19/04/2024 - Edição 540

Auau Miau

Testes com animais no Brasil podem acabar em breve?

Publicado em 14/01/2020 12:00 -

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Enfileirados um ao lado do outro, em suportes pequenos e apertados, diversos coelhos ficam imobilizados. Clips de metal os impedem de fechar os olhos: assim é possível aplicar diretamente em suas córneas, sem anestesia, substâncias presentes em cosméticos e produtos de limpeza. Esse é o Teste de Draize, criado na década de 1940 para avaliar a irritação ocular que certos produtos podem causar em humanos. O mesmo método serve para medir a reação da pele, mas aí os coelhos não são as únicas cobaias: cachorros e roedores também são recrutados.

Procedimentos como esse estão entre nós há muito tempo. Na Grécia Antiga, médicos dissecavam animais vivos para estudos de anatomia e fisiologia, as chamadas vivissecções. As técnicas desses experimentos foram aprimoradas durante o Império Romano por Cláudio Galeno, médico tido como pioneiro em fazer testes em bichos para embasar tratamentos que seriam aplicados em pessoas.

As polêmicas que envolvem práticas como essas acompanham a humanidade desde então. Acontece que há motivos para elas ainda existirem. “Animais são os modelos mais parecidos com os humanos que conseguimos estudar”, afirma Fátima Fandinho, vice-diretora de ensino e pesquisa do Instituto de Ciência e Tecnologia em Biomodelos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “[Com eles] é possível avaliar como uma substância interage com o organismo todo, e ainda não há uma técnica que substitua isso totalmente”, pontua.

Macacos, cachorros, coelhos, porquinhos-da-índia, bovinos e aves são algumas das espécies mais utilizadas pelos cientistas. Os camundongos são os principais, porque têm 99% dos genes compatíveis com os humanos, além de serem pequenos, se reproduzirem facilmente e terem uma expectativa de vida curta — o que permite a análise de várias gerações.

Mas não tem jeito: por mais que a ciência argumente sobre as vantagens desses testes, eles são cada vez mais questionados. O lado positivo é que essa discussão acontece numa época em que a tecnologia avança a passos tão rápidos a ponto de procedimentos com animais estarem, de fato, deixando de existir. Novas técnicas possibilitam investigar o efeito de substâncias no corpo humano sem usar um bicho sequer, e elas já estão virando rotina em laboratórios — seja por serem mais eficientes, seja por questões legais.

Agora é lei

Testes em animais não são proibidos no Brasil, mas realizá-los ficou mais difícil por aqui desde o dia 24 de setembro. Nessa data, terminou o prazo de cinco anos para que laboratórios adotassem métodos alternativos aos procedimentos com cobaias, conforme estipula uma resolução normativa do Conselho Nacional de Controle e Experimentação Animal (Concea).

A norma exige que sejam priorizados métodos alternativos que não usem seres vivos. Os “métodos alternativos” são técnicas baseadas em ao menos um dos princípios dos 3 Rs: do inglês, reduction (redução), refinement (refinamento) e replacement (substituição). Os termos se referem, respectivamente, a diminuir o número de bichos utilizados, aperfeiçoar as metodologias para minimizar o sofrimento animal e substituir o uso de cobaias. 

A decisão vale para procedimentos que analisem, por exemplo, irritação nos olhos e na pele e fototoxicidade (queimaduras causadas pela substância após exposição solar). A medida se aplica a indústrias de cosméticos, medicamentos, brinquedos e até materiais escolares. Empresas que não cumprirem a determinação podem perder a licença para realizar pesquisas, além de pagar multa de R$ 5 mil a R$ 20 mil. Mas, se os métodos alternativos não apresentarem resultados que garantam a segurança do consumidor, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pode exigir procedimentos com cobaias.

O Brasil conta com 24 métodos alternativos validados — ou seja, que foram estudados em outros países, têm eficiência comprovada e passaram pela aprovação do Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos. Todo laboratório — industrial ou acadêmico — que realiza testes com cobaias ou métodos alternativos precisa estar cadastrado no Concea. Para que tal registro seja feito, é necessário que cada instituição tenha uma Comissão de Ética no Uso de Animais, que aprova projetos de pesquisa envolvendo bichos e deve ser formada por cientistas e ao menos um veterinário e um representante da sociedade civil.

Estamos avançando

No início de setembro deste ano, foi inaugurado o primeiro laboratório do Brasil e da América Latina dedicado a criar pele humana para substituir animais em testes científicos de universidades e empresas. Ele fica no Centro de Pesquisa e Inovação da L’Oréal, no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na capital fluminense. A iniciativa é da Episkin, empresa de biotecnologia do Grupo L’Oréal. O modelo é semelhante a outros que já existem no mundo, como o da MatTek, fundada por professores de Engenharia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), em 1985. A companhia é especializada em produzir tecidos do corpo humano em 3D — além de pele, cria olhos, gengiva, intestino e até vagina.

No caso do centro da Episkin no Brasil, o foco é a pele. Os cientistas recebem doações de sobras de pele de cirurgias plásticas realizadas na França e as utilizam para recriar a epiderme, a camada mais superficial do órgão. O processo todo acontece no Rio: os pesquisadores isolam células chamadas queratinócitos e as colocam em meios de cultura. São necessários 17 dias até que uma amostra se transforme em um pequeno pedaço de epiderme. “O processo aplicado aqui é o mesmo feito há mais de 30 anos na França, então o modelo é considerado válido internacionalmente”, assegura Rodrigo de Vecchi, CEO da Episkin no Brasil. O tecido pode ser usado para testar índices de inflamação, irritação e alergia, por exemplo.

Há empresas brasileiras que excluíram testes em animais há bastante tempo. É o caso do Grupo Boticário, que não faz esse tipo de procedimento desde 2000. Eles produzem a própria pele 3D para a avaliação de produtos. “Ao usar células humanas, conseguimos chegar ao resultado mais próximo do que realmente acontece com a nossa pele”, relata Márcio Lorencini, gerente de pesquisa biomolecular do grupo.

A desvantagem desse método em relação aos testes com animais é que não há como prever possíveis reações em outras partes do organismo. Para contornar isso, a empresa investiu na tecnologia human-on-a-chip (humano em um chip, em tradução livre), capaz de simular diversos órgãos. No caso, o chip age como linfonodos (os chamados gânglios linfáticos), pequenos órgãos do sistema imunológico distribuídos por todo o corpo. Os linfonodos são usados junto com a pele 3D para identificar reações alérgicas decorrentes dos produtos testados.

A Natura, outra gigante brasileira do setor de cosméticos, não realiza testes em animais desde 2006. A companhia conta com 67 tipos de procedimentos enquadrados como métodos alternativos. “Nenhum teste é aplicado isoladamente, há sempre uma combinação para obtermos os melhores resultados”, afirma Roseli Mello, diretora de inovação e segurança do consumidor da Natura.

Entre as tecnologias da empresa está um software capaz de analisar possíveis efeitos colaterais de fórmulas com base em suas estruturas moleculares. Trata-se do modelo computacional in silico, um banco de dados com informações de diversas composições e resultados de testes prévios. Há também equipamentos capazes de sequenciar genes de proteínas e extratos de ingredientes usados em produtos. “Por meio de biologia computacional vemos se as substâncias podem causar alergia, irritação ou outros efeitos”, explica Mello.

Mais do que parecer bem na fita, o uso de métodos alternativos pode fazer bem para as próprias empresas. Entre as vantagens estão aprimorar as áreas de pesquisa e economizar, visto que manter animais custa caro. Conta também o fato de que as novas tecnologias podem ser até mais confiáveis do que os testes com cobaias.

Um levantamento da Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos, aponta que 92% dos medicamentos aprovados em testes com animais falham quando aplicados em humanos. Um estudo da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, publicado em julho de 2018 no periódico científico Toxicological Sciences, concluiu que algoritmos trabalhando sobre uma grande base de dados de substâncias químicas podem prever os índices de toxicidade de um produto com mais precisão do que testes com animais. Será que, em um futuro não tão distante, os experimentos com cobaias vão deixar de existir?

Problema mundial

Não há um controle da quantidade de procedimentos realizados com animais no Brasil; tampouco há dados de outros países amplamente divulgados. Um estudo conduzido pelo grupo de defesa dos animais Cruelty Free International e pela Dr. Hadwen Trust, instituição de pesquisas do Reino Unido, aponta que pelo menos 115 milhões de bichos a cada ano são usados para esse fim no mundo.

A China exige que todos os cosméticos vendidos no país sejam testados em cobaias. Caso uma empresa estrangeira queira entrar no mercado local, precisa se adaptar à regra. As exigências, no entanto, parecem se flexibilizar aos poucos. Em março, o governo anunciou a aprovação de novos procedimentos sem animais para acompanhar a eficácia de produtos que já são comercializados por lá.

Na Europa, o cenário é bem diferente: testes de cosméticos em seres vivos estão proibidos desde maio do ano passado, e a importação de produtos que tenham sido aplicados em bichos foi banida em 2013.

No Brasil, oito estados contam com leis que proíbem o uso de animais em determinadas indústrias: Amazonas, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Mas esse tipo de legislação causa polêmica, já que existe uma lei federal (a Lei Arouca) que permite esse tipo de experimento — ainda que sob muitas regras. Há quem argumente que uma lei estadual não deveria se sobrepor a uma de âmbito nacional. “As regulações do Concea e a Lei Arouca regem a experimentação animal no país”, afirma Renata Mazaro e Costa, coordenadora do Concea.

Um projeto de lei (PL nº 6.602/2013) de autoria do deputado Ricardo Izar pretende mudar essa realidade. A proposta é acabar, em todo o país, com a utilização de cobaias em atividades de ensino, pesquisas e testes laboratoriais de cosméticos. Mas alguns especialistas não acreditam que isso seja viável — ao menos por enquanto.

Para Fátima Fandinho, da Fiocruz, os desafios passam pela capacitação de profissionais para usar as novas tecnologias e também por uma adaptação de diversos setores da sociedade. “Não se trata apenas de troca de técnicas, e sim de mudança cultural: é preciso mostrar as alternativas para gestores de saúde pública, pesquisadores e veterinários”, diz Fandinho.

Quanto mais as novas tecnologias se disseminarem, melhor. Porém, até que se tornem rotina nos laboratórios, é improvável que testes com bichos deixem de existir completamente. Daí porque o bem-estar animal não pode ser uma preocupação apenas de ativistas: é também questão de ciência.


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