29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Direitos Humanos sob Bolsonaro: o pior balanço possível

Publicado em 11/12/2019 12:00 -

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"O pior balanço possível." É assim que Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão e uma das principais referências sobre direitos humanos no país, avaliou o andamento do governo Jair Bolsonaro.

Duprat foi vice-procuradora-geral da República, entre 2009 e 2013, e chefia a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão desde 2016. Atuou na defesa de direitos de populações tradicionais, movimentos sociais, trabalhadores rurais, população LGBTQ+ e contra propostas como o "Escola Sem Partido", batendo de frente com a linha adotada pela Presidência. Seu mandato no órgão da Procuradoria-Geral da República vai até maio de 2020, mas terminaria antes se dependesse do Palácio do Planalto.

"Quando o presidente da República diz que não vai demarcar uma área indígena, que compara quilombolas a arroba de boi, que sugere que fiscais podem ser punidos porque atuam na proteção do meio ambiente, nós temos um cenário que não é apenas de políticas que encolhem, mas de ataque aos direitos", afirma. "Estamos em uma situação um pouco 'fantasmática' – uma aparência de real com camadas assustadoras."

Mas também chama a sociedade à responsabilidade por conta do cenário em que estamos.

"A gente tem que pensar que a atuação da polícia, dessa maneira tão absurda, como aconteceu em Paraisópolis, como aconteceu com a morte da menina Ágatha [de 8 anos, morta do dia 20 de setembro, com um tiro dado por um policial militar quando voltava para casa com a mãe no Complexo do Alemão, no Rio], como aconteceu com morte do menino que ia para a escola com uniforme escolar [Marcos Vinícius, de 14 anos, morto no dia 20 de junho do ano passado, em ação que contou com as Forças Armadas, no Complexo da Maré, também no Rio], tem que contar com o endosso da população. De certa forma, o centro deve aplaudir isso tudo."

"Falamos muito do governo, mas temos um grande desafio enquanto sociedade de entendermos esse processo e decidirmos como nós vamos reagir a isso. Há também um papel grande de reconstrução dos laços sociais que estão esgarçados", avalia.

Ela também comenta sua substituição como representante do Ministério Público Federal no Conselho Nacional de Direitos Humanos pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. "Além da pouca elegância, porque eu nem sequer fui comunicada, soube por terceiros, isso passa a para a sociedade a ideia de que há uma disputa do que são os direitos humanos. E isso é muito sério, ainda mais para uma instituição como o MPF."

 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 71 anos no último dia 10, e este é seu primeiro aniversário sob o governo Jair Bolsonaro. Qual o balanço que você faz como Procuradora Federal dos Direitos Humanos?

O pior balanço possível. Acredito que além de algumas políticas que estão sendo ostensivamente desidratadas, temos um discurso que é muito perigoso. Quando o presidente da República diz que não vai demarcar uma área indígena, que compara quilombolas a arroba de boi, que sugere que fiscais podem ser punidos porque atuam na proteção do meio ambiente, nós temos um cenário que não é apenas de políticas que encolhem, mas de ataque aos direitos. Minha avaliação é bastante negativa. Estamos em uma situação um pouco "fantasmática" – uma aparência de real com camadas assustadoras.

Você avalia que os arroubos autoritários e antidemocráticos do governo têm sido contidos pelos frios e contrapesos dos outros poderes da República?

Mais ou menos. Alguma contenção, sim. Mas muita coisa escapa. Vivemos uma situação curiosa. Temos uma proposta de emenda constitucional que sugere que direitos sociais só sejam implementados com a garantia de equilíbrio fiscal intergeracional. Nós estamos, com isso, na contramão da Constituição Federal, pois isso é a negativa da implementação de direitos. E é uma proposta que tem trânsito, que circula. O próprio pacote que visa a liberação de armamentos… Isso tudo organiza uma sociedade a partir da ideia da morte como se fosse normal.

Nós temos um cenário de um discurso que estimula invasão, a baixa regulamentação, a baixa interdição de atos contrários a direitos. Nós temos uma política de desmoronamento das instituições que suportam políticas – se você for no interior do país, verá que há locais em que Funai, Ibama, ICMBio já não operam mais. Várias estruturas que poderiam conter alguma coisa já não existem. E a presença da Forca Nacional é episódica. Há camadas que sugerem alguma reação, mas, no fundo, são reações muito pouco convincentes.

Bolsonaro está propondo ao Congresso várias medidas com relação a operações de GLO [Garantia de Lei e da Ordem]. Propôs o excludente de ilicitude para agentes nessas operações. E propôs GLO para reintegrações de posse…

Tem pior. A PFDC fez uma nota sobre o excludente de ilicitude para GLO. Depois que ela foi enviada ao Congresso, descobrimos que havia um projeto de lei que altera o Código Penal Militar. Nele, o excludente de ilicitude é aplicado para todos os policiais militares, integrantes das Forças Armadas, de corpos de bombeiro, de maneira geral. A GLO de caráter excepcional, tem uma disciplina. O Código Penal Militar garantiria liberdade absoluta a policiais se puder se valer do excludente de ilicitude. Tudo isso é obviamente inconstitucional. Em algum momento, o Congresso vai ter que se dar conta que é impossível legislar sobre tudo. A democracia impõe limites, a democracia impõe freios inclusive ao próprio parlamento. Essa situação de todo mundo armado contra todo mundo, com uma política do medo, a chamada necropolítica que Focault chamava de tanatospolítica, é, na verdade, uma negação da democracia.

Vivemos hoje um governo de feições autoritárias?

Temos impactos muito sérios na democracia. Se você analisar a Constituição brasileira, verá que ela tem uma série de artigos que trata de participação social. Essa dimensão da democracia participativa praticamente acabou porque todos os espaços de construção coletiva de políticas públicas, como conselhos, comitês, conferências, acabaram ou estão minguando. E nós temos várias políticas que foram pensadas a partir da construção coletiva de conferências, como as relativas a cidades, idosos, criança e adolescente. Nada disso mais existe. Então, nós temos sim uma situação de uma dimensão da democracia que foi muito atingida.

Recentemente, o procurador-geral da República, Augusto Aras, destituiu você da cadeira de representantes do MPF no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) [que reúne instituições governamentais e da sociedade civil e foi criado em 1964, antes do golpe militar] e colocou como seu suplente um procurador com posições similares às de Bolsonaro. Como você viu essa mudança?

Pela lei que criou o CNDH, a representação é do procurador-geral da República. No entanto, desde o antigo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana [que deu origem ao CNDH], quem representava o procurador-geral da República nesse espaço é a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Pela primeira vez, nós temos uma ruptura dessa tradição. Além da pouca elegância, porque eu nem sequer fui comunicada, soube por terceiros, isso passa a para a sociedade a ideia de que há uma disputa do que são os direitos humanos. E isso é muito sério, ainda mais para uma instituição como o Ministério Público Federal.

Há uma parcela da população que acredita que direitos humanos se referem apenas a direitos da população encarcerada. Como é possível vencer a incompreensão sobre o tema?

Em momentos de crise, descobrimos que tudo isso fui muito mal encaminhado discursivamente. A ideia de que há uma caixinha para os direitos humanos e o resto do mundo para o direito penal, o direito econômico e o direito do trabalho é um equívoco. Direitos humanos é uma ideia que organiza (ou deveria organizar) a vida coletiva desde a Declaração Universal. A ideia de que todos nascemos iguais em direitos e obrigações chega muito tardiamente no Brasil, 40 anos depois da declaração. O primeiro documento que distribui direitos de uma maneira farta é a Constituição de 1988.

Em uma sociedade historicamente dominada por um segmento muito pequeno, você só constrói políticas públicas responsáveis com a participação daqueles que são historicamente excluídos. Você não compreende direito senão pela voz dos próprios movimentos. Direitos são processos de luta, de conquistas. Tudo isso a gente perdeu um pouco agora. Houve desmobilização dos conselhos, repressão contra movimentos sociais.

Isso ocorre em todo o mundo, mas muito fortemente na América. Não conseguimos defender direitos. A própria ideia de direitos – em uma sociedade que por centenas de anos conviveu com a escravidão e com exclusões – é vista como privilégio. Eu não sei dizer exatamente qual é a estratégia, mas sei que, em momento de crise, vemos claramente como ficamos muito aquém de fazer com que a sociedade entenda que direitos são um atributo das pessoas e não uma dádiva de alguém para alguém.

A morte dos nove jovens em Paraisópolis aconteceu há pouco mais de uma semana. Pouco depois, as execuções de dois caciques Guajajara, no Maranhão, somaram-se à morte de indígenas e sem-terra que acontecem pelo país. Polícias nas periferias das grandes cidades matam de forma aberta. Vivemos um momento em que caiu o pudor da violência?

Nós temos historicamente uma polícia que protege o centro com relação às periferias e uma sociedade historicamente construída com a noção de que a periferia é o local do perigo. Isso tudo é meio farsesco, até por que quem movimenta economicamente o tráfico de drogas não está na periferia.

A intervenção federal no Rio de Janeiro [quando o ex-presidente Michel Temer transferiu o comando da segurança pública do Estado para as Forças Armadas, entre fevereiro e dezembro de 2018] foi o primeiro passo para a ostensividade desse olhar. Era muito impressionante. Se você andasse pelo Rio, você via carros de polícia protegendo Copacabana, Ipanema, muito ostensivamente. Enquanto isso, todo mundo atirando, invadindo domicílios na favela, entrando indiscriminadamente e matando. Todo esse cenário faz parte dessa sociedade adoecida. E uma sociedade do medo vai se organizar com o recurso à violência estatal.

A gente tem que pensar que a atuação da polícia, dessa maneira tão absurda, como aconteceu em Paraisópolis, como aconteceu com a morte da menina Ágatha [de 8 anos, morta do dia 20 de setembro, com um tiro dado por um policial militar quando voltava para casa com a mãe no Complexo do Alemão, no Rio], como aconteceu com morte do menino que ia para a escola com uniforme escolar [Marcos Vinícius, de 14 anos, morto no dia 20 de junho do ano passado, em ação que contou com as Forças Armadas, no Complexo da Maré, também no Rio], tem que contar com o endosso da população. De certa forma, o centro deve aplaudir isso tudo.

Falamos muito do governo, mas temos um grande desafio enquanto sociedade de entendermos esse processo e decidirmos como nós vamos reagir a isso. Há também um papel grande de reconstrução dos laços sociais que estão esgarçados.


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