28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Os números que Damares tenta esconder

Publicado em 28/11/2019 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Coletiva de imprensa de mentira e “salinhas cor de rosa”: foi entre uma mal-ajambrada jogada de marketing e a reiteração de estereótipos de gênero que o governo federal lançou sua campanha de prevenção da violência contra a mulher. No centro dos acontecimentos, a ministra Damares Alves.

No primeiro ato, ela convocou jornalistas e ficou em silêncio enquanto os profissionais lhe faziam perguntas. Depois, explicou: “Eu fiquei em silêncio para que vocês sintam como é difícil uma mulher ficar em silêncio.” No segundo ato, que teve como cenário o Palácio do Planalto, e contou com a participação do presidente Jair Bolsonaro, que já classificou a categorização de feminicídio como “mimimi”, a ministra deu, finalmente, detalhes da campanha. De acordo com ela, a partir de janeiro todas a delegacias do país terão uma sala de atendimento especializado para mulheres – “nem que seja uma salinha pequenininha”. “Detalhe: eu vou pintar as salinhas de cor de rosa. Yes!”, comemorou em inglês.

A campanha publicitária do governo custou R$ 11 milhões. A peça é estrelada pela dupla sertaneja Simone e Simaria e será veiculada nas emissoras de TV, rádio e redes sociais. O propósito é incentivar as mulheres a não se calarem em caso de agressões, denunciando por meio do número 180.

Com muito mais sobriedade e abundância de informações estatísticas, foi também lançada ontem, no Rio, a nova plataforma do Instituto Igarapé. Chama-se EVA (Evidências sobre Violências e Alternativas para Mulheres e Meninas) e pretende ser um banco de dados sobre violência contra as mulheres não só no Brasil, mas também no México e na Colômbia. Juntos, os três países concentram 65% dos feminicídios da América Latina, considerados os números absolutos. O Brasil concentra 37% desses assassinatos. 

De acordo com o think tank, ao menos 1,2 milhão de mulheres foram atendidas no sistema de saúde brasileiro vítimas de violência entre 2010 e 2017. E o agressor é, em 90% dos casos, uma pessoa próxima da vítima — 36% das vezes, o próprio parceiro. Nesse mesmo período, a notificação de violência contra mulheres negras aumentou impressionantes 409%. No caso das mulheres brancas, o aumento foi de 297%. E as mulheres são a maioria das vítimas de todos os tipos de violência: física (73%), patrimonial (78%), psicológica (83%) e sexual (88%). Em 2017, a física foi a principal forma de violência registrada no sistema de saúde contra mulheres, com 59% das ocorrências, seguida da psicológica (26%), sexual (14%) e patrimonial (1%).

O Instituto Igarapé denunciou também a falta de dados oficiais em alguns estados brasileiros. Piauí e Goiás, de acordo com a entidade, não disponibilizam qualquer informação, seja sobre notificações de atendimentos de saúde às vítimas da violência, seja das ocorrências registradas nas secretarias de Segurança Pública. Já o Amazonas enviou dados apenas da capital, Manaus. Os dados sobre etnia, por exemplo, foram liberados por apenas quatro estados.

No último dia 25 foi Dia Internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres e entramos no período de 16 dias de ativismo contra a violência de gênero, uma campanha internacional que se encerra em 10 de dezembro. Os últimos dados da ONU sobre isso são péssimos: um terço de todas as mulheres e meninas do mundo sofrem alguma violência física ou sexual durante a vida; metade das mulheres assassinadas foram mortas por seus parceiros ou outros familiares; a violência contra as mulheres é uma causa comum de morte e gera mais problemas de saúde do que acidentes de trânsito e malária combinados.

“O fenômeno do feminicídio é tão entranhado no patriarcado colonial que adotamos um neologismo para nomear o naturalizado pela honra masculina: feminicídio é quando uma mulher morre simplesmente porque é mulher. Mulheres e meninas morrem nas relações familiares, afetivas ou de amizade”, afirma Debora Diniz antropóloga e pesquisadora da Universidade de Brown.

“A ministra ignorou a seriedade do cargo e, além da vulgaridade da cena, demonstrou o quanto desconhece a força do feminismo na luta para o fim da violência contra as mulheres. Se o feminicídio mata mulheres e a violência silencia tantas outras, o patriarcado não emudece todas nós. É falso supor que se uma mulher perde a voz, todas perdem. O correto é dizer que se uma mulher perde a voz, todas nós falaremos ainda mais. Pois, como dizem as argentinas, é ‘nem uma a menos’”, afirmou Giselle Carino, cientista política e diretora da IPPF/WHR .

Como ministra de Estado, o dever de Damares é falar mais e com a firmeza daquela que representa o poder das políticas de públicas que oferecem proteção às mulheres que sofrem violência. É seu dever colonizar este país com mensagens de segurança de que nenhum agressor será impune, que nenhuma mulher será abandonada. “Mas, infelizmente, ela emudece porque é incapaz de nos oferecer segurança. Ela mesma é uma mulher subjugada ao jogo masculino do poder, às artimanhas de um uso perverso da representatividade de gênero na política que transforma a agenda igualitarista em uma armadilha contra a próprias mulheres”, disse Diniz.

“A ministra Damares representou o silêncio de algumas vítimas exatamente porque esse é seu lugar na política — o da pastora que faz ruído sobre azul e rosa, que enxerga Jesus na goiabeira, mas que parece ser incapaz de entender que contra o patriarcado não há teatro, mas luta”, complementa Carino.

A ministra Damares não gostou da fala de Diniz e Carino. Em resposta, fez um post no Instagram convidando “dona Debora” para atividades comunitárias de ajuda às mulheres vítimas de violência.

Na réplica, Diniz lembrou que é uma das vítimas de violência sob proteção da pasta de Damares no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos em risco. “Se tivesse lido meus artigos, saberia que acredito mais na força das políticas públicas do Estado que no voluntarismo da ajuda comunitária. Por fim, jamais duvidaria de como me posiciono sobre a questão da violência contra a mulher—é uma expressão perversa do patriarcado, em que mulheres e meninas são espoliadas como propriedade do mando masculino. Saberia, portanto, que nossas compreensões sobre a realidade da opressão vivida pelas mulheres não nos colocariam lado a lado em trabalhos comunitários. Não acredito que a fé salve as mulheres do feminicídio, mas somente transformações profundas nas relações de gênero, uma palavra maldita ao vocabulário bolsonarista”.

A violência contra as mulheres é perversa e persistente à sociedade brasileira. A reversão desse quadro injusto não virá por performances de palco em cenas públicas, pois o tema pede seriedade. É preciso educação sexual e de gênero nas escolas, uma nova dificuldade para Ministra Damares. Será menos ainda enfrentada com escolas militares ou armamento da população. Uma arma na casa é um risco permanente de feminicídio. Por que Ministra Damares se silencia sobre esse pacote patriarcal do governo bolsonarista às mulheres? Porque sua própria presença neste jogo político é uma expressão da perversão patriarcal da demanda feminista de mulheres na política. Sua presença é um jogo de silêncio à exigência de que a política seja um espaço para as mulheres, mas também de ousadia do mando masculino: uma mulher que se apresenta no modelo de submissão ao patriarca.

Reforçando

Apesar dos 13 anos da existência da Lei Maria da Penha, é crescente o número de mulheres assassinadas no País. Segundo o Atlas da Violência de 2019, 4.963 brasileiras foram mortas em 2017, considerado o maior registro em dez anos.

A taxa de assassinato de mulheres negras cresceu quase 30%, enquanto a de mulheres não negras subiu 4,5%. Entre 2012 e 2017, aumentou 28,7% o número de assassinatos de mulheres na própria residência por arma de fogo.

Perdem as mulheres

Deputados e senadores derrubaram o veto de Bolsonaro ao projeto de lei de Renata Abreu (Podemos-SP) que obriga profissionais de saúde a notificar à polícia, em no máximo 24 horas, quando houver indícios e casos explícitos de violência contra a mulher nos atendimentos. Agora, portanto, o texto vai virar lei.

Como a fama de Bolsonaro no que se refere à defesa dos direitos das mulheres não é exatamente boa, o veto (que aconteceu em outubro) foi em um primeiro momento interpretado por muita gente como uma afronta. Mas logo em seguida começou a ficar claro por que o PL era mesmo ruim (relembre aqui e aqui).

Ainda em setembro, a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras havia publicado uma nota reivindicando o veto presidencial e detalhando como a media podia diminuir as chances de as mulheres contarem sobre a situação de violência ao profissional de saúde, e mesmo fazer com que elas deixassem de procurar atendimento. Para completar, a notificação compulsória expõe a mulher a maior risco de retaliação por parte do agressor.

Não se trata de achismo, mas de uma posição baseada numa série de artigos científicos sobre o tema. A própria OMS recomenda contra o uso de políticas de notificação obrigatória à polícia nessas situações, sobretudo às autoridades policiais. A regra brasileira atual é que os casos sejam notificados imediatamente apenas às autoridades de saúde, para agilizar a assistência e orientar a organização dos serviços. Ao mesmo tempo, o profissional de saúde deve orientar a mulher a procurar a Delegacia de Mulheres, o que é bem diferente de fazer uma notificação à sua revelia.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *