29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Balbúrdia no Enem de Weintraub pode judicializar acesso a universidades

Publicado em 23/01/2020 12:00 -

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O ministro da Educação, Abraham Weintraub, nunca foi muito fã das universidades públicas. Já disse que eram locais de "balbúrdia", de "plantações de maconha" e de "laboratórios de drogas", entre outras acusações. Agora, com a presepada nas notas do Enem, ele criou sua obra-prima: a avaliação, usada como base pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada) para escolher os novos ingressantes nessas universidades, perdeu credibilidade.

E o que acontece com um concurso público sem credibilidade?

Na melhor das hipóteses, a situação vai consumir mais recursos públicos para uma auditoria transparente nas notas e nos sistemas – o que pode atrasar o início do ano letivo para os calouros. E, no limite, vai levar a um rosário de processos judiciais para que a prova seja refeita – o que é terrível para a vida de quem ficou de fora da universidade e traz insegurança para quem entrou.

Isso se assemelha a um Campeonato Brasileiro com pontos sub judice em que times aparecem na tabela com asteriscos*, pois podem mudar de posição de acordo com o julgamento do caso.

Weintraub encheu a boca, no último dia 17, para dizer que esse era "o melhor Enem de todos os tempos". Foi desmentido pela realidade, algumas horas depois, quando pipocaram estudantes nas redes sociais reclamando que suas notas estavam erradas. Segundo as justificativas oficiais, houve um problema na gráfica que imprime provas e gabaritos, fazendo com que candidatos preenchessem o modelo de uma cor e fossem avaliados pelo de outra.

Apesar de ter recebido mais de 172 mil reclamações, o MEC afirmou que problemas foram identificados em menos 6 mil participantes. Deu dois dias a mais para a inscrição no Sisu, mas dezenas de milhares de jovens estão chiando em todo o país, afirmando que foram prejudicados.

Uma auditoria ampla se faz necessária para que não pairem dúvidas sobre o processo e, para tanto, a interrupção do Sisu é fundamental, como apontaram especialistas ouvidos por Rodrigo Ratier, doutor em Pedagogia pela USP.

O Ministério Público Federal enviou, no último dia 22, ao governo federal uma recomendação para que as inscrições sejam suspensas e que o gabarito de todos os candidatos seja novamente conferido, segundo apuração de Paulo Saldaña, para a Folha de S.Paulo.

Problemas acontecem. A questão é que a solução está sendo produzida na base da correria e da falta de transparência – tudo o que não pode acontecer com o Enem. Afinal, estamos tratando da vida de pessoas que se esfolaram o ano inteiro para conseguir uma vaga em uma universidade pública. Para alguns, esta é a chance de estudar em um bom lugar; para outros, que não têm dinheiro, é a chance de estudar.

O que o governo quer esconder? Algum problema mais grave ou sua própria incompetência? Ou Weintraub está tão na berlinda que, dependendo da resposta que dê ao problema, está fora do ministério?

Em uma democracia, espera-se de um ministro da Educação e de um presidente da República que garantam o cumprimento das regras do jogo. Ao cometer um erro e depois acochambrar a solução às pressas, a impressão é de que algo foi mexido sem que os jogadores entendessem o que aconteceu.

Se querem levar adiante a sua "guerra cultural", para "refundar" a sociedade brasileira em "valores conservadores", primeiro Abraham Weintraub e Jair Bolsonaro têm que oferecer o básico: um país que funcione e no qual as pessoas possam confiar.

Em tempo: Você, estudante, caso o Enem atrase sua vida, fique calmo e lembre-se das palavras do ministro: "este é o melhor Enem de todos os tempos".

Pois é…

Para um governo que vive citando a bíblia, esqueceu-se do lembrete de Eclesiastes, capítulo 1, versículo 2 ("Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade"), e se despiu de humildade ao dizer que o melhor Enem de todos os tempos mostrava que "gestão e eficiência e respeito ao dinheiro público são marcas do governo Bolsonaro". Afirmou também que não houve "polêmica" no exame, que "não teve problema operacional nenhum".

Ahã…

Independentemente do desfecho, o caso reforça a seguinte reflexão: tudo isso acontece quando um presidente da República deixa vaga a cadeira de ministro da Educação. Desde o início do ano, Bolsonaro indicou prepostos que serviram para desperdiçar tempo do país, substituindo a busca pela melhoria da educação básica e superior e pelo aumento da produtividade da força de trabalho por guerra cultural.

Merenda de qualidade, professor bem pago e formado, escola com papel higiênico e internet, bolsas de pesquisas com valores dignos e pagas em dia? Nope, a prioridade é lutar contra o fantasma do comunismo e a mamadeira de piroca.

Weintraub xinga pessoas pelas redes sociais, ameaça estudantes e professores, inventa que as universidades federais são fábricas de drogas, posta vídeos com gracinhas, como aquele em que dança com guarda-chuvas, reclamando de um temporal de fake news. Enquanto isso, seu ministério segue uma bagunça e até o Fundeb corre risco.

Ele, porém, não é causa, mas consequência – da mesma forma que o ex-secretário de Cultura e plagiador de nazismo, Roberto Alvim. Todos são frutos do bolsonarismo, que espera deles defesa incondicional do presidente e declarações bizarras que sirvam de alimento para a militância.

Em 20 de dezembro, o presidente disse que o que está sendo feito agora na área, "daqui a cinco, dez, quinze anos, vai ter reflexo". Também como sempre digo aqui, Bolsonaro usa a área da educação para ajudá-lo na tarefa de implementar um "Ministério da Verdade", como no livro "1984", de George Orwell. Quer castrar a liberdade com uma intervenção no significado e no sentido da educação pública, acabando com instrumentos que democratizam o conhecimento. Para a extrema direita, a sociedade está corrompida e degradada por conta dessas liberdades, precisando de refundação. Para tanto, uma guerra que ressignifique a realidade é fundamental.

O problema ocorrido no Enem não é uma falha imprevisível, mas consequência de opções feitas pela Presidência da República. Portanto, deve entrar na conta de Bolsonaro quando ele for cobrado por atrasar o futuro.

Com Enem à deriva, Weintraub arranja tempo para atacar Karnal e Villa

O ministro da Educação acusou Leandro Karnal de ser chato e petulante por conta de uma declaração do professor da Unicamp no qual afirma que o ministro Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol "são dotados de um certo tenentismo". Weintraub compartilhou uma postagem que diz que a "cara", o "jeito", a "voz", a "postura", o "conteúdo" de Karnal irritam.

E, frente a críticas ao Ministério da Educação, ele chamou Marco Antonio Villa de "boca de esgoto". Dedicou um vídeo inteiro, aliás, para insinuar que Villa tem mau hálito e questionou se a rádio Jovem Pan o recontratou como comentarista por pressão do governador João Doria e do PSDB.

Ele não cita diretamente o nome de Villa, mas nem precisaria. Os vídeos contra o professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos foram gravados da Esplanada dos Ministérios em Brasília, ou seja, do local de trabalho de Abraham Weintraub.

Além de gastar tempo atacando críticos do governo, também arranjou tempo para divulgar imagem de sua ficha de apoiador da "Aliança pelo Brasil", o partido que está sendo criado por Jair Bolsonaro após sua saída do PSL. A manutenção do clima de beligerância e os afagos ao chefe através do ataque a seus críticos surte efeito a princípio e ele vai permanecendo, apesar das reclamações de alas do próprio governo.

Enquanto isso, o cabaré está em chamas.

O ataque sequencial a dois historiadores, com pontos de vista divergentes, pode não ter sido proposital, mas é bastante paradigmático.

O governo Bolsonaro declarou guerra à educação pública no Brasil em nome de um projeto de poder. O presidente age como se comandasse o "Ministério da Verdade" – apresentado no romance "1984", de George Orwell, com a função de ressignificar os registros históricos e qualquer notícia contrária.

Ele precisa dar outra interpretação ao passado para controlar o presente e, ao mesmo tempo, ressignificar o presente para criar um futuro que possa chamar de seu. Isso passa por castrar a liberdade de ensino conquistada desde a redemocratização, intervindo no sentido da educação pública, atacando outras versões da História e buscando calar narradores da contemporaneidade, como jornalistas, que sejam de seu desagrado.

Nesse contexto, são muitos os que desejam que seja ensinada a data em que foi assinada a Lei Áurea, mas não querem um debate que esclareça porque o 13 de maio de 1888 não garantiu liberdade e autonomia aos negros e negras deste país. Ou que defendem que uma criança aprenda que a Segunda Guerra Mundial começou quando a Alemanha invadiu a Polônia, mas reclamam se professores discutem em sala como um país livre se torna um Estado totalitário.

A disputa pela Educação no Brasil não é apenas uma questão de construir o futuro. Para a extrema direita, é refazer o passado. O problema é que, na sanha para que sua guerra cultural renda frutos e na luta pela sobrevivência, o governo deixa de lado o básico, ou seja, o funcionamento das instituições. Do combate à corrupção à educação.


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