28/03/2024 - Edição 540

Especial

Não nos calamos

Publicado em 12/12/2019 12:00 -

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Em três anos, o Brasil piorou consideravelmente os indicadores de liberdade de expressão e registrou a terceira maior queda no quesito entre os países analisados pela organização internacional Artigo 19, em relatório divulgado hoje.

Entre 2015 e 2018, a liberdade de expressão no mundo só diminuiu mais na Polônia e na Nicarágua — nações submersas em regimes autoritários, em dois polos políticos opostos.

O estudo analisou 161 países de todos os continentes. Na América do Sul, conforme o relatório divulgado, o Brasil se encontra em sétimo lugar quanto à liberdade de expressão.

No ranking global, a Dinamarca encabeça a lista, seguida de Noruega, Suécia, Suíça e Estônia. O Brasil ficou na 70ª posição, atrás de países como República Dominicana, Nigéria e Gabão.

Liberdade de expressão na América do Sul

Uruguai: 0.883

Chile: 0.848

Argentina: 0.788

Peru: 0.717

Equador: 0.694

Bolívia: 0.618

Brasil: 0.587

Paraguai: 0.567

Colômbia: 0.463

Venezuela: 0.089

Como se mede a liberdade de expressão?

Para chegar no coeficiente do estudo, a Artigo 19 utiliza 39 indicadores e os aplica em cinco pilares:

Espaço cívico: mede o espaço para debates públicos e manifestações, por exemplo;

Digital: avalia a capacidade dos cidadãos de se expressarem na internet;

Mídia: mede a qualidade do ambiente para jornalistas e veículos de imprensa;

Proteção: analisa a segurança de todos que se expressam, incluindo jornalistas;

Transparência: mede a eficácia na obtenção de informações do governo e na fiscalização de agentes públicos.

O estudo avalia o índice de liberdade de expressão no país em 2018, mas os pesquisadores alertam que, em função dos ataques à imprensa impetrados pelo atual governo, a tendência é que a situação se deteriore:

"A perspectiva é que a liberdade de expressão diminua ainda mais no país sob a gestão do presidente Jair Bolsonaro, que, desde a corrida eleitoral, vem dirigindo ataques a jornalistas, veículos de comunicação, ativistas e organizações da sociedade civil".

Desde que assumiu o governo, em janeiro, Bolsonaro colecionou ataques a imprensa, em especial ao Grupo Globo e ao jornal Folha de S. Paulo. Na empreitada mais recente, também considerada a mais grave, o presidente excluiu a Folha de uma licitação da Presidência para fornecimento de acesso digital ao noticiário da imprensa. Dias depois, voltou atrás da medida e revogou a licitação.

"Com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil se tornou um lugar ainda mais perigoso para se comunicar. Seus ataques verbais à mídia têm sérias repercussões na segurança de jornalistas e defensores dos direitos humanos. (…) É urgente que cessem as narrativas oficiais e políticas divisoras que promovem desinformação, a polarização e o ódio", disse em nota a diretora executiva da Artigo 19, Denise Dora.

Violência contra jornalistas

O texto do Relatório de Expressões Globais (tradução livre do nome do documento em inglês) cita também o ambiente violento para a atuação de jornalistas e comunicadores no país. O estudo afirma que "35 crimes graves foram cometidos contra jornalistas e comunicadores em 2018 — número que está entre os mais altos da América do Sul.

Pelo menos 64 jornalistas foram assassinados no Brasil desde 1995, todos os crimes em função da profissão. O dado foi levantado a partir de um relatório do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) com o apoio do ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Em 2018, o Brasil figurou entre os dez países onde mais jornalistas são assassinados. Naquele ano, quatro profissionais foram assassinados, mesmo número registrado nas Filipinas.

Relatório denuncia perseguição a acadêmicos e universidades

Com cinco edições publicadas, o relatório anual Free to Think, que monitora a perseguição a acadêmicos e a universidades em todo o mundo, já teve estampadas em sua capa fotos do Irã, da Turquia, do Paquistão e Egito. Na edição de 2019, quem ocupa a primeira página do relatório é o Brasil.

A capa traz uma imagem de estudantes protestando no Rio de Janeiro em maio contra cortes de orçamento e bolsas anunciados pelo governo federal, capturada por Ricardo Moraes, da agência Reuters. Pela primeira vez, o Free to Think ("Livre para pensar", em tradução livre) traz também um capítulo dedicado ao Brasil, afirmando que "pressões significativas no ensino superior brasileiro aumentaram na véspera e no período posterior às eleições presidenciais de 2018". Nas edições anteriores, o Brasil não foi mencionado.

O relatório, de caráter mais qualitativo, cita na edição de 2019 declarações de membros e iniciativas do governo federal brasileiro cortando investimentos para instituições e disciplinas específicas, como a sociologia e a filosofia; apresenta ainda ações que, de acordo com o documento, limitam a autonomia das universidades; e episódios de pressão, por agentes policiais e civis com motivações políticas, contra campus durante e depois das eleições presidenciais.

O destaque inédito ao Brasil justifica-se não necessariamente pela dimensão da perseguição a acadêmicos no país em comparação com o resto do mundo, e sim a uma mudança na conjuntura, explicou Robert Quinn, diretor executivo da organização sem fins lucrativos que produz o relatório, a rede internacional Scholars at Risk ("Acadêmicos em risco"), baseada na Universidade de Nova York. A publicação detalha ainda os casos da China, Índia, Sudão e Turquia e abrange o período de setembro de 2018 a agosto de 2019.

Quinn, doutor em filosofia e com uma trajetória de prêmios e passagens por organizações dedicadas à promoção científica e aos direitos humanos, diz que além do relatório, outra atividade do Scholars at Risk é receber pedidos de assistência por acadêmicos que denunciam estar sendo vítimas de perseguição.

A rede, que está celebrando 20 anos de existência, recebeu em sua história 34 solicitações desse tipo vindas do Brasil — 30 delas no último ano, o que fez a rede acompanhar mais de perto a situação do país e depois incluí-lo no relatório.

"Eu não leria a imagem como dizendo: o Brasil foi o pior país do mundo no ano passado. Isto seria injusto", afirmou, falando de Nova York em entrevista via chamada de vídeo. "Mas acho que o que ela está dizendo é: o Brasil está aqui, e isto é novo."

"Há algo acontecendo e precisamos olhar para isso. Não quer dizer que há um grande problema, mas significa que precisamos analisar. E, quando olhamos, uma parte dos incidentes foi muito bem pronunciada por representantes do governo ou políticos no Brasil. Algumas destas falas circularam pelo mundo", diz.

O relatório apresenta, por exemplo, declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e do presidente Jair Bolsonaro. Uma delas foi uma entrevista de abril em que Weintraub afirmou que as universidades federais Fluminense (UFF), da Bahia (UFBA) e de Brasília (UnB) teriam cortes de verba por promover "balbúrdia" em vez de buscar excelência acadêmica, segundo ele. Outra fala do mesmo mês incluída no documento foi referente às disciplinas de filosofia e sociologia, que de acordo com o ministro poderiam ter verbas para seus cursos cortadas por não serem rentáveis.

Esta posição foi endossada por Bolsonaro no Twitter, onde ele escreveu que a medida teria o objetivo de "focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como veterinária, engenharia e medicina".

A reportagem solicitou posicionamento dos ministérios da Educação e Ciência e Tecnologia, mas não obteve resposta até esta publicação.

Fazendo uma analogia com a medicina, Quinn diz que há casos em que a tensão entre as universidades e o poder é crônica, ou seja, se expressa de uma forma saudável, por meio de debates públicos e protestos, por exemplo.

E há os casos agudos, em que a tensão é liberada em forma de violência e perseguição. Para ele, a escalada de casos do Brasil que chegaram à organização indicam que o país pode estar chegando em sua fase aguda.

"Baseado na história em outros lugares, temos um alarme do que pode acontecer e do que pode piorar. A situação (no Brasil) é preocupante."

"Acho que o maior sintoma de todos no Brasil, pois é algo que se observa historicamente, voltando literalmente a séculos atrás, é a construção artificial do 'outro' por aqueles que estão no poder. Esta criação não se vale do conhecimento, da racionalidade ou de evidências, mas de emoções, energia negativa e uma remissão a um passado imaginário 'puro'".

"No ensino superior, isso se manifesta com governos, partidos ou representantes importantes do poder mirando um acadêmico em especial ou uma disciplina particular como estrangeira, não tradicional".

Ainda que o relatório lembre que os cortes nestas universidades e disciplinas não tenham sido concretizadas, Quinn diz que tais falas contribuem para um cenário de cerceamento à liberdade de pensamento — que não deve ser orientado apenas pelo critério da rentabilidade, ele destaca.

"No nosso histórico de casos, por exemplo, vemos que qualquer disciplina pode se tornar um alvo", aponta o diretor.

"Há alguns anos, tivemos o caso de um professor na Tunísia que lecionava uma disciplina sobre saúde pública, e trabalhava especificamente com mortalidade infantil. Você pode perguntar: por que isto se tornaria algo político? Porque o governo, e se tratava de uma ditadura, estava mentindo sobre a mortalidade infantil — a situação era muito pior do que estava sendo divulgado."

"Se você considera a história da União Soviética, por exemplo, os físicos lideravam a dissidência. Mas nunca pela física em si, pelas fórmulas. Era porque eles queriam conversar com físicos de outros países, mas eram impedidos de viajar."

"Hoje, no cenário contemporâneo, há países, como o Irã, que tentam recrutar físicos para participar de seus programas nucleares. E, se eles se negarem, vão para a prisão."

É também lembrado no relatório sobre o caso brasileiro um decreto presidencial de maio que alterou os procedimentos para nomeação de órgãos vinculados à administração federal (não apenas instituições de ensino).

Na visão de entidades que se manifestaram sobre o decreto, como o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal, ele poderia afetar diretamente a autonomia das universidades públicas.

Isto porque o texto abre caminho para que o governo, e não mais os reitores, designem nomes para cargos de vice-reitor, pró-reitor, diretores e vice-diretores de faculdades.

Pressão vinda da Justiça e de grupos políticos em campus brasileiros

Além de ações do governo federal, o relatório aponta para decisões de juízes e ações policiais em universidades no contexto eleitoral, motivadas por acusações de que estudantes e professores estariam se manifestando partidariamente em espaços públicos.

Foi o caso do confisco, por decisão judicial, de uma faixa pendurada na Universidade Federal Fluminense (UFF) com as palavras "Direito UFF Antifascista"; ou de folhetos de uma associação de docentes da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) intitulados Manifesto em defesa da democracia e das universidades públicas.

O relatório Free to Think lembra que, no final de outubro de 2018, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia concedeu medida cautelar suspendendo ações de busca e apreensão, autorizadas por juízes de Tribunais Regionais Eleitorais, em universidades de todo o país.

Do período eleitoral, o documento denuncia ainda relatos de ataques e assédios de grupos civis com motivações ideológicas contra estudantes da Universidade de Fortaleza (Unifor); Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio); Universidade Federal do Pará (UFPA); e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Por fim, o relatório apresenta recomendações específicas para o caso brasileiro, como a investigação e eventual punição de autores de incidentes em que membros da comunidade universitária tenham sido colocados em risco; e o recuo de declarações e políticas que estigmatizem e ataquem o ensino superior do país.

Em relação às 30 solicitações de assistência do Brasil recebidas pelo Scholars at Risk (SAR) no último ano, a entidade disse que seis estão sob acompanhamento de fato, enquanto as outras não puderam ser atendidas diretamente pela organização, sendo direcionadas a outras formas de assistência.

"Em relação às outras 24 aplicações, algumas não atenderam aos critérios de bolsa ou risco. Como é possível observar em nossas ações, como o Free to Think, o SAR está preocupado com as pressões no setor da educação superior no Brasil que estão impactando todos os acadêmicos e estudantes do país. Devido aos recursos limitados e um crescente volume de pedidos de assistência, nossos serviços de proteção priorizam aqueles que relatam experiências de ataques e ameaças diretos", diz nota enviada à reportagem.

A rede SAR foi fundada em 1999 e tem seções em diferentes partes do mundo, principalmente na América do Norte, Europa e África. Na América Latina, a rede tem colaboradores que participam anonimamente no monitoramento e verificação de incidentes.

Nos casos mais graves de perseguição a acadêmicos, o Scholars at Risk tem um projeto que organiza asilo para que pesquisadores possam trabalhar e morar em outros lugares em que não estejam sob risco; há também serviços de assistência e campanhas para casos de acadêmicos presos.

A organização tem apoio da Universidade de Nova York, onde é sediada, e recebe doações individuais e de outras entidades, como a Vivian G. Prins Foundation, Open Society e National Endowment for Democracy.

10 episódios de violação à liberdade de expressão em 2019

No último dia 10 o mundo celebrou mais um Dia Internacional dos Direitos Humanos, data criada pela Unesco em 1968 para marcar o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada vinte anos antes, em 1948. No Brasil, desde a redemocratização, pós-ditadura militar, não enfrentamos tantas ameaças concretas às liberdades fundamentais. Como a luta também é pedagógica, lembramos dez situações em que a liberdade de expressão, direito humano chave para qualquer democracia, foi violada desde o início do ano. Muitas outras foram praticadas, por agentes públicos e privados. Não nos esqueçamos de nenhuma.

1- Restrições e ameaças ao trabalho de jornalistas

Elas começaram este ano no primeiro dia de Bolsonaro à frente da Presidência da República. Na cobertura da posse, jornalistas ficaram confinados por cerca de sete horas, com acesso restrito à água, alimentação e banheiro. Depois disso, a violência contra a imprensa só fez escalar. Profissionais foram impedidos de participar ou foram agredidos em coletivas do Planalto. Em agosto, ao defender a exclusão de ilicitude no Código Penal, Bolsonaro declarou que se “o excesso jornalístico desse cadeia, todos vocês estariam presos”. O Presidente chama de “excesso jornalístico” ou de “fake news” toda e qualquer crítica feita ao seu governo. Em novembro, a Federação Nacional dos Jornalistas divulgou que já foram 111 ataques de Bolsonaro à imprensa este ano.

2- Extinção do Ministério da Cultura

Concretizada no dia 2 de janeiro, a extinção do MinC foi um dos primeiros atos do atual governo. Suas atribuições foram repassadas ao recém-criado Ministério da Cidadania, comprometendo a prioridade dos esforços públicos no setor da cultura. O MinC existia desde 1985, justamente quando o país retomou o rumo da democracia e reconheceu o papel da cultura para o fomento à diversidade e a ampliação da liberdade de expressão e da produção artística, bem como para o acesso à informação e ao conhecimento. Em novembro, a pasta da Cultura foi transferida para o Ministério do Turismo.

3- Censura e ameaça de privatização da EBC

Em meados de abril, uma nota assinada por trabalhadores da Empresa Brasil de Comunicação e pelos sindicatos dos Jornalistas e Radialistas do Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo informou que os veículos da EBC estavam proibidos de usar palavras como “golpe” e “ditadura” para se referir ao que aconteceu em 1964 em suas reportagens. No mesmo mês, a TV Brasil, canal público gerido pela EBC, teve sua programação fundida com a da TV NBr, destinada a transmitir atos do Poder Executivo. A medida afronta a Constituição Federal, que estabelece a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal de comunicação, e está sendo questionada em ação do MPF. Em outubro, uma imagem da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, foi censurada do programa “Antenize”, da TV Brasil. Em novembro, o programa Alto Falante, que falaria de Arnaldo Antunes, foi retirado inesperadamente da grade da TV. Ele exibiria um clipe da música de “O real existe”, que fala de milicianos. O Ministério Público Federal já solicitou ao Tribunal de Contas da União que investigue a EBC por censura. Ainda em novembro, funcionários da EBC repudiaram a inclusão da empresa no pacote de privatizações de Bolsonaro e Paulo Guedes, ministro da Economia. 

4- O racismo que estrutura a mídia brasileira

Em julho, no programa Alterosa Alerta, da TV Alterosa, afiliada do SBT em Minas Gerais, o apresentador Stanley Gusman afirmou: “Eu sei quem é o dono do Ibope. O nome do cara é Montenegro. Se ele fosse do bem, ele ia chamar Montebranco”. O caso, que repercutiu este ano, é apenas mais um exemplo do racismo estrutural no Brasil, que também atinge as comunicações. Ainda que por linguagem diferente, o comentário de Gusman se aproxima da publicidade do Ministério da Educação, veiculada em plataformas digitais em junho, na qual uma jovem negra passa a ter a pele branca após ganhar uma bolsa de estudos e conseguir se formar. A parte da jovem sem os estudos é negra, enquanto a mão segurando o diploma é branca. No último domingo (8), o apresentador e dono do SBT Silvio Santos protagonizou mais um caso de racismo na TV. No quadro “Quem Você Tira?”, o apresentador não reconheceu a vitória da cantora negra Jennyfer Oliver, escolhida como a melhor candidata por votação popular. Enquanto Jennyfer recebeu 84 votos, suas adversárias receberam 8, 5 e 3 votos, respectivamente. Silvio Santos não apenas decidiu dar o mesmo prêmio para todas as candidatas como aumentou o valor em dinheiro para a candidata que julgou ser “melhor e mais bonita”: uma mulher branca. 

5- Mudanças no Conselho Superior de Cinema

A transferência do Conselho Superior de Cinema à Casa Civil, por meio do Decreto 9.919, de 18 de julho de 2019, reduziu a representação da sociedade civil no órgão, aumentando o poder do governo sobre a atuação do colegiado e o risco de torná-lo um instrumento de patrulhamento ideológico e de censura da produção artística. Uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) foi movida pela Rede Sustentabilidade contra a medida. Em novembro, artistas, profissionais do setor audiovisual e organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes, participaram de audiência pública no STF para subsidiar os ministros em seu futuro julgamento da ADPF 614 e denunciar a censura no ambiente artístico

6- Cancelamento de edital de conteúdos com a temática LGBT

Em agosto, o Ministério da Cidadania publicou a Portaria 1.576/2019, cancelando um edital da Agência Nacional de Cinema (Ancine) voltado para produções de séries de temática relacionadas a vidas de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT) para exibição nas TVs públicas. O pretexto foi a necessidade de recompor os membros do comitê gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), mas as declarações de Bolsonaro comprovaram a decisão do governo em paralisar o financiamento público a produções audiovisuais sobre diversidade de gênero e sexual. À época, o Presidente afirmou: “É um dinheiro jogado fora. Não tem cabimento fazer um filme com esse tema”. Em ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, a Justiça Federal do Rio de Janeiro reconheceu o forte potencial discriminatório e lesivo a direitos fundamentais e ao interesse público da portaria, determinando que a União e a Ancine dessem continuidade ao edital.

7- Censura na Bienal do Livro do Rio

Em setembro, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus e prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, mandou recolher o HQ “Vingadores – a cruzada das crianças” da Bienal do Livro da cidade. A história em quadrinhos trazia cenas de um relacionamento homoafetivo entre heróis. A tentativa de censura levou à indignação e manifestações de artistas e defensores da liberdade de expressão e acabou gerando o efeito contrário: a obra se esgotou em questão de minutos na Bienal. Depois do anúncio de Crivella nas redes sociais, a Prefeitura do Rio mandou uma notificação extrajudicial para a Bienal pedindo, na verdade, que os livros fossem lacrados e viessem com aviso de conteúdo impróprio para crianças. À época, a organização do evento afirmou que não iria recolher nem embalar nenhum livro, já que não se tratada de conteúdo impróprio ou pornográfico. Acrescentou, ainda, que “dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser”.

8 – Censura a peças de teatro

Este ano, a Caixa Cultural cancelou, sem maiores explicações, pelo menos três peças teatrais. Em setembro, a peça infantil “Abrazo”, da companhia Clowns de Shakespeare, foi cancelada após estrear na Caixa Cultural do Recife. O espetáculo, baseado no “Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano, era centrado na vida de personagens proibidos de dar abraços. Já em Brasília, a peça “Gritos”, que tem uma travesti entre seus personagens, teve apresentação cancelada. A companhia Dos à Deux havia sido selecionada por edital para apresentar duas peças na capital. Em redes sociais, a equipe relatou ter sido pressionada e informada da necessidade de aprovação prévia do superintendente da instituição antes da encenação da peça. No Rio de Janeiro, o fim das tratativas com a peça “Lembro Todo Dia de Você”, que tem como protagonista um personagem homossexual soropositivo, também levantou suspeitas de censura. Além das peças, a Caixa Cultural também cancelou uma série de palestras para crianças e adolescentes sobre democracia, chamada “Aventuras do Pensamento”, e uma mostra sobre a cineasta Dorothy Arzner, sobre sexualidade. A Caixa Econômica Federal hoje é dirigida por Pedro Guimarães, membro da equipe de Bolsonaro desde o período de transição do governo.

9- Violação à privacidade dos cidadãos 

Uma das principais condições para o amplo exercício da liberdade de expressão é a existência de um ambiente em que a privacidade dos cidadãos e cidadãs seja respeitada.  Em outubro, entretanto, por meio de decreto, o governo federal criou o Cadastro Base do Cidadão, unificando dados pessoais de dezenas de serviços públicos, vinculando-os ao CPF. Além de dados biográficos como nome, data de nascimento, sexo e filiação, o cadastro incluirá atributos biométricos, como características da palma da mão, digitais, retina ou íris, formato da face, voz e maneira de andar. O Planalto alega que o objetivo é desburocratizar o fluxo de dados entre entes públicos, mas a medida tira o poder do cidadão sobre suas informações e vai na contramão da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, aprovada em 2018. No contexto de um Estado autoritário, o Cadastro Base poderá ser usado para iniciativas de vigilância do poder público e consequente ameaça à liberdade de expressão.

10- Ameaças à concessão da Rede Globo

Em novembro, em transmissão ao vivo na Internet, Bolsonaro reagiu violentamente à reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, que incluía seu nome entre os citados na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. O presidente ameaçou “não facilitar” a renovação da outorga da emissora, que vence em 2022. Quando o chefe do Executivo fala em ser rígido apenas com a renovação da concessão da TV Globo, algo que deveria valer para todas as empresas vira chantagem política. Ao fazê-lo, Bolsonaro admite que sabe que não há um processo adequado de acompanhamento e verificação das normas pelas concessionárias e, ao mesmo tempo, defende a aplicação da regulação de acordo com sua vontade particular, de acordo com seus interesses. Organizações como o Intervozes e Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) defendem há muito tempo mudanças nas regras para as concessões de radiodifusão, para que este seja um processo transparente, baseado na observação do interesse público, no fomento à pluralidade e diversidade de vozes na mídia. Qualquer outra coisa diferente disso, mesmo que seja apenas uma ameaça, será mais um episódio de censura em nosso país.


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