18/04/2024 - Edição 540

Brasil

Quatro anos depois da lama

Publicado em 07/11/2019 12:00 -

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Nesta semana completou-se quatro anos que o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, derramou mais de 30 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos, matou 19 pessoas, destruiu fauna e flora, afetou 39 municípios e varreu do mapa as comunidades de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira. Na semana passada, representantes dos atingidos se reuniram na sede do MPF com gestores públicos e reclamaram da falta de transparência na divulgação dos estudos epidemiológicos: os resultados até hoje não foram apresentados à população. Há dois em jogo: um deles elaborado pela empresa Ambios e outro realizado pela Tecnohydro, ambos nos municípios de Mariana e Barra Longa.

Mas a Agência Pública teve acesso a um deles – o da Ambios – e revelou a alarmante conclusão: a poeira das casas dos dois municípios está contaminada com metais pesados, assim como o solo superficial dessas localidades. As cidades foram classificadas como “Local de Categoria A: Perigo Urgente para a Saúde Pública”. Há presença de metais como cádmio (cancerígeno), níquel, zinco e cobre acima dos limites de segurança. E a água, principalmente de captação subterrânea, ainda pode vir a ser contaminada no futuro. Os moradores não sabiam, mas a Fundação Renova (criada para lidar com os impactos do desastre) e governo de Minas, sim: eles receberam os resultados em março e maio, respectivamente.

Enquanto a vida dos moradores segue afetada, no fim de outubro a Samarco obteve autorização para voltar a operar em Mariana por dez anos. A jornalista Cristina Serra chama atenção para a composição da Câmara de Atividades Minerárias, que tomou a decisão: dos 12 conselheiros, quatro são representantes do governo estadual, três do federal e outros três do setor empresarial/minerador. As duas vagas restantes são do Crea-MG e de uma ONG, o Fórum Nacional da Sociedade Civil na Gestão de Bacias Hidrográficas. Só este último votou contra, apresentando um parecer que apontava inconsistências no processo.

Até hoje, nenhum diretor da Samarco – empresa da brasileira Vale e da anglo-americana BHP – foi preso ou condenado. As acusações por homicídio foram anuladas e, segundo o Estado de Minas, ainda restam apenas algumas denúncias por inundação qualificada, deslizamento de terra e crime ambiental. A Fundação Renova entregou 1,8 bilhão de reais em indenizações e ajuda financeira para 320 mil pessoas – mas o MP de Minas avalia que houve 700 mil atingidos. Em Mariana, só 151 das 825 famílias registradas foram indenizadas

Para não esquecer: “A gente desceu em Paracatu, que ainda não tinha sido atingida. Começamos a sobrevoar o local e vimos que as pessoas estavam acenando e sorrindo pra gente. Elas não tinham noção do que havia acontecido, que a barragem tinha rompido. Nem sabiam que tinha lama. Elas acenavam e sorriam como se estivessem vendo alguma coisa diferente. Ali, a gente decidiu descer, mesmo com o risco de ser atingido pela lama, que vinha destruindo tudo. Descemos e avisamos aquelas pessoas que estavam lá. Fizemos com que todas as pessoas fossem para o alto do cemitério”. O relato é do bombeiro Leonard Farah, chefe de equipe de resgate, no Nexo. Ele acabou de lançar o livro “Além da lama”, e um trecho está disponível no Intercept.

A espera por reparação quatro anos após a tragédia de Mariana

A resposta para as feridas na pele só chegaram para Eliane Balke, pescadora de São Mateus, Espírito Santo, quase quatro anos depois dos primeiros sintomas. Um exame apontou a presença elevada de arsênio em seu organismo  –substância que, além de feridas, pode provocar danos a órgãos vitais, câncer e pode matar.

Balke, filha e neta de pescadores, está entre as 5 mil famílias somente do município de São Mateus atingidas pelos rejeitos que vazaram da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015. O rompimento da estrutura da mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, destruiu povoados e contaminou o rio Doce, em Minas Gerais, até chegar ao mar, no Espírito Santo. Dezenove pessoas morreram na tragédia.

Balke fez parte do grupo de 300 voluntários que participaram de um estudo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP). Exames detectaram arsênio em 298 deles, 79 apresentaram taxas elevadas de níquel, e 14, de manganês, segundo documento entregue aos participantes pelos pesquisadores. As análises foram conduzidas pelos professores Ana Paulelli e Fernando Barbosa.

A provável fonte de contaminação está na lama, que comprometeu o manguezal de onde Balke tirava 25 dúzias de caranguejo por dia, além de mariscos e peixes.

"Continuei pescando até o fim de 2016, um ano depois de os rejeitos terem chegado aqui", conta Balke. "Para nós, das comunidades tradicionais, os impactos estão na água, na saúde, no trabalho, na mudança do modo de vida e no meio ambiente."

A 170 quilômetros dali, na Terra Indígena Caieiras Velha 2, em Aracruz (ES), as reclamações são parecidas. "Os peixes foram embora, e temos medo de comer quando conseguimos pescar", disse à DW Brasil o cacique Carai Iperu. "Tiraram nossa liberdade", comenta sobre o receio de pescar no rio Piraquê-Açu.

Iperu afirma que a Fundação Renova – constituída em março de 2016 e responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão – tentou omitir resultados de coletas de peixes feitas na área.

"Uma empresa veio aqui, fez a pesquisa, nós acompanhamos tudo. Tentaram esconder da gente. Mas os pesquisadores falaram que tinha muito chumbo e mercúrio no robalo e na tainha", diz o cacique.

Contaminação e estudo vazado

Questionada sobre a denúncia feita pelo cacique, a Fundação Renova respondeu que a pesca na área costeira da foz do rio Doce, até 20 metros de profundidade, está proibida entre Barra do Riacho (Aracruz) e Degredo/Ipiranguinha (Linhares). Porém, a Terra Indígena Caieiras Velha 2 não está dentro dessa zona e, portanto, a pesca está liberada na área.

O defensor público Rafael Portella acompanha o cenário no Espírito Santo desde a tragédia de Mariana. "Não se pode falar que o resultado seja positivo quatro anos depois", avalia. "Temos mais de 100 mil pessoas cadastradas na bacia do rio Doce como atingidas aguardando um resultado. Menos de 10% foram indenizadas, e uma fatia menor de pessoas está recebendo auxílio financeiro."

A lista de problemas de saúde dos atingidos cresce. "São numerosos casos de transtornos mentais, problemas dermatológicos, alegações de aumento da incidência de câncer, doenças transmitidas por mosquitos, problemas de estômago", relata Portella. "As mulheres são mais atingidas em vários aspectos."

Segundo a Agência Pública, um estudo de avaliação de risco à saúde humana encomendado pela Fundação Renova identificou concentrações de cádmio, níquel, zinco e cobre acima dos limites de segurança na poeira coletada em casas impactadas em Mariana e Barra Longa, Minas Gerais.

À DW Brasil, a Renova confirmou que contratou a análise, mas não reconheceu as conclusões do estudo. "É necessário discutir, junto ao Poder Público, os resultados encontrados e o aprofundamento dos mesmos para definição de eventuais ações nas áreas de saúde e do meio ambiente", informou por meio de nota.

"A situação está pior"

Passados quatro anos, a situação não está melhor do que à época da tragédia, avalia André Sperling, promotor do Ministério Público Estadual de Minas Gerais. "Só anda piorando", diz.

Como um dos exemplos dessa piora ele aponta a falta de contratação de assessorias técnicas para apoiar os atingidos. Um acordo entre autoridades e a Fundação Renova previa que quem foi impactado pelo desastre tem direito a uma espécie de consultoria independente para avaliar os danos e, portanto, ajudar a calcular a indenização a ser paga pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton.

"A gente não vê uma perspectiva, porque as empresas insistem em negar os direitos. Elas dizem que as assessorias técnicas só atrapalham", afirma Sperling. Dos 21 territórios atingidos, apenas três contam com as assessorias técnicas até agora.

A Samarco, por outro lado, recebeu luz verde para voltar a funcionar. Com dez votos a favor e um contrário, a Câmara de Atividades Minerárias (CMI) do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) concedeu, no fim de outubro, uma licença que permite que a mineradora volte a operar em Mariana no fim de 2020.

"É um absurdo conceder a licença a uma empresa que não cumpriu seus compromissos diante do desastre", opina Andréa Zhouri, coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O resultado da votação, segundo a pesquisadora, demonstra que "as instituições brasileiras se encontram vulneráveis às pressões e interesses das empresas mineradoras".

Luzia Queiróz, que teve a casa destruída pela lama em Paracatu, distrito de Mariana, não se conforma. "Até agora, a gente não tem nada", diz sobre a reconstrução do vilarejo destruído. Por enquanto, "só há movimentação de terra", afirma sobre o início das obras.

"Nas reuniões, a gente ouvia da Renova que dinheiro não era o problema, então, por que a demora? A empresa volta a funcionar, e a gente tem que esperar?", questiona Queiróz. 

O moradores do antigo Bento Rodrigues, distrito mais atingido em Mariana, devem se mudar para o reassentamento em julho de 2020. Já o novo Paracatu deve ficar pronto somente em julho de 2021.

Queiróz protesta: "Se a lama da Samarco destruiu tudo num único dia, 5 de novembro de 2015, todos os moradores atingidos têm que voltar para a casa nova também no mesmo dia", argumenta.

Vale sabia que barragem em Brumadinho operava com problemas antes do desastre

O Huffpost também trouxe uma revelação alarmante sobre os últimos desastres ambientais causados por barragens no país:  a mineradora Vale detectou anomalias em sua barragem de Brumadinho (MG) antes do rompimento da estrutura em janeiro, mas não reportou à Agência Nacional de Mineração (ANM), o que impediu a tomada de medidas cautelares que poderiam ter evitado o desastre.

O colapso da barragem com mais de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro, em 25 de janeiro, deixou mais de 250 mortos, além de ter atingido comunidades, mata e rios da região.

Em parecer técnico de 194 páginas, a ANM apontou evidências que podem ter levado ao rompimento e mostrou inconsistências entre o que foi oficialmente relatado à agência via sistema e o que os técnicos da própria Vale apontaram em documentos de vistoria de campo e, posteriormente, no sistema da empresa.

“Algumas informações fornecidas pela empresa Vale à ANM não condizem com as que constam nos documentos internos da mineradora. Se a ANM tivesse sido informada corretamente, poderia ter tomado medidas cautelares e cobrado ações emergenciais da empresa, o que poderia evitar o desastre”, afirmou a reguladora em comunicado à imprensa.

Dentre as inconsistências, a ANM apontou que a instalação em junho de 2018 pela Vale de Drenos Horizontais Profundos (DHPs), utilizados para controlar o nível de água da estrutura, resultou em algumas anomalias que não foram devidamente reportadas.

Em um dos DHPs, houve um problema de “percolação” que foi relatado por técnico da Vale em campo como sendo de nível 6. Já no sistema da ANM, isso foi reportado primeiramente como problema de nível 0 e, 15 dias depois, nível 3.

No entanto, técnicos da ANM avaliaram posteriormente que a anomalia deveria ter sido reportada como nível 10, o que iria elevar automaticamente da categoria de risco da estrutura, que seria priorizada em inspeção, além de disparar outros cuidados.

A agência apontou também que, em 10 de janeiro, os níveis de dois piezômetros subiram e entraram em nível de emergência. O aumento da pressão dos piezômetros compromete a estabilidade da barragem, mas a ANM disse que não foi informada sobre isso pela Vale.

Com base no relatório, a ANM afirmou que enviou 24 autuações à Vale na sexta-feira “e encaminhará o documento à Polícia Federal, Controladoria Geral da União, Tribunal de Contas da União e Ministério Público Federal”.

Em nota, a Vale informou que ainda irá analisar a íntegra do relatório da ANM, mas sustentou que “todas as informações disponíveis sobre o histórico do estado de conservação da barragem foram fornecidas às autoridades que apuram o caso”.

A empresa disse ainda que “tinha uma equipe de geotécnicos composta por profissionais altamente experientes e de reconhecida capacitação para tratar de questões referentes à manutenção da barragem B1” e reiterou que aguardará a conclusão pericial, técnica e científica sobre as causas da ruptura.

Regulação

De acordo a regulação atual, os empreendedores são obrigados a reportar quinzenalmente à ANM a situação de suas barragens, informando itens como conservação dos taludes, situação das estruturas extravasoras e níveis de percolação no interior do maciço.

Quando são detectadas situações de comprometimento da segurança da barragem, imediatamente o empreendedor deve dar início a inspeções especiais para monitoramento e controle das anomalias.

Nesses casos, a agência envia técnicos para o local e pode notificar o empreendedor, fazer exigências ou até interditar as instalações para aumento do nível de segurança.

Para supervisionar, a agência cruza informações enviadas pelas mineradoras com as fiscalizações feitas por ela mesma. Assim, são priorizadas as que demandam maior atenção.

″À época do desastre, a ANM tinha oito técnicos exclusivamente dedicados para fiscalizar as 425 barragens inseridas na PNSB. A última vistoria in loco da barragem I do complexo minerário Córrego do Feijão havia sido feita em 2016″, disse a agência.

A reguladora acrescentou que a Vale não reportou nenhuma anomalia na barragem de Brumadinho em relatório com data de 8 de janeiro, entregue em 30 de janeiro, embora o tenha feito pouco depois.

“No dia 15/2, a empresa entregou um reporte de uma vistoria realizada no dia 22/1 (três dias antes do rompimento) em que todas as irregularidades foram reportadas.”

Nesse caso, deveria ter havido reporte imediato para a agência, mesmo com a regra que prevê envio quinzenal de dados, acrescentou a ANM.


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