29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Abismo social separa negros e brancos no Brasil desde o parto

Publicado em 22/11/2019 12:00 -

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Cento e trinta e um anos se passaram desde a abolição da escravidão, mas o Brasil ainda está longe de ser uma democracia em termos raciais. As marcas da exploração que durou mais de três séculos e a falta de políticas públicas de reparação em número suficiente estão refletidas nos baixos índices de bem-estar da maioria da população composta por pretos e pardos (uma fatia que corresponde a 55,8% dos brasileiros), se comparada à média da população e aos brancos. Ainda assim, o país que nas últimas décadas viu irromper como nunca o debate sobre o racismo e suas implicações, agora convive com a ultradireita no poder. Integrantes do partido do presidente Jair Bolsonaro usam o discurso contra a reparação das minorias, e dos negros em especial, e a negação das estatísticas e dos efeitos do preconceito como uma ruidosa bandeira política.

Nesta terça-feira, véspera do Dia da Consciência Negra, o deputado do PSL Delegado Tadeu (SP), decidiu rasgar um cartaz que mostrava a imagem de um homem negro ferido por uma bala de um policial em uma exposição na Câmara. Tadeu disse que a ilustração ofendia os policiais —as vítimas da polícia brasileira são homens (99%), negros (75%), jovens (78%), segundo a Anuário Brasileiro de Segurança Pública—. Enquanto a oposição pedia que Tadeu fosse levado ao Conselho de Ética da Casa por racismo, seu colega de partido, Daniel Silveira (PSL-RJ), subiu à tribuna para dizer que os negros morriam mais nas mãos dos agentes porque são "maioria no tráfico". "Não venha atribuir à Polícia Militar do Rio de Janeiro as mortes porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado." Racismo é crime no Brasil, inafiançável e imprescritível.

Abaixo, algumas das estatísticas que desconstroem a ideia de que não há custos específicos de ser negro no país.

Das primeiras horas de vida à morte violenta

O Brasil tem hoje a maioria da população (55,8%) composta por pretos e pardos, mas é justamente esse grupo que tem a maior taxa de analfabetismo, os menores salários e sofre mais com a violência e o desemprego. A desigualdade em relação à população branca começa desde o nascimento, já que a mortalidade entre crianças negras e pardas brasileiras é bastante superior à da população branca da mesma idade. Em 2017, 50,7% das crianças até 5 anos que morreram por causas evitáveis eram pardas e pretas, enquanto 39,9% eram brancas, segundo dados do Ministério da Saúde.

A disparidade educacional no país também tem cor. Apesar de uma série de indicadores educacionais da população preta ou parda terem melhorado gradativamente nos últimos anos, reflexo de políticas públicas afirmativas como o sistema de cotas, a desvantagem desta população em relação à branca continua evidente. Ainda que o número de analfabetos tenha registrado uma queda entre 2016 e 2018, a taxa de analfabetismo das pessoas pretas ou pardas foi de 9,1% no Brasil, quase três vezes maior que a de brancos (3,9%), segundo dados do IBGE.

Concluir o ensino médio ainda é uma realidade distante para muitos brasileiros, mas o desafio  é maior para a população parda e preta. A taxa de conclusão do ensino médio (proporção de pessoas de 20 a 22 anos que concluíram esse nível) deste grupo era de 61,8%, enquanto a dos dos brancos era de 76,8%.

O abandono escolar também reflete a disparidade entre os dois grupos. A proporção de pessoas pretas ou pardas de 18 a 24 anos de idade com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam escola caiu ligeiramente de 30,8% para 28,8%, porém a proporção de pessoas brancas na mesma situação, em 2018, era bem menor, de 17,4%.

Na semana passada, o IBGE  informou que, pela primeira vez, os pretos ou pardos passaram a ser 50,3% dos estudantes de ensino superior da rede pública, no entanto, como formam a maioria da população, eles continuam sub-representados. Os dados do instituto mostraram também que, entre a população preta ou parda de 18 a 24 anos que estudava, o percentual cursando ensino superior aumentou de 2016 (50,5%) para 2018 (55,6%), mas, novamente, ainda ficou abaixo do percentual de brancos da mesma faixa etária (78,8%).

Pretos e pardos são maioria na fila do desemprego

A desigualdade educacional acaba se refletindo também nas disparidades do mercado de trabalho e de rendimentos. Pretos ou pardos somavam 64,2% da população desocupada e 66,1% da população subutilizada. O rendimento médio mensal das pessoas brancas ocupadas foi de 2.796 reais, no ano passado, 73,9% superior ao da população preta ou parda que,em média, obteve 1.608 reais.

No caso das mulheres negras o abismo da desigualdade é ainda maior. No ano passado, elas receberam, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%), que ocupam o topo da escala de remuneração no país.

Nem mesmo quando o nível de instrução é igual entre pretos, pardos e brancos a disparidade desaparece. Os brancos com nível superior completo ganhavam, por hora, 45% a mais do que os pretos ou pardos com o mesma escolaridade. A desigualdade também é enorme quando o tema é a distribuição de cargos gerenciais, que demandam maior qualificação: somente 29,9% deles foram exercidos por pessoas pretas ou pardas no ano passado.

Enquanto dois terços dos negros estão entre os 10% com menores rendimentos na população, nem um terço deles faz parte do grupo dos 10% com maiores rendimentos. Segundo pesquisa do IBGE, a proporção de pretos ou pardos com rendimento inferior às linhas de pobreza, propostas pelo Banco Mundial, foi mais que o dobro da proporção de brancos.

Violência atinge mais pardos e negros

A diferença racial também não escapa das desoladoras estatísticas sobre a violência no Brasil. Em todos os grupos etários, a taxa de homicídios dos pretos ou pardos superou a dos brancos. Em 2017, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca. A série histórica revela ainda que, enquanto a taxa média manteve-se estável na população branca entre 2012 e 2017, ela aumentou na população preta ou parda nesse mesmo período, passando de 37,2 para 43,4 homicídios por 100 mil habitantes desse grupo populacional.

As diferenças são ainda mais acentuadas na população jovem. A taxa de homicídios chega a 98,5 por 100 mil habitantes entre pessoas pretas ou pardas de 15 a 29 anos. Entre jovens brancos na mesma faixa etária, a taxa de homicídios é de 34 por 100 mil habitantes. Os números ainda mostram que estudantes pretos ou pardos do 9° ano do ensino fundamental vivenciavam mais experiências violentas do que os brancos. Frequentar escolas situadas em áreas de risco de violência, ter sido agredido por algum adulto da família, envolvimento em briga com uso de arma de fogo ou de arma branca – todas essas variáveis estavam presentes mais intensamente no dia a dia de pretos ou pardos.

A falta de vozes negras na política

A maioria da população brasileira (55,8%) é composta por pretos (9,3%) e pardos (46,5%), segundo o IBGE. Mas isso não se reflete na política. No Congresso, que deveria espelhar a verdadeira cara do Brasil, pretos e pardos representam uma minoria.

Na Câmara, dos 513 deputados federais, 20 se declaram pretos, e 102, pardos, somando 24% do total. No Senado, três se dizem pretos, e 13, pardos, o que representa 20% do 81 senadores, segundo um levantamento do jornal Folha de S. Paulo.

"Ainda estamos [em termos de representação política de pretos e pardos] muito aquém da proporção da população de 55%, e também não tem a representatividade substantiva em relação às pautas da população negra, por falta de acesso aos postos de comando dentro do Congresso", diz Thiago Amparo, professor da FGV Direito de São Paulo.

Para Amparo, quatro pautas essenciais para a população negra precisam ser discutidas urgentemente: a endêmica violência policial; o encarceramento em massa por drogas; ações afirmativas visando o mercado de trabalho, como incentivos para que as empresas contratem negros; e uma melhor inclusão, na grade escolar, de conteúdo como história da África e da escravidão. Mas falta representação negra para apoiar tais pautas.

"O Brasil tem, principalmente desde a década de 80, vários movimentos negros, como o Movimento Negro Unificado (MNU) e a Coalizão Negra por Direitos", diz Amparo. "Tem um processo que ainda está caminhando lentamente de reconhecer a identidade racial como uma categoria política importante. É necessário termos representantes negros falando sobre a negritude, e não brancos adotando a pauta da população negra." Para o jurista, falta um "partido negro".

"Somos o segundo país em população negra do mundo, mas ela está sub-representada. É bem preocupante", diz a historiadora Anna Karla da Silva Pereira. Cofundadora do partido Frente Favela Brasil, há três anos ela lidera o processo de registro do "primeiro partido negro do Brasil" junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

"A gente não tem o poderio político e o recurso financeiro que as oligarquias têm no Brasil. E isso também é uma ferramenta para nos manter fora dos espaços políticos", diz Pereira.

Ela estima que a Frente Favela Brasil gastará entre 2 milhões e 3 milhões de reais para concluir o registro. Ou seja, juntar e validar as assinaturas nos cartórios e pagar os advogados que acompanham os trâmites legais junto ao TSE. As vaquinhas virtuais ainda não conseguiram levantar esse montante.

Até agora, o partido juntou cerca de 190 mil assinaturas de eleitores. Falta, portanto, muito para chegar às quase 492 mil assinaturas necessárias, a serem coletadas em pelo menos nove estados. Eles já perderam muitas assinaturas por não terem seguido à risca o processo burocrático, conta Pereira. "Não é a toa que a gente é sub-representado na política. Todo o processo de construção e de criação do próprio partido é excludente", diz.

Marielle como referência

Mas há sinais de que o movimento negro pode ganhar espaço, diz Pereira, principalmente a partir da figura de Marielle Franco, vereadora negra assassinada em março de 2018 no Rio de Janeiro.

"Ela é uma referência para todas nós [mulheres negras], sem dúvida. Mas muito mais pelo enfrentamento e pelas pautas que ela colocava do que pela morte. A vida dela tem muito a nos ensinar", afirma Pereira.

Marielle se transformou em símbolo da luta de mulheres negras no Brasil. "Essa visibilidade da morte da Marielle tornou mais forte a discussão sobre como somos tratadas nesses espaços. Pois quando temos uma mulher negra que destoa de todo o sistema, ela é assassinada."

A "onda Marielle" levou, nas eleições de 2018, quatro mulheres negras do Psol, partido de Marielle, a cargos representativos. Dani Monteiro, Mônica Francisco e Renata Souza hoje representam a população negra na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), enquanto Talíria Petrone representa o Rio na Câmara dos Deputados em Brasília.

Para Pereira, a morte de Marielle teve um impacto eleitoral local devido ao foco da mídia no Rio de Janeiro. "Se isso tivesse acontecido no interior do Maranhão, talvez não tivesse tido impacto algum."

"Não temos uma bancada de negros"

Para o empreendedor e ativista negro Celso Athayde, não basta apenas eleger representantes negros. "Precisamos ver o que é representação negra e o que é apenas negro no espaço de poder. Fisicamente mais negro deve ser o Hélio Negão, mas ele não se posiciona como representante negro. O que é legítimo."

Athayde se refere a Hélio Fernando Barbosa Lopes (PSL-RJ), deputado federal mais votado no Rio de Janeiro e conhecido como "sombra de Bolsonaro" por estar sempre ao lado, ou, melhor dizendo, atrás do presidente.

"Temos, também, a [ex-governadora] Benedita da Silva, o [senador] Paulo Paim e o [deputado federal] Orlando Silva. Mas não temos uma bancada de negros. Estes três se reconhecem como negros, mas, ao contrário dos evangélicos, eles não se juntam para defender uma pauta, uma causa, um projeto", diz. Athayde.

"Assim, eles não são, necessariamente, representações negras. São apenas negros que estão disputando a política. E são automaticamente engolidos pelos membros dos seus partidos, que normalmente são brancos."

"As estruturas são muito embranquecidas"

A jornalista e ativista negra Flávia Oliveira concorda. "Falta unidade ao grupo. No Brasil, identidade racial é uma coisa relativamente nova, tem talvez uma década, e vem muito numa esteira de um aumento de escolaridade e de consciência racial, de uma percepção mais intelectual do significado e do dano que a desigualdade causa."

Comentarista da GloboNews e colunista do jornal O Globo, Oliveira ressalta as raízes históricas da pouca representação. "Um país forjado na escravidão como o Brasil foi muito eficiente em tirar dos negros a autoestima e a identidade. Desconstruir isso é um caminho longo, sem atalho."

As estruturas partidárias não facilitam as coisas nem para os negros nem para as mulheres, diz a jornalista. "As estruturas são muito embranquecidas e masculinas, e os partidos da direita e da esquerda são controlados por pessoas brancas. É preciso haver um redesenho das estruturas partidárias e uma repartição mais efetiva dos recursos."

Ela vê, no entanto, sinais positivos, como os vários pré-candidatos negros para as eleições municipais em Salvador. "Aos poucos, a gente está avançando."


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