Governo, após as mudanças e as novas nomeações de militares, é mais autoritário ou mais democrático do que antes?

É importante saber o que aconteceria hoje caso se repetissem, como no Chile e na França, manifestações maciças e violentas na rua contra o Governo. Se Bolsonaro decidisse apostar pela repressão e o corte de liberdades, seria apoiado pelos militares presentes no Governo ou impediriam suas tentações?

São perguntas graves e urgentes para saber se a democracia e suas conquistas libertárias desde os tempos da ditadura se consolidaram com essa forte presença dos militares no Governo ou se na verdade isso pode significar um incentivo à volta dos tempos sombrios das ditaduras e governos autoritários do passado.

Que a índole e a história pessoal do presidente Bolsonaro, desde seu começo no Exército sempre foram turbulentas e autoritárias e mais tarde no longo período como deputado federal, foram de nostalgia da ditadura e da tortura e inimigo dos direitos humanos, já é biografia. As perguntas que se impõem é se o fato dos militares aceitarem participar do Governo tão marcadamente está significando uma forma de se constituir um freio e vigilância das tentações autoritárias do Presidente, ou em uma maneira do Exército de querer entrar no Governo da nação pela porta democrática.

O fato de que na atual dinâmica do Governo, tenham sido até agora os seguidores mais acérrimos do filósofo e guru ultradireitista, Olavo de Carvalho, os maiores detratores e inimigos dos militares no Governo, pode significar que eles são vistos como muito progressistas pelos radicais do Governo, ao ponto de empurrar o presidente Bolsonaro a mudar vários generais do Governo. Já não é um segredo que os filhos ativos do Presidente revelaram uma índole autoritária que por vezes surpreendeu até seu pai que precisou alertá-los a ser mais moderados em suas ânsias iconoclastas.

O Brasil, o quinto maior país do mundo, o gigante e coração econômico do continente vive com o Governo Bolsonaro um de seus momentos mais delicados de sua democracia que pode depender, curioso paradoxo, dos militares que até hoje demonstraram seu respeito pelos governos democráticos e nunca deram sinais de rebelião nem mesmo com os governos de esquerda de Lula e Dilma. Sequer quando o Ministério do Exército passou às mãos de um civil nos governos de FHC.

Uma democracia consolidada no Brasil, sem o barulho de sabres, seria o melhor presente que o país pode dar aos outros países irmãos da América Latina que hoje se veem tentados a colocar a democracia em crise para dar passagem às velhas saudades de tempos que todos queremos esquecer.

Artistas e intelectuais denunciam “ascensão do autoritarismo” no Brasil

Em um artigo publicado no último dia 7 no jornal britânico “The Guardian”, artistas e intelectuais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Sebastião Salgado, Paulo Coelho, Conceição Evaristo e Milton Hatoum afirmaram que democracia e a liberdade de expressão estão ameaçadas sob o governo Jair Bolsonaro e pediram apoio da comunidade internacional para barrar a “ascensão do autoritarismo” no país.

No artigo, os signatários afirmam que desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, em janeiro de 2019, o Brasil está sob ataque e o governo “minou sistematicamente as instituições culturais, científicas e educacionais do país, assim como a imprensa”.

“O regime de direita do Brasil quer censurar livros didáticos, espionar professores e reprimir grupos minoritários e LGBTQ +”, escrevem.

O grupo pede ajuda para “condenar as tentativas do governo Bolsonaro de pressionar politicamente as organizações artísticas e culturais”. Solicitam também à comunidade internacional que pressione o Brasil a “respeitar plenamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos” e, assim, “respeitar a liberdade de expressão, pensamento e religião”.

O texto enumera problemas da gestão Bolsonaro, como o afastamento de Ricardo Galvão da direção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) após a divulgação de dados de satélite sobre o desmatamento na Amazônia, e a demissão do diretor de marketing do Banco do Brasil por criar uma campanha publicitária promovendo a diversidade e a inclusão, que foi censurada pelo governo.

“O governo Bolsonaro deixou claro que não tolerará desvios de sua política e visão de mundo ultraconservadoras”. Os signatários registram que Bolsonaro é hostil à imprensa e citam a denúncia do Ministério Público contra Glenn Greenwald, fundador do site The Intercept, apesar de o jornalista não ter sido investigado nem indiciado.

“Esse não é um caso isolado. Oficiais do governo em todo o país, dos tribunais regionais à polícia militar, decidiram defender ideologicamente Bolsonaro e reduzir a liberdade de expressão”, afirmam no artigo.

Eles ainda dizem que o governo Bolsonaro não tem um plano de desenvolvimento para o país e está envolvido em uma guerra cultural.

“Tememos que esses ataques às instituições democráticas possam se tornar irreversíveis em breve. Com base nos princípios conservadores mais extremos e restritos, o projeto de Bolsonaro é alterar o conteúdo de livros escolares e filmes brasileiros, restringir o acesso a financiamento para bolsas de estudos e pesquisas e intimidar intelectuais, jornalistas e cientistas.”

Leia AQUI o conteúdo da carta traduzido para o português.

Não é normal que as instituições sejam testadas todos os dias

Para Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra), não há exagero em dizer que a democracia está sob risco no Brasil. Ele questionou, em recente artigo no jornal Folha de SP, a ideia contrária, defendida em outros dois artigos: “Apesar dos alarmistas, um país normal”, de Fernando Schüler, e “Ih…A democracia brasileira não ruiu”, de Carlos Pereira.

O artigo de Pereira se baseia em um estudo do cientista político Kurt Weyland que concluiu que populistas só ameaçam a democracia quando as instituições são fracas e quando seus governos transcorrem na recuperação de uma crise econômica aguda. O artigo de Weyland é muito interessante, mas tem problemas. Em um dado momento, argumenta que Collor não conseguiu consolidar-se como populista porque não resolveu a crise econômica da hiperinflação (correto) e porque o Brasil tinha um histórico de 20 anos em que todos os presidentes terminaram seus mandatos, o que é errado.

Para Barros, não se pode usar estabilidade da ditadura como índice de robustez da nova institucionalidade democrática. “E Weyland não fez uma análise estatística, mas de uma comparação usando o método booleano de Charles Ragin. Não desqualifico o método, que é uma tentativa de lidar com amostras pequenas, mas sugiro cautela em citar as conclusões obtidas dessa maneira como ‘demonstrações’. Nem análises estatísticas são isso”, diz.

Mas mesmo se aceitarmos as conclusões de Weyland, a aplicação ao caso brasileiro exige cuidado. O argumento do autor é sobre os Estados Unidos, em que Trump, de fato, herdou de Obama uma economia muito boa, e as instituições são notoriamente fortes.

Barros elabora:

Aqui Bolsonaro pegou a economia ainda fraca, e é difícil que não colha dividendos de popularidade se houver uma recuperação. Isso é verdade mesmo se, como argumenta Pereira, a responsabilidade pela melhora for de Temer (permaneço agnóstico).

Quanto às instituições, concordo com o excelente artigo do cientista político Cláudio Gonçalves Couto (“As instituições estão funcionando?”), publicado no Valor Econômico da última quinta-feira. Sim, diz Couto, as instituições estão rechaçando o autoritarismo bolsonarista, mas não é normal que elas sejam testadas todo dia. E cada teste as desgasta.

Por sua vez, Fernando Schüler argumenta que o Brasil atual comporta-se como um país “normal”. Schüler cita em sua defesa o artigo de Pereira e argumenta que os estudos sobre a crise da democracia têm viés partidário, refletindo a insatisfação de seus autores quando seus candidatos perdem (por exemplo, para Trump).

Não teria impacto sobre a hipótese se fosse verdade, mas, de qualquer forma, não é. A primeira formulação clara da tese da “recessão democrática” foi escrita por Larry Diamond e publicada no Journal of Democracy em janeiro de 2015, bem antes da vitória de Trump. Tratava sobretudo de retrocessos democráticos em países pobres. Não tenho informação de que Diamond tivesse um candidato favorito, digamos, na eleição fraudada no Burundi em 2010.

Finalmente, chamo atenção para um fato: nem Pereira nem Schüler apresentam qualquer evidência contrária a uma outra tese, a de que Jair Bolsonaro está tentando desmontar a democracia brasileira. Se não fosse pelo interesse nas reformas de Guedes, todo o establishment já o teria reconhecido.

Democracia resiste a Bolsonaro?

Quando a vitória de Bolsonaro à presidência da República despontava no horizonte, em outubro de 2018, durante uma campanha em que ele não teve pudores de atacar direitos fundamentais, 31% da população dizia haver muita chance de ocorrer uma nova ditadura, segundo o Datafolha. O número contrastava com os 15%, de fevereiro de 2014.

O seu primeiro ano de governo tentou, das formas mais criativas e sem nenhuma cerimônia, retroceder em garantias a proteções sociais. Em alguns casos, foi bem sucedido, principalmente naqueles que dependiam diretamente da ação ou inação do Poder Executivo. Por exemplo, com o desmonte das estruturas de fiscalização, monitoramento e controle, o aumento na devastação ambiental já foi sentido internacionalmente. Enquanto isso, a liberação desenfreada de agrotóxicos será sentida no corpo desta e das futuras gerações.

O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal funcionaram, de acordo com seus interesses, como freios e contrapesos a propostas bizarras do governo. Como no bloqueio aos decretos que garantiriam um libera-geral para armas e munições, no projeto de lei que transformava rodovias em campos de batalha e na tentativa de implementar o "cada um por si e Deus por todos" da capitalização na Reforma da Previdência.

Enquanto isso, o discurso de apoio à letalidade e à impunidade empoderou a banda podre de policiais e militares, que se sentiu mais livre para atirar primeiro e checar depois. Da mesma forma, encheu de coragem grileiros, madeireiros, garimpeiros e latifundiários que operam fora da lei a passar por cima de qualquer um no caminho do "progresso".

Coquetéis-molotov foram atirados. Jornalistas, artistas e intelectuais, atacados. Mas isso nem se compara ao que aconteceu com camponeses e populações tradicionais, como, por exemplo, os Guajajara, assassinados em série. Ou com a população negra periférica – que se tornou carne ainda mais barata no mercado – a exemplo das execuções absurdas do músico Evaldo dos Santos e do catador de recicláveis Luciano Macedo, em Guadalupe, e da estudante Ágatha Félix, no Complexo do Alemão, todos no Rio de Janeiro.

O grosso da população incendiada no período eleitoral voltou ao "normal" após a apuração dos votos da mesma forma que houve uma descompressão após o impeachment. A percepção de que as instituições e a sociedade não seriam suficientemente fortes para impedir uma ditadura foi se desfazendo ao longo do ano. No primeiro diz do ano, o Datafolha apontava que havia caído para 21% a parcela da população que acredita haver muitas chances de uma nova ditadura. Menos que em 2018, mais que em 2014.

Mesmo com o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes enchendo a boca para falar do AI-5, o ato castrador de direitos, liberdades e vidas da última ditadura, com o objetivo de desestimular manifestações de rua contra o governo e contra as reformas, 49% dos brasileiros não acreditam na chance de uma nova ditadura, enquanto que, em outubro de 2018, a opinião era compartilhada por 42%. Detalhe: a esmagadora maioria dos brasileiros não sabe o que foi o AI-5, segundo a pesquisa.

O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, começou a falar como Olavo de Carvalho, normalizando o AI-5, negando números do desmatamento, discursando em carros de som de manifestações, mas as Forças Armadas não se mostraram interessadas em referendar todos os pendores autoritários do presidente. E eles foram muitos.

Desprezo pela democracia

"Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos… e se isso acontecer. Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!" A declaração do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, postada em seu Twitter, em setembro passado, foi prontamente rechaçada por políticos de vários matizes ideológicos e pela Ordem dos Advogados do Brasil. Não causaria tanto arrepio se o governo de seu pai não manifestasse desprezo por instituições democráticas.

Naquele momento, o filósofo Paulo Arantes, um dos mais importantes pensadores brasileiros, conversou com esta coluna sobre o componente revolucionário no bolsonarismo e como o presidente estava comendo instituições – Ministério Público, Receita Federal, Coaf, Polícia Federal – em nome de seu projeto de poder.

"Pode chegar o momento, daqui a três anos, em que Bolsonaro vai dizer 'não admito nenhuma alternativa que não seja minha reeleição'. Como já disse 'não admito qualquer coisa que não seja minha vitória', na eleição do ano passado", analisa Arantes.

Ele fez uma comparação com o bolivarianismo do nosso vizinho ao Norte. "No sentido mais exagerado, o espelho simétrico de um bolsonarismo consolidado e triunfante, com uma reeleição em 2022 e uma outra eleição, possivelmente com o filho, em 2026, é a Venezuela", afirma.

Para ele, a direita liberal não sabe o que fazer. Pois, se há desgosto diante de temas de costumes e comportamentos, para os quais ela torce o nariz, por outro lado, Bolsonaro está realizando o programa econômico dela junto com o Congresso. "E ele sabe que o cacife dele é o único capaz de conter uma volta daqueles que eles consideram a esquerda, a oposição – que, também na visão deles, voltará com sangue nos olhos. Então, ele vai ser assim todo o dia, um ultraje por semana."

Questionado pelo jornalista Leonardo Sakamoto se o presidente odiava a democracia, ele afirmou: "Odiar a democracia pressupõe que ele tem um conhecimento a respeito da natureza intrínseca daquilo que está enfrentando. Ele não está nem aí, isso não existe para ele. Para ele, isso é alguma idiossincrasia vocabular de jornalista, mais nada". Não só de jornalista.

Se por um lado, vem crescendo a quantidade de pessoas que afirma que a ditadura deixou mais realizações negativas do que positivas (46%, em 2014, 51%, em 2018, e 59%, agora), a pesquisa Datafolha mostrou que caiu o apoio à democracia sobre qualquer outra forma de governo – de 69%, em outubro de 2018, para 62% após um ano de Bolsonaro. O número de pessoas indiferentes se o país vive sob uma democracia ou uma ditadura subiu de 13% para 22%.

Descontando aqueles que não têm ideia do que seja uma democracia, sobram os autoritários e os que não veem benefícios no atual regime devido à sua condição social e econômica. Esse último grupo deseja mudança, não importa para onde. Esse sentimento ajudou a alimentar a campanha eleitoral de Bolsonaro. O, hoje, presidente tenta continuar capitalizando isso a seu favor, mesmo estando no poder. Para tanto, quer provar que está em uma guerra contra o mal, representado por tudo o que veio antes dele, inclusive a Constituição. Ele não apenas chama conquistas históricas de direitos de "entraves ao crescimento", mas reclama dos freios e contrapesos da democracia. Quer liberdade total.

Escolas como trincheira da democracia

A ditadura é tema que não faz parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser democracias. Passadas mais de três décadas de seu término, começamos a esquecer e a relativizar. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, disse que se sente mais confortável de chamar o golpe de 1964 de "movimento". Bolsonaro já afirmou que concorda com a tortura – tortura, que é a prova de que um Estado não obedece regras e, portanto, qualquer cidadão pode ser vítima de arbitrariedade, quanto ao seu corpo, suas crenças, suas propriedades.

Lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E, agora, estamos mergulhados em uma aventura autoritária achando que três décadas de construção de instituições vão nos manter seguros. Por enquanto, ajudaram a manter uma democracia capenga, que protege mais homens brancos do que o restante. Mas "as instituições [não] estão funcionando normalmente". Há fraturas e elas podem ser demolidas.

Os resultados do Datafolha mostram o quão importante é a defesa da democracia nas escolas de todo o país. O governo e seus aliados travam uma batalha na educação, com o objetivo de impor sua visão de mundo limitada e avessa à pluralidade. Na internet, onde esse conflito já existia, eles vem conquistando corações e mentes de jovens que acham quer ser vanguarda é ser reacionário.

A história do período entre 1964 e 1985 deve ser contada nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

Só dessa forma, poderemos garantir que a minoria que acha preferível a volta da ditadura continue a ser vista pelo restante da sociedade como mal informada ou fora de si – e tratada com todo o carinho possível e paciência. Pois, talvez um dia, compreenda o que significa a liberdade que está diante de seus olhos, mas que não consegue enxergar.


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