29/03/2024 - Edição 540

Eles em Nós

O promotorzinho e o jornalista

Publicado em 23/01/2020 12:00 - Idelber Avelar

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Finalmente ouvi o áudio que um procuradorzinho brasileiro quer usar para incriminar um jornalista que estava fazendo seu trabalho. Que você tenha restrições ao método, à editoria, ao trabalho jornalístico ou à visão de política brasileira do Glenn Greenwald agora é totalmente irrelevante. Quando aparece a polícia — e, para todos os efeitos, o MP aqui é polícia –, só cabe solidariedade ao jornalista.

Em qualquer país democrático do mundo, aquele áudio é uma conversa normal de um jornalista fazendo seu trabalho: não imiscuindo-se no que a fonte possa ter feito, preocupado em protegê-la (vale sempre lembrar, não foi Greenwald quem queimou sua fonte), interessado apenas no conteúdo de interesse público que se revela ali. Em um país realmente democrático, os órgãos do Estado não deveriam sequer ter o poder de vazar esse áudio sem que o vazador fosse responsabilizado.

Muita gente coça a cabeça perguntando-se como foi possível que 57 milhões de brasileiros sufragassem o nome de Jair Bolsonaro nas eleições, mas é incomum que as pessoas se perguntem por fatos igualmente insólitos e curiosos de se explicar: como uma parcela ainda maior da sociedade brasileira aceitou entregar a um grupo de capangas de um juiz megalômano, autoritário e semi-letrado a condição de farol moral da nação, apenas por terem passado em um concurso público e terem se articulado em uma coalizão jurídico-policial "anti-corrupção" enquanto praticavam eles mesmos, claro, a mais profunda e estrita corrupção que há, que é a apropriação do público para fins privados.

A acusação contra Greenwald vai cair em algum momento e o procuradorzinho terá tido apenas seus 15 minutos de fama. Greenwald continuará sendo Greenwald e o procuradorzinho continuará sendo apenas um procuradorzinho formado no velho "você sabe com quem está falando?" tão próprio do Brasil. Mas no final ele terá dado, claro, a sua contribuição para intimidar ainda mais o jornalismo brasileiro no que já é, para todos os efeitos, um estado policial em nascença e constituição. E terá dado mais uma contribuição medíocre — contribuição de procuradorzinho procurando holofote — à infindável sequência de vergonhas que nos caracterizam hoje como nação.

Bernie já se pronunciou contra a perseguição de jornalistas no Brasil

Ele não?

A campanha da imprensa dos EUA para que o movimento popular de esquerda que se aglomerou em torno de Bernie Sanders não conquiste a indicação do Partido Democrata à Presidência dos EUA está começando a me dar um pouco de nojo. Até quizzes mentirosos e manipulados andam inventando. Shame on you, Washington Post.

Não sou adepto da teoria da "mídia golpista", não acho que a imprensa brasileira tenha prejudicado os candidatos em quem votei nas últimas SETE presidenciais (em 1989, sim, não depois), não acredito na existência de linha reta entre os interesses de acionistas e donos de empresas e a pauta e o viés jornalísticos, e meus amigos jornalistas sabem que regularmente defendo seu trabalho contra teorias conspiratórias bestas de direita e esquerda.

A semi-velada hostilidade da imprensa dos EUA a Bernie nunca me incomodou. Bernie também é um pouco hostil a eles. Jogo jogado. 23 vezes mais tempo de TV para Trump que para Bernie durante as primárias de 2016, apesar de que as multidões de Bernie eram maiores? Nem reclamei disso na época, e quem me lê aqui descobriu esta semana que a proporção foi essa.

O que está acontecendo agora é um pouquinho diferente e se parece mais ao bate-bumbo em que se engajaram os meios de comunicação em 2003 com a Guerra do Iraque. Mentirada, mentirada, mentirada em sequência. Aí não dá.

O quiz feito pelo Washington Post está estruturado para que qualquer centrista saia com Joe Biden e qualquer progressista saia com Elizabeth Warren. A pergunta 14 mente sobre Bernie ao afirmar que ele apenas defende "registro" de assault weapons, quando a proposta de Bernie sempre foi, a vida inteira (ao contrário de Warren, que descobriu anteontem que armas são um problema nos EUA), e assim está escrito no programa, com letras garrafais, A FEDERAL BAN ON ASSAULT WEAPONS.

O quiz volta a mentir ao separar os candidatos entre aqueles que acham que a Presidência deveria e os que acham que ela não deveria "preocupar-se em reduzir ao estabilizar o déficit público", e colocando Bernie no segundo grupo, como se alguma vez Bernie tivesse proposto despreocupar-se do déficit, como se ele não estivesse propondo, também em letras garrafais, AUMENTO SUBSTANCIAL da taxação dos ricos e até mesmo da classe média, como se ele não estivesse propondo REDUÇÃO SUBSTANCIAL do orçamento do Pentágono e da defesa em geral — ou seja, uma série de propostas fiscalmente responsáveis.

Portanto, amiguinhos todos da minha TL que fizeram o quiz no qual … nossa, deu Warren! Sim, vocês foram manipulados.

Em tempo: tem amplas relações nos perequetês eletrônicos do site do Washington Post um camarada chamado Joe Rospars. Você sabe quem é? Rospars é o CEO da empresa Blue State, que presta serviços ao DNC (o poderoso Democratic National Committee, que quer o candidato do establishment, Joe Biden) e também ao próprio Joe Biden. Desde 2019 Rospars é também … o estrategista-chefe da campanha de Elizabeth Warren! Não é a linda a dobradinha, digo, a tripladinha?

Eu assino uns 12 a 15 veículos de mídia de vários países. Mas a minha assinatura do Washington Post está cancelada.

Aceito ser feito de palhaço, mas só se for de graça. Pagando, não dá.

Ainda sobre o tema

Gostaria de oferecer um exemplo da diferença entre uma distorção que considero aceitável, ainda que reprovável, e um inaceitável ato pelo qual uma emissora me chama de otário.

Ao longo da estrada que levou às primárias dos dois partidos americanos para as eleições de 2016, dois candidatos reuniram grandes multidões: Bernie Sanders, na esquerda hard, e Donald Trump, na direita hard. A candidata centrista que acabou conquistando a indicação Democrata, Hillary Clinton, não fazia grandes reuniões públicas naquele momento, e os adversários de Trump na primária Republicana sequer realizavam comícios.

Pois bem, só agora vocês descobrirão que, segundo estudo conhecido há tempos, do sério Media Matters for America, a CNN deu a Trump VINTE E TRÊS VEZES mais tempo que a Bernie, apesar de que as multidões de Sanders eram ligeiramente maiores e bastante mais antigas que as de Trump. Vocês só descobriram isso agora porque eu nunca reclamei do fato aqui. Acho que é do jogo. Não se trata de uma TV aberta, é TV a cabo. Ela que faça o que quer — inclusive porque sabemos que a CNN deu esse tempão todo a Trump não porque fosse parte de uma conspiração para elegê-lo, mas porque o cálculo da emissora era que as palhaçadas de Trump, geradoras de audiência, eram inofensivas. Depois tentaram consertar fazendo campanha para Clinton contra Trump, gerando um enorme backlash habilmente manipulado por ele. Deu merda, segundo eles mesmos, mas tudo isso pra mim é do jogo.

Mas o que a CNN fez agora é uma palhaçada sem igual. Uma candidata inventa algo difamatório sobre outro candidato, que contraria tudo o que sempre diz e fez alguém que nenhuma emissora jamais pegou na mentira, algo dito numa suposta conversa privada da qual a beneficiária é só ela própria, e a emissora assume como fato, uma, duas, várias vezes? Estrutura o próprio debate em torno da mentira? Aí, não. Aí ela exacerba o seu direito de preferência e começa a me chamar, a mim, seu espectador, de otário.

Mais ou menos como fizeram em 2003, quando pressupuseram verdadeiras as mentiras inventadas sobre o Iraque, no bate-bumbo que antecedeu a guerra. A CNN já fez e faz muitas coisas boas, mas nas horas decisivas mete os pés pelas mãos e faz merda.

Linguagem devastada

Em meio à polêmica gerado pelo ex-secretário da cultura de convicções nazistas, uma coisa permanece pouco comentada. Trata-se de mais uma baixa provocada pelo bolsonarismo no terreno da linguagem.

“Ou não será nada” era, até semana passada, uma oração coordenada alternativa perfeitamente possível em português brasileiro, como forma de acrescentar ênfase.

A partir de semana passada, passou a ser impossível usá-la. Apesar de que ela é semanticamente uma expressão neutra, que poderia aparecer em qualquer situação, a sua pragmática passou a ser inaceitável, associada a lixo nazista.

E assim o bolsonarismo vai produzindo sua devastação sobre a linguagem.

Falando nele

Acredito estar havendo uma confusão em certas comarcas do jornalismo brasileiro. Tanto Globo como G1 como Folha chegaram a manchetar “Alvim cita Goebbels” e “Alvim parafraseia Goebbels”. Ambas as manchetes estão incorretas, no meu modo de ver.

Parafrasear é recriar, com as suas próprias palavras, algo dito por alguém. Tomar uma longa frase e substituir “alemã” por “brasileira” não configura transformação suficiente para caracterizar a cópia como paráfrase.

Citar pressupõe que o trecho copiado de outrem esteja identificado com aspas, com o nome do autor recebendo a atribuição do crédito. Tampouco foi isso o que fez Alvim.

A única manchete correta, portanto, seria: “Alvim PLAGIOU Goebbels”. Vamos consertar issaê, né.

Quizzes irresolúveis

Ando numa obsessão de formular quizzes irresolúveis em consultas ao Google. Gostaria de testar os limites dele em mãos de um público que não necessariamente sabe a resposta, mas que é bem mais erudito que a média das redes e sabe usar a ferramenta.

Então, vamos lá. Especialistas em Borges que por ventura me leem aqui, please, não respondam. A pergunta está aberta para todos os demais, inclusive com Google.

A coleção de livros que chamamos "Bíblia" é o terceiro "autor" mais citado na obra de Jorge Luis Borges. A pergunta é: quais são os dois primeiros?

12:35 em NYC, 14:35 em BSB. Vamos ver quanto tempo vocês demoram. Prometo uma prenda — um livrinho meu — à/ao primeira/o que cravar as duas respostas certas.

***

EDIT ÀS 15h15 (NYC), 17h15 (BSB): Esperamos 2h30 e ninguém acertou: 1˚ Leopoldo Lugones; 2˚ William Shakespeare.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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